quinta-feira, 25 de março de 2021

Partindo de Michel Foucault, uma história da punição: por que a justiça (operada pelas elites) não pune os ricos e poderosos? Por Michel Aires de S. Dias

 

O filósofo Michel Foucault, em seu clássico livro “Vigiar e Punir”, também procurou mostrar que a história das leis penais serviu para um maior controle sobre os pobres.

A história da punição: por que a justiça não pune os ricos e poderosos?

por Michel Aires de Souza Dias

No Brasil temos a nítida impressão de que a prisão é uma instituição para punir apenas os pobres, os negros e os trabalhadores. Dificilmente temos notícias da condenação de homens ricos e poderosos, mesmo que haja provas contundentes contra eles. Quando são condenados, geralmente ficam presos por um breve período e, posteriormente, cumprem pena domiciliar.  Nos últimos anos vimos grandes políticos se safarem da justiça, mesmo com provas robustas. Entre essas provas há malas de dinheiro, tráfico de influência, associação criminosa, corrupção ativa, crimes de peculato, contas no exterior,  caixa dois, superfaturamento em obras públicas, lavagem de dinheiro, etc.  A não punição de pessoas ricas e poderosas não é uma novidade na história das leis penais. A justiça desde sua origem é uma instituição para proteger os negócios da burguesia.  

 Desde sua origem a punição penal sempre teve um caráter pedagógico, servindo como uma estratégia mais ampla para controlar os pobres. Ela nunca foi  um instrumento para punir os ricos e poderosos. Nesse sentido, o castigo deve ser visto, não como uma resposta social à criminalidade dos indivíduos, mas com profundas implicações na luta de classes, entre ricos e pobres, burgueses e proletariados (GALAND, 1990). Esta é a tese defendida no livro “Punição e estrutura social” de George Rusche e Kirchheimer, teóricos da Escola de Frankfurt. Os autores procuram argumentar que há uma relação intrínseca entre as formas de punição e as relações de produção. A história da punição tem mostrado que a maior parte dos crimes é cometido pelas camadas mais pobres da sociedade em relação as outras camadas. Desse modo, o sistema penal é concebido de tal forma que as camadas que representam maior risco a sociedade prefiram racionalmente obedecer às leis a infringi-las e sofrer a punição (RUSCHE, 1980) Se o objetivo das leis é deter os mais pobres fazendo-os respeitar a propriedade, então as punições devem ser feitas de tal modo que coloquem o criminoso numa situação mais humilhante e degradante do que ele experimenta  em sua vida cotidiana. Com isso, as instituições penais têm um papel de assegurar que os indivíduos saibam que o trabalho honesto, por mais pesado que seja, é preferível à alternativa do crime (GARLAND, 1999).

Na origem do capitalismo, entre os séculos XV e XVI,  a justiça já era um monopólio dos poderosos. Ela era uma fonte frutífera de receitas, até maior que as receitas fiscais. Todos aqueles que trabalhavam na administração judiciária eram mantidos pelos custos legais impostos aqueles sob julgamento. O acúmulo de recursos e capital pela justiça foi o principal fator de transformação do direito penal privado em direito público. A fiança acumulada evoluiu de uma compensação da parte prejudicada para um meio de enriquecimento de juízes e oficiais de justiça. Na prática a fiança era reservada aos ricos, enquanto o castigo corporal tornou-se a punição para os pobres (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).

 Nas origens do direito penal com a formação dos Estados nacionais, o homem desonesto não era visto pelo crime que cometeu, mas pelo ângulo da sua situação social. Quanto mais baixo era a classe social, mais severo era a punição. Quando o ato era cometido por alguém das camadas mais ricas, a justiça não era tão severa. As leis e práticas judiciais estabeleciam que negociações deveriam ser feitas, mesmo em casos de pena de morte. O direito penal garantia que a parte prejudicada poderia pedir uma compensação sem levar o caso para justiça (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).

Enquanto a classe abastada podia comprar sua libertação da punição, pagando fiança, a grande maioria dos delinquentes e criminosos não tinham recursos para se salvar dos suplícios corporais. Segundo Rusche e Kirchheimer (2004), quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais duros eram os castigos para fins de dissuadi-las do crime. Execução, banimento, mutilação, marcação a ferro e açoites acabavam mais ou menos por exterminar uma gama de transgressores profissionais, de assassinos e ladrões a vagabundos e ciganos

O filósofo Michel Foucault, em seu clássico livro “Vigiar e Punir”, também procurou mostrar que a história das leis penais serviu para um maior controle sobre os pobres. Desde o século XVI, com a instauração das monarquias absolutas,  os castigos e suplícios públicos visavam produzir o terror e o medo por meio de penas severas. Nas cerimônias do suplício o objetivo era dar o exemplo ao povo:  “Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado” (FOUCAULT, 2014, p. 58).

