segunda-feira, 28 de julho de 2025

Da humilhação na política externa. Reflexão do ex primeiro-ministro português José Sócrates

 

    "O tarifaço americano para o Brasil é também uma técnica de humilhação. Nenhum interesse comercial, nenhuma razão económica, só a vontade de exibir o poder. Um poder que não quer atingir o corpo, mas que se dirige à face do oponente."

COLUNISTAS ICL

Da humilhação na política externa



A humilhação é radical e devastadora – ela toca o mais íntimo das pessoas e dos povos

A humilhação está por todo o lado. Nas televisões, nos jornais, nas redes sociais. Especialmente nestas, das quais não sabemos ainda como nos podemos defender. A nova violência institucional é a humilhação, como podemos ver sempre que uma informação sobre um processo judicial salta para os jornais sem que o visado tenha a mínima possibilidade de se defender. A nova moda da sociedade da humilhação é a do insulto gratuito e da acusação não provada. E, no entanto, mesmo nos momentos de maior convulsão social, o exercício diplomático sempre pareceu apartado desta doença fútil da humilhação. Até Trump ganhar as eleições. A partir dai a humilhação parece fazer parte das ferramentas da política externa norte-americana.

A humilhação é uma terrível fonte de violência humana. O seu irmão gémeo é o ressentimento que cresce em silêncio, que se alimenta secretamente de amargura e de sofrimento mental. Quando explode ouve-se longe. O tratado de Versailles de 1918 gerou a humilhação alemã, depois o ressentimento alemão e finalmente a violência alemã. A humilhação palestina parece um problema insolúvel para o mundo e principalmente para a segurança israelita. Em 1947 havia palestinos na Palestina, agora há palestinos na Palestina, amanhã haverá palestinos na Palestina. A miserável matança de Gaza é uma humilhação para os palestinos – que o Ocidente pagará caro no futuro.

O tarifaço americano para o Brasil é também uma técnica de humilhação. Nenhum interesse comercial, nenhuma razão económica, só a vontade de exibir o poder. Um poder que não quer atingir o corpo, mas que se dirige à face do oponente. Querer alterar uma decisão judicial através de ameaças de tarifas é um gesto desprezível que exige a rendição da soberania de um à soberania do outro. Por outro lado, as tarifas impostas à União Europeia são outra forma de humilhação negocial: o ocidente abandona a ideologia do comércio livre e passa a resolver administrativamente os déficits comerciais entre si. Aquela imagem da pobre da presidente da Comissão apertando a mão do presidente americano e aceitando o acordo dos 15% de tarifas é uma vergonha para a Europa. Nada disto é justo e nada disto é razoável. Mas este acordo diz tudo sobre a Europa dos dias de hoje: a submissão voluntária aos caprichos imperiais. Ninguém já nos leva a sério – nem os próprios americanos que detestam espíritos servis.

Mas é preciso dizer uma coisa sobre a humilhação: não há humilhação sem humilhados e só há humilhados quando estes se calam. A intenção da humilhação, a sua vitória, o seu verdadeiro sucesso é obter o silêncio conformado do outro. Um leve pendor da face para baixo é necessário – só então, na mudez, veremos o humilhado. O presidente norte-americano humilhou a Europa, mas não humilhou o Brasil. A humilhação do tarifaço toca no reconhecimento e na dignidade de um povo e o Brasil vai sair bem desta disputa. Trump e a oposição brasileira cometeram um erro de cálculo

Seja como for, ganhe quem ganhar, deixem-me dizê-lo da forma mais enfática que consigo: a humilhação dos povos é uma promessa de caos e de destruição. A diplomacia e a política externa sempre foram escolas de boas maneiras porque sabem que nada é pior que a humilhação do adversário. Nas relações de força, a magnanimidade sempre foi a caraterística dos fortes e a mesquinhez atributo dos fracos. A humilhação é radical e devastadora – ela toca o mais íntimo das pessoas e dos povos. Não se ganha nada com ela, a não ser um inimigo para a vida. A história da humilhação na política externa nunca trouxe nada de bom ao mundo – só violência. Por agora estamos assim: a Europa aceitou a humilhação, o Brasil enfrentou-a. Nunca me senti tão próximo deste país como agora.

 

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