sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Ministério Publico como carrasco medieval, por Vinícios Viana Gonçalves, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais Pela Faculdade Anhanguera do Rio Grande (FARG) e pós-graduado em Ciências Políticas pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).




"Com o passar dos tempos, percebe-se que o dito guardião tem se comportando de forma muito, mas muito atípica ao seu propósito original, afinal de contas, a função de um verdadeiro defensor da sociedade não é apenas acusar, mas sim prezar pela correta aplicação da lei."

Do site Justificando:

Ministério Publico como carrasco medieval


Quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Ministério Publico como carrasco medieval


Em relatos históricos da sociedade, o Ministério Público tem sua origem comentada no tempo do Egito antigo. No Brasil, este tem sua origem na época do Império, historicamente pelas Ordenações Afonsinas lusitanas, e foi tratado como instituição pelo Decreto n. 848 de 1890, e de lá para cá houve um crescimento significativo e natural quanto instituição.
Até a promulgação de nossa constituição vigente, o Ministério Publico tinha quase que exclusivamente a função de Ombudsman, aquele que deveria agir de forma imparcial para mediar conflitos entre as partes envolvidas[1].
Com o passar dos tempos, percebe-se que o dito guardião tem se comportando de forma muito, mas muito atípica ao seu propósito original, afinal de contas, a função de um verdadeiro defensor da sociedade não é apenas acusar, mas sim prezar pela correta aplicação da lei.
Talvez seja o poder concedido pela Constituição, talvez o sabor deste poder quase divino, talvez seja a falta de apatia de algum de seus membros com a realidade social, tantos motivos podem ser determinantes para tal comportamento, que de alguns anos para cá, virou uma espécie de mantra adotado pela instituição: Acusar, acusar a qualquer custo, acusar como se não houvesse amanhã.
Também temos que citar, medidas que de alguma forma aumentam os arbítrios de uma intuição que coloca em risco a paridade e limite o poder do Estado contra o “indivíduo”.
Dr. Aury Lopes Jr. em conjunto com o jurista Dr. Alexandre Morais da Rosa, apontaram em um artigo publicado em 2015, que o poder de investigação do Ministério Público, por exemplo, cria mais problemas do que os ajuda a resolvê-los.
Segundo estes: “Comecemos pela questão o relacionamento polícia/MP. Continuaremos tendo o inquérito policial e, paralelamente, a possibilidade de o MP investigar através do seu próprio procedimento. Mas como se dará a seleção dos casos penais a serem investigados por cada órgão? Posso registrar o roubo/furto do meu carro no MP para ele investigar? Ou haverá uma “seletividade informal”, leia-se, o MP vai investigar o que ele quiser e o “resto” ficará com a polícia?[2].
Ou seja, percebe-se que existe uma disputa de ego, onde a instituição prefere se tornar “absoluta”, quase ignorando as atribuições da polícia judiciaria, o engodo pelo engodo, sem sentido algum.
Vale lembrar ainda, no mesmo artigo a fala do Ministro Marco Aurélio que diz: “O que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório”. Tal fala, nos dá a sensação que o Ministério Público não está tão interessado assim no contraditório, e sim em facilitar a sua ânsia condenatória, tal qual a figura do carrasco medieval, louco para que os condenados colocarem seus pescoços no centro da guilhotina, e ver o sangue escorrer.
Podemos citar também, a forma como, no caso, o Ministério Público Federal vem atuando na conhecida “Operação Lava-a-jato” onde este, inclusive propôs as dez medidas (que não eram dez) contra a corrupção, que resumidamente eram um compilado de ferramentas que literalmente transformavam o Ministério Público, em uma espécie de Darth Vader “do Bem”. Basicamente, um Frankenstein jurídico, onde teríamos ações e situações importadas de uma matriz anglo-saxônica e enfiadas a fórceps em um sistema germânico-românico. Algo que poderia ser facilmente comparado com uma galinha dirigindo um ônibus, situação que qualquer pessoa dentro de suas faculdades mentais plenas, saberia que não daria certo[3].
Não poderíamos deixar de lado, falando de Lava-a-jato a maneira como o Estado, na figura do Ministério Público, se porta, com as banalizações da delação premiada, instrumento este de fato importante, mas que de alguma forma, não existe uma lei especifica sobre delação, pois os diferentes dispositivos seguem espalhados, como por exemplo, na lei de tóxicos e na lei dos crimes hediondos.
E pela ausência de uma lei geral, e que discipline os limites, juntando com uma estrutura que se comporta como Tomas de Torquemada5, famoso inquisidor espanhol, que dedicou parte de sua vida a caçar judeus, com objetivo de erradicar a “heresia”, certamente os excessos se tornam mais do que uma realidade, como a fala do Procurador da República, que disse sem qualquer constrangimento “O Passarinho para cantar precisa estar preso”, afinal, o importante é prender, mesmo que o resultado de tal medida, sejam delações feitas sob pressão, com acusados barganhando a todo custo e contando de situações que sequer participaram, pois o importante é prender “para cantar”[6].
Quando belchior nunes virou uma instituição