A grande parte dos crimes nas origens do capitalismo era cometido contra a propriedade por aqueles que não tinham propriedade. Em razão disso, houve naquela época um grande crescimento de penas de morte. Rusche e Kirchheimer (2004) apresentam dados sobre a Inglaterra, que nos fornecem a ideia da situação no resto da Europa. Os dados informam que aproximadamente 72 mil criminosos foram enforcados durante o reinado de Henrique VIII, e que sob o reinado de Elizabeth vagabundos eram pendurados em fila, mais ou menos de trezentos a quatrocentos de uma vez. A pena de morte que anteriormente servia para punir apenas casos mais graves, passou a eliminar vagabundos e criminosos que eram considerados perigosos para o sistema capitalista.

No final do século XVI,  houve um próspero desenvolvimento dos setores urbanos, do comércio, da navegação e da produção em massa por toda Europa. Esse desenvolvimento ocorreu devido a colonização da américa e das políticas mercantilistas. Contudo, o crescimento demográfico não acompanhou a grande demanda de emprego. O maior problema nesse período foi que não havia mão de obra suficiente. A partir daí surgiu a necessidade de transformar vagabundos e criminosos em mão de obra para o capitalismo emergente. Com isso, surgiram as primeiras prisões, chamadas na época de casas de correção (Workhouses).    

Essas instituições penais que surgiram por toda Europa no século XVII foram transformadas em sua grande maioria em manufaturas, para produzir bens de baixo custo.  O objetivo era nitidamente econômico, uma vez que visava usar a mão de obra dos indesejáveis para produzir lucro. Essa nova força de trabalho era constituída por mendigos, vagabundos, desempregados, ladrões e prostitutas. Nessas instituições os prisioneiros recebiam treinamento para desenvolverem determinadas habilidades para a produção. O que se esperava deles é que fossem treinados e quando saíssem dali deveriam procurar um emprego renumerado.  

O sociólogo italiano Dario Melossi (2006), em um ensaio do livro Cárcere e fábrica, também analisou a história dessas casas de correção. Ele procurou mostrar que as primeiras penitenciárias eram fábricas que tinham por objetivo transformar criminosos em proletários. Tal como Rusche e Kirchheimer, ele procurou estabelecer uma relação entre o modo de produção capitalista e o nascimento da instituição carcerária moderna. A sua originalidade foi mostrar como a força de trabalho foi disciplinada pela instituição carcerária, primeiro para a manufatura, depois para a fábrica, reforçando o trabalho da família, da escola e de outras instituições sociais (SANTOS, 2006). Para o sociólogo italiano, as casas de correção não visavam apenas suprir a escassez de mão de obra, mas visavam antes de tudo obter uma maior controle e domesticação da força de trabalho.

No século XVIII, com a criação das maquinofaturas e da industrialização da produção, as casas de correção perderam sua função econômica. A mecanização da produção produziu um grande desemprego. Neste período, os salários baixaram e o trabalhadores foram mais oprimidos do que nunca. O resultado disso foi que a criminalidade se alastrou por toda Europa. Mais e mais as massas empobrecidas eram conduzidas ao crime. Delitos contra a propriedade começaram a crescer consideravelmente. Desse modo, “o cárcere tornou-se a principal forma de punição no mundo ocidental no exato momento em que o fundamento econômico da casa de correção foi destruído pelas mudanças industriais” (RUSCHE; KIRSCHHEIMER, 2004, p. 146).

A partir disso as prisões se tornam locais de encarceramento em massa da classe trabalhadora empobrecida e miserável.

Rusche e Kirchheimer (2004) constataram, por meio de vários obras e documentos do século XIX, que as condições nas prisões se tornaram péssimas. Elas eram superlotadas, frias, úmidas, cheia de vermes e exalavam um fedor insuportável. A comida era inadequada e a fome tornou-se uma situação cotidiana. A dieta muitas vezes era limitada a um ensopado de batatas e pão de má qualidade. Não havia assistência médica.  Devido a isso, existia um alto índice de mortes. A grande parte dessas mortes, de 60% a 80%,  era causada pela tuberculose. Essa imagem contrasta com as casas de correção, que eram limpas, ordeiras e bem administradas. O trabalho na medida em que deixou de dar lucro, tornou-se uma forma de tortura. 

          A partir dessa nossa exposição, já é possível perceber por que os ricos e poderosos não vão para a cadeia. A prisão foi criada para encarcerar pobres, vagabundos e desocupados. Desde a baixa idade média, a punição teve como objetivo dominar e controlar a classe trabalhadora. Ela sempre foi um instrumento para incutir o medo e dominar as massas transformando-as em força de trabalho. Na história do direito penal o corpo sempre foi castigado: os suplícios, a tortura e o encarceramento sempre tiveram um caráter pedagógico:  O criminoso “era torturado até a morte, para incutir na massa da população o respeito pela ordem e pela lei, porque o exemplo da severidade e da crueldade educa os severos e  cruéis para o amor” (ADORNO; HORKEIMER, 1985, p. 186). 

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

GARLAND, David. Castigo y sociedade moderna: un estudio de teoria social.  México: Siglo Veinteuno editores, 1999.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciária (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.

RUSCHE, Georg. Marche du travail e regime des peines: contribution a la sociologie de la justice penale. Déviance et Société, Genève,  vol. 4, Nº 3, p. 215-228, 1980. 

SANTOS, Juarez Cirino. Prefácio à edição brasileira. In: MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciária (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006.


Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: michelaires@usp.br

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