Belchior Nunes Carrasco foi um homem que viveu em Lisboa antes do século XV, ele tinha a função de executar os condenados à morte, e de tanto desempenhar tal função, todos que desempenhavam a mesma função tiveram o ultimo nome deste como marca, o carrasco[7].
Mas porque associar tal personalidade a figura do Ministério Público? Simples, por conta do comportamento da instituição, que mesmo sem generalizar, se comporta aparentemente de uma forma onde a grande intensão é condenar, executar tal função, quase que a qualquer custo.
Cito novamente, Aury Lopes Jr. E Alexandre de Moraes da Rosa, em seu artigo publicado em 22 de setembro de 2017, onde relatam a iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público na Resolução do CNMP 181, de 7 de agosto de 2017, onde a instituição, estendeu a possibilidade de estendeu a possibilidade de formalização de acordo de não persecução penal para todos os crimes (desde que não praticados com violência ou grave ameaça). Sem adentrar na análise da constitucionalidade/legalidade, apontando um giro paradigmático por consequência da Operação lava-Jato, o órgão máximo administrativo do MP, planejou permitir aos seus membros, o manejo do acordo.
Ainda, de acordo com o artigo: “É a popularização do acordo penal, ainda que ao arrepio do Princípio da Legalidade e da usurpação da competência do Poder Legislativo para legislar sobre matéria processual penal (com o qual não concordamos). Saldão da liberdade, com a responsabilidade da reparação e/ou do cumprimento de requisitos. De iniciativa do próprio órgão acusatório, a benefício do acusado ou conduzido (o acordo pode ser feito na audiência de custódia) que poderá decidir, afinal, se o aceita ou não, devendo ser assistido por advogado. ”,
Ou seja, imaginem um Carrasco, pegando seu machado medieval, esperando degolar cabeças, sem uma perspectiva lógica, apenas querendo terminar o fato, o quanto antes, e sem interrupções[8].
Não é mais aceitável, que instituições sejam meros mecanismos para satisfação pessoal, do senso comum, da bravata, ao um custo caro que a sociedade paga. O Ministério Público precisa de uma reflexão urgente, tal qual o judiciário como um todo, não podemos mais aceitar que um importante instrumento se comporte como um órgão meramente acusatório e não um guardião dos interesses da sociedade, e isso não se reduz apenas acusar sem limites.
É preciso acabar com poderes excessivos, com posturas descontroladas ou atores mais preocupados em visibilidade social, uma “egotrip” na onda de polêmicas “A Lá PowerPoint”9 ou quando estes membros se tornam mais conhecidos por condutas execráveis, que além de denegrir a imagem da instituição, demonstram despreparo para desempenhar o real papel de membro do parquet[10].
Por fim, esperamos que de fato tenhamos um pleno Ministério Público, que desempenhe seu papel, que seja “pro societate” em todos os sentidos, e não apenas como mera ferramenta acusatória, uma promotoria de acusação. Queremos um Ministério Público voltado a busca de injustiças, que se apague aos anseios da sociedade, que lute pelos direitos dos mais pobres, pela preservação de nosso meio-ambiente, pelo respeito ao indivíduo, pelo justo processo, pelos interesses reais da maioria, que lute contra o encarceramento em massa, e garanta o crescimento, os avanços sociais, para que de fato, tenhamos um fiscal da correta aplicação da lei.
Vinicius Viana Gonçalves é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais Pela Faculdade Anhanguera do Rio Grande (FARG) e pós-graduado em Ciências Políticas pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
Leia mais:
[1]Dicionário escolar da língua portuguesa/Academia Brasileira de Letras. 2ª edição. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2008. p. 921
[2]Poder de investigação do MP cria mais problemas que resolve. CONJUR. 22 de maio. 2015.
www.conjur.com.br/2015-mai-22/limite-penal-poder-investigacao-mp-cria-problemas-resolve
3
> Acesso em 02/12/2018.
[3] 10 Medidas contra a corrupção. MPF. <http://www.dezmedidas.mpf.mp.br > Acesso em 04/12/2018
Após bate-boca, juíza diz que não trabalha mais com promotor. GauchaZH. 18 de junho. 2018. < https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2018/06/apos-bate-boca-juiza-diz- que-nao-trabalha-mais-com-promotor-cjikxs45z0hib01qo2r8v43r2.html> Acesso em 05/12/2018.
[4] Tomas de Torquemada. <http://www.encyclopedia.com/topic/Tomas_de_Torquemada.aspx> Acesso em 05/12/2018.
[5] “O passarinho pra cantar precisa estar preso” Viva a inquisição! CONJUR. 29 de novembro. 2014.
www.conjur.com.br/2014-nov-29/diario-classe-passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-
 inquisicao> Acesso em 04/12/2018.
[6] Carrasco. Juarez Ribeiro. 30 de abril. 2016.
[7] Saldão penal e a popularização da lógica da colaboração premiada pelo CNMP. CONJUR. 22 de setembro. 2017. /www.co
njur.com.br/2017-set- 22/limite-penal-saldao-penal-popularizacao-logica-colaboracao-premiada- cnmp> Acesso em 05/12/2018.
[8] Em livro, Deltan diz que repercussão de Power Point o “pegou de surpresa”. Folha. 14 de setembro. 2016. < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/04/1878941-em-livro-deltan-diz-que-repercussao- de-power-point-o-pegou-de-surpresa.shtml> Acesso em 05/12/2018.

Bibliografia
Após bate-boca, juíza diz que não trabalha mais com promotor. GauchaZH. 18 de junho. 2018. < https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2018/06/apos-bate-boca-juiza-diz-que-nao-trabalha- mais-com-promotor-cjikxs45z0hib01qo2r8v43r2.html> Acesso em 05/12/2018.
 Carrasco. Juarez Ribeiro. 30 de abril. 2016.
Dicionário escolar da língua portuguesa/Academia Brasileira de Letras. 2ª edição. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2008. p. 921

Em livro, Deltan diz que repercussão de Power Point o “pegou de surpresa”. Folha. 14 de setembro. 2016. <
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/04/1878941-em-livro-deltan-diz-que- repercussao-de-power-point-o-pegou-de-surpresa.shtml> Acesso em 05/12/2018.

1“O passarinho pra cantar precisa estar preso” Viva a inquisição! CONJUR. 29 de novembro. 2014. /www.co
njur.com.br/2014-nov- 29/diario-classe-passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-inquisicao> Acesso em 04/12/2018.
1Poder de investigação do MP cria mais problemas que resolve. CONJUR. 22 de maio. 2015. /www.co
njur.com.br/2015-mai-22/limite-penal-poder- investigacao-mp-cria-problemas-resolve > Acesso em 02/12/2018.

Saldão penal e a popularização da lógica da colaboração premiada pelo CNMP. CONJUR. 22 de setembro. 2017. /www.co
njur.com.br/2017-set- 22/limite-penal-saldao-penal-popularizacao-logica-colaboracao-premiada- cnmp> Acesso em 05/12/2018.

Tomas de Torquemada.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Do Outras Palavras: Redes sociais, ultra-capitalismo, narcisismo, individualismo, consumismo e vidas frustradas, por César Rendueles,




Como a internet, em deriva individualista, ameaça criar um mundo em que afetos, laços de compromisso e política dissolvem-se em consumo e narcisismo. Atenção: o problema é anterior à rede

Por César Rendueles, em entrevista à RT Notícias | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel | Imagem: Olivia Linn - Fonte: Outras Palavras
César Rendueles (Girona, 1975) é professor do Departamento de Teoria Sociológica da Faculdade de Ciências Políticas e Sociológicas da Universidade Complutense de Madri. É também autor do livro Sociofobia: El cambio político en la era de la utopía digital [Edição em português: Sociofobia: Mudança política na era da utopia digital.Sesc, São Paulo, 2016], onde analisa o efeito das tecnologias digitais de comunicação na realidade política e social.
Seu discurso, nesse sentido, exerce uma espécie de contrapeso, diante do otimismo generalizado que até há pouco vigorava com relação ao mundo digital e às esperanças, provavelmente excessivas, que a sociedade contemporânea depositava nas novas e fulgurantes tecnologias de comunicação.
Rendueles, na sua obra e também nesta entrevista, aponta para a fragilidade dos laços humanos por trás das frenéticas redes sociais e suas multidões de followers (“seguidores”), lamentando, ao mesmo tempo, a enorme quantidade de vidas frustradas e empobrecidas no ambiente consumista e profundamente individualista que caracteriza o capitalismo neoliberal.
A entrevista foi concedida para a agência RT e publicada no seu site em espanhol (RT Noticias). Ei-la:
O que você chama de Utopia Digital? Estaríamos confiando demais na possibilidade da tecnologia digital resolver nossos problemas?
Atribuímos hoje à tecnologia uma capacidade desmesurada para solucionar problemas sociais, políticos e até ecológicos de todo tipo. É incrível! Por exemplo, em praticamente todos os debates sobre a crise ambiental sempre aparece alguém dizendo que a geoengenharia ou a nanotecnologia vão solucionar a crise energética. E é assim com tudo: começa-se acreditando que a crise de legitimidade política vai se resolver com a participação digital; a crise da educação, com mais geringonças tecnológicas nas salas de aula… É alucinante, porque, além de tudo, isso está introjetado tanto na esquerda quanto na direita.
Parece-me que a confiança no digital tem a ver com a ilusão de que essa tecnologia nos exime dos processos deliberativos, nos livra da necessidade de buscar acordo a partir de posições muito diferentes e em conflito, por meio de algo como uma coordenação espontânea e consensual que não passa pela deliberação. Nesse sentido, me parece que tal concepção da tecnologia é herdeira da forma como o mercado é concebido a partir da tradição liberal: a ele se atribuía a capacidade de gerar coordenação social sem recorrer a mecanismos deliberativos, descartando o conflito político.
É claro que hoje, depois de 2008, ninguém mais acredita muito no mercado. Ninguém acredita que ele tenha essa capacidade para resolver os conflitos políticos: ao invés disso, os incrementa, como sempre defenderam os marxistas. Assim, trasladamos do mercado para a tecnologia essa confiança de que surja algum tipo de ordem emergente e espontânea, que não passe pelos processos deliberativos democráticos.
Em certa ocasião você propôs que as redes sociais também cumpririam uma função semelhante à dos antidepressivos…
A era das redes sociais é também a era da fragilização social. Esse é um fato empírico. Vivemos em sociedades muito individualizadas, com vínculos sociais muito débeis, e vínculos organizativos também muito débeis. É nesse contexto que as redes sociais adquiriram tanto protagonismo.
Aí se estabelece um tipo de relação que pode até ser muito abundante, com milhares de followers e “amigos”, mas que é também bastante superficial e frágil, sobretudo porque é um tipo de relação reversível pelo capricho, que não está baseada no compromisso, mas na preferência: se me canso de seguir alguém ou passo a não gostar que me siga, simplesmente o deixo de seguir ou o bloqueio. Os vínculos sociais efetivos não funcionam assim. Não abrimos mão dos nossos amigos porque tenham se tornado chatos em alguma ocasião; não abrimos mão das organizações políticas ou sindicais às quais pertencemos porque não estamos dispostos a comparecer a uma assembleia ou a uma manifestação…
Ao mesmo tempo, as relações digitais, ainda que sejam superficiais e frágeis, nos proporcionam uma certa sensação de conexão, e por isso cheguei a compará-las com o Prozac. Ninguém confundiria a sensação que um antidepressivo produz com uma vida plena ou com a autorrealização pessoal, ninguém seria tão idiota! E, no entanto, o que a ideologia digital conseguiu foi fazer-nos confundir a vida virtual com uma vida não apenas plena mas também superior àquela que tínhamos no mundo analógico.
Como isso afetaria a política? As redes sociais mudaram a maneira de fazer política?
Por um lado, eu não creio que as tecnologias digitais sejam realmente tão importantes, e, por outro, creio que há muito mais continuidade entre o mundo analógico e o digital do que se supõe. Vejo como bastante questionável esse imaginário de ruptura sistemática que cerca o mundo da tecnologia digital.
Nesse sentido, me parece que o que as redes sociais e a tecnologia digital fizeram foi acelerar processos que já estavam em curso. A democracia de auditório, por exemplo, é um fenômeno anterior ao surgimento das redes sociais, e tem a ver, por uma parte, com os processos de despolitização associados ao contexto neoliberal e, por outra, com o uso, nesse contexto, dos meios de comunicação tradicionais, como a televisão, marcado por um progressivo desinteresse da cidadania frente à política. Aí nasceu a democracia de auditório. Ao aterrissarem sobre esse modelo, o que as redes sociais fizeram foi intensificá-lo.
Pode-se entender melhor o que as redes sociais operaram se as vemos como televisores pequenininhos dentro do nosso celular, e não como um paradigma completamente novo. Fala-se muito sobre como Donald Trump utiliza as redes sociais, mas frequentemente se esquece que ele mesmo se tornou famoso com um reality show de televisão. O uso que Trump faz das redes sociais se parece muito mais a estratégias tradicionais de propaganda de massa que a um tipo novo de estratégia reticular digital supersofisticada. É a propaganda de sempre, massiva e baseada diretamente na manipulação. Por isso, insisto que há muito mais continuidade do que parece entre o passado analógico e o presente digital.
Há quem observe que o funcionamento mesmo das redes e dos sites de busca faz com que o usuário acabe em uma bolha, tendo acesso a conteúdos previamente selecionados conforme suas preferências, por meio de um filtro pessoalizado definido pelos servidores. Isso não faz com que estejamos mais isolados que conectados? E também não afeta a política, no sentido mais clássico e amplo do termo?
Esse mundo é curioso porque nele ocorrem duas dinâmicas contrapostas. É verdade que a quantidade de informação e de opiniões diversas é infinitamente maior do que no mundo analógico, mas nós somos seres limitados e com uma capacidade limitada de processamento — o que geralmente esquecemos. A oferta está aí, mas nós somos seres neolíticos, de capacidade limitada. Então, relacionamo-nos com pacotes limitados de informação, mas acreditamos que eles procedem de uma esfera pública infinita, onde todas as opções estão disponíveis, e que escolhemos com inteira neutralidade.
O efeito disso é bastante perverso, porque não apenas opera aí esse filtro de bolha (que seguramente já existia antes, quando se escolhiam os jornais e canais mais afins para se informar), mas que agora traz algo mais: a ideia de que a informação procede da mais absoluta livre escolha e de um crivo crítico isento. Isso é o mais característico desses tempos: não tanto que haja uma tendenciosidade pronunciada nos meios de comunicação — isso permanece mais ou menos como sempre —, mas que agora nós nos achamos agentes críticos supersofisticados. E isso tem um efeito pernicioso.
Você comentou certa vez que quando trabalhava no seu livro Sociofobia, o que você queria realmente era escrever sobre a ideia de fraternidade, e não sobre tecnologias digitais de comunicação. É muito ingênuo pensar que as redes sociais possam contribuir para uma maior fraternidade social?
No fundo, eu nunca me interessei muito pela tecnologia digital. O que acontece é que acabei arrastado para estudar isso porque, em muitos dos problemas que me interessavam, eu detectava que se recorria à tecnologia digital como uma solução que me parecia fictícia, tanto em questões da educação como da política, e em especial no que respeita aos processos de política emancipatória.
Um dos problemas que temos observado nas últimas décadas, a partir da filosofia política e da sociologia crítica, é que, de alguma forma, os processos emancipatórios exigem condições não apenas materiais e políticas, mas também sociais, no sentido da necessidade de uma certa urdidura de relações para que eles aconteçam. Aprofundar a democracia torna-se muito complexo quando se está em uma sociedade muito atomizada e muito individualista.
Creio que os que veem com mais otimismo o auge do paradigma digital tendem a pensar que aí se oferece uma solução aos dilemas contemporâneos da sociabilidade, e que esse paradigma aportaria potencialidades críticas [N. do T.: Esse é exemplarmente o caso da assim chamada corrente “aceleracionista”, inspirada pelos trabalhos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, amadurecida por Antonio Negri e Michael Hardt, e que encontra em Steven Shaviro, Alex Williams e Nick Srnicek seus “gurus” atuais. No Brasil, foi recepcionada sobretudo pelo “pós-tudismo” do coletivo Universidade Nômade]. Eu vejo o contrário: creio que só quando saibamos solucionar ou superar essa fragilização das relações sociais, encontraremos usos para as tecnologias da comunicação que hoje sequer imaginamos.
Enquanto isso, o que se vê nas redes sociais é que esse estado de fragilização social e atomização pode torná-las muito destrutivas. Nelas, nos insultamos continuamente e produzimos essas dinâmicas de linchamento tão perniciosas [N. do T.: Para uma abordagem do fenômeno dos linchamentos virtuais e da “pós-censura”, veja-se o instigante ensaio de Juan Soto Ivars, publicado pela editora Debate, de Barcelona, em 2017: Arden las redes. La poscensura y el nuevo mundo virtual]. No momento resta muito pouca fraternidade.
Você crê que as redes sociais seriam antes de mais nada uma armadilha para controlar mais as pessoas ou para obter informação para uso comercial? Estariam na realidade mais a serviço do chamado Big Data que das relações interpessoais?
Aqui também vejo uma grande continuidade entre os processos de controle social que estamos vivendo agora e os que se viveram no passado. É verdade que agora a Audiência Nacional [N. do T.: Tribunal de terceira instância na Espanha, que zela, também, pela aplicação da assim chamada Lei Mordaça, aprovada pelo governo do Partido Popular (direita), e que, desde 2017, restringe arbitrariamente as liberdades de reunião, expressão e informação no país] se dedica a vigiar o Twitter e as redes sociais, para botar as pessoas na cadeia. Mas é igualmente verdade que ela vem encarcerando gente e fechando meios de comunicação por conta de suas opiniões há muito tempo.
Hoje todos conhecem Pablo Hasél [N. do T.: rapper comunista espanhol, condenado judicialmente em 2014 por “apologia ao terrorismo”, por suas letras em defesa de grupos armados de extrema esquerda da década de 70] e Edward Snowden, que são associados ao ambiente digital… Mas menos gente se lembra do diretor do jornal vasco Egunkaria, Martxelo Otamendi, que em 2003 foi torturado por forças policiais sob a supervisão de um juiz da Audiência Nacional [N. do T.: Uma vez denunciadas as torturas, o caso foi habilmente acobertado pela justiça espanhola, o que levou a Corte Europeia de Direitos Humanos (ou Tribunal de Estrasburgo) em 2012 a condenar o Estado espanhol a uma indenização de 48 mil euros em favor de Otamendi, por prevaricação e danos morais].
Entre os dois âmbitos (o digital e o analógico) há uma considerável continuidade. Fala-se do controle biométrico que as redes sociais podem introduzir, mas na Espanha o controle biométrico existe há décadas e se chama carnê de identidade. Aos catorze anos todos são obrigados a registrar suas digitais, algo que, para os de fora da Espanha, parece um pesadelo orwelliano, enquanto na Espanha sempre pareceu algo absolutamente normal [N. do T.: O mesmo se diga da recente identificação biométrica compulsória feita pela Justiça Eleitoral brasileira, que obrigou os eleitores a registrarem eletronicamente todas as suas digitais, ao invés, funcionalmente, de apenas um dedo (como nos bancos). Por que razão tal zelo de controle? por qual funcionalidade eleitoral?…]. Desse modo, também é preciso refletir sobre a tolerância que tivemos no passado a respeito dessas formas de repressão e se perguntar por que só quando entram as redes digitais isso começaria a nos preocupar.
E quanto ao tema do Big Data, o único que ele fez, mais uma vez, foi acelerar tendências já em curso. É verdade que o desenho que configurou o ambiente digital nas últimas décadas, regido por uma perspectiva radicalmente mercantil, facilitou a emergência desse fenômeno. Se o ambiente digital tivesse sido regulado por instituições públicas, teria sido mais fácil impedir os abusos desse processo de exploração mercantil, mas como todo seu desenvolvimento foi privado, agora sai mais caro correr atrás do prejuízo que a semente mercantil plantou.
Também é verdade que, na exploração do Big Data para o desenvolvimento de ferramentas repressivas se sobrepõe uma tradição de políticas punitivas no contexto neoliberal. Pensar essas coisas apenas em termos de um Grande Irmão digital é não entender toda a sua extensão.
O mesmo acontece com o extrativismo digital, ou seja, todo esse conjunto de ações destinado a converter nossas relações sociais em fonte de lucro para as grandes empresas. Nosso capital social e relacional, que serve, por exemplo, para pôr em aluguel uma acomodação no AirBnB ou ser motorista em um serviço de transporte, é explorado por uma empresa que não faz nada mais senão dispor uma mínima estrutura digital. Isso me parece ter um parentesco muito próximo com os processos prévios de financeirização, que existem desde o começo dos anos 80, e pelo qual as maiores fortunas são geradas a partir de não produzir basicamente nada. Essas dinâmicas extrativas exploram novos territórios. Uma vez esgotado o mundo real, o mundo digital passa a ser o novo terreno a colonizar.
Em suma, pode-se dizer então que a eclosão das tecnologias digitais serviu principalmente para acelerar ou intensificar processos sociais que já estavam em curso, mas que, em essência, não revolucionou nada…
Exatamente. Eu sou um marxista e um materialista bem clássico, e os marxistas servimos para ser chatos, para dizer sempre o mesmo. E às vezes isso é útil. Algumas vezes somos apenas chatos, e não servimos para nada, mas em outras vezes, quando todo mundo está insistindo no novo, que estamos em um contexto novo e que isso é uma nova fronteira, eu creio que os chatos somos úteis, porque lembramos que nas nossas sociedades muitas vezes as continuidades pesam mais que as rupturas.
Certa vez você afirmou que o consumismo faz com que as pessoas tenham vidas frustradas, estragadas [no original: “vidas dañadas”]. De que modo esse sistema estraga ou prejudica a vida das pessoas?
O consumismo não consiste apenas em comprar muito. O consumismo é, antes, um ideal de vida boa e de autorrealização no mercado, através da compra e venda, e é um modelo de vida muito disseminado no qual todos, por desgraça, participamos em alguma medida.
E é um modelo que produz vidas frustradas porque impede a você ter um projeto de vida boa minimamente coerente. Você fica entregue aos caprichos do mercado, como se fosse um hamster perseguindo a última novidade, a tendência que esteja na moda.
Aspirar a ter uma vida boa exige ter também um certo projeto moral de vida, exige pensar que tipo de pessoa você pretende ser, trabalhar nessa construção e assumir que às vezes também fracassamos. Eu creio que o consumismo dinamita isso, porque atomiza completamente a sua vida e torna você tão simplesmente um eleitor racional que passa a ter como única perspectiva de vida o agora. Você não tem nem passado nem futuro. Suas únicas perspectivas são suas preferências presentes, que amanhã vão mudar e já serão diferentes das de ontem. Eu creio que, durante períodos curtos de vida, isso até possa ser excitante ou interessante, mas no médio prazo… são vidas terríveis! São vidas completamente vazias, seguramente porque são inconsistentes com nossa natureza humana. Não somos assim. Somos seres que precisamos articular um passado e ter projetos de futuro, em geral compartilhados.
Se você tivesse que apontar qual a carência ou problema mais importante do nosso atual estilo de vida, qual apontaria?
A desigualdade. Estou cada vez mais convencido de que a falta de igualdade é o motivo mais profundo das vidas frustradas que levamos. Sei que é um valor muito controvertido, e é o aparentemente mais feio do binômio liberdade-igualdade [N. do T.: para um pequeno excurso sintético sobre o tratamento que Norberto Bobbio deu à relação lógica entre liberdade e igualdade, consulte-se a entrevista dada por este tradutor]. Além disso vivemos em um momento de tremenda exuberância da liberdade: atualmente a liberdade é um valor cotado em alta, enquanto a igualdade é vista com suspeita. Reconhece-se a igualdade de oportunidades, mas isso é uma degeneração absoluta do ideal igualitário. A igualdade de oportunidades é pura meritocracia. E isso não tem nada a ver com a igualdade. A igualdade tem a ver com a chegada, não com o ponto de partida. Estou absolutamente convencido de que, sem uma recuperação de um modelo de igualdade forte, é completamente impossível recuperar os ideais emancipatórios ilustrados.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Como sonegar e culpar a Previdência, por Frei Betto



"Poucos dias antes de a Câmara dos Deputados obstruir a Justiça e impedir que o presidente fosse investigado pelo STF, Temer editou Medida Provisória que livra os produtores rurais de pagar, nos próximos anos, mais de R$ 10 bilhões de impostos. Foi reduzida a alíquota paga por eles ao Funrural. E os ruralistas com dívidas com a União terão descontos nas multas e poderão pagar de forma parcelada. 

"Para a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, a medida retira recursos da Previdência em um momento em que o governo propõe mudanças nas regras de aposentaria para conter o déficit do INSS, e beneficiará grandes empresas."


Resultado de imagem para farsa da reforma da previdencia

Pagar menos impostos é fácil no Brasil. Basta ser empresário, tomar dinheiro emprestado do governo e depois recorrer ao pai de todas as sonegações, o chamado Refis (Programa de Recuperação Fiscal). 

Na hora de pagar a dívida, você recorre e o governo negocia em condições mais do que de mãe para filho. Mas não se apresse. Deixe de pagar e aguarde o próximo Refis, pois com certeza os juros serão ainda mais baixos.

O governo brasileiro tem a receber, de impostos atrasado, uns R$ 300 bilhões. Parcela dessa dívida o gato comeu, pois os devedores já faleceram ou as empresas faliram. E quando se deixa de pagar imposto isso significa menos hospitais, menos escolas, menos obras públicas, enfim, menos benefícios para a população. 

O governo não perdoa dívida de pessoa física, mas é uma mãe com as pessoas jurídicas. Se a sua empresa deixou de pagar impostos, mas é produtiva, fique tranquilo. O leão não vai mordê-lo. Vai esperar mansinho que você se recupere... 

O próximo Refis deveria engordar os cofres do governo em R$ 13 bilhões. Mas o deputado Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), relator da Medida Provisória do novo Refis, agiu em interesse próprio, já que tem dívidas, e reduziu a proposta do Refis em 90%. Se o projeto dele for aprovado, o leão vai morder apenas R$ 500 milhões dos 13 bilhões previstos. 

E os R$ 12,5 bilhões que ficarão faltando? Ora, nós, cidadãos brasileiros, arcamos com o prejuízo. Detalhe: deputados federais e senadores devem ao fisco pelo menos R$ 3 bilhões.

Como cobrir o buraco nas contas do governo? Temer simplesmente aumentou este ano o PIS/Cofins que pagamos ao botar combustível no carro, o que assegura à Receita uma entrada de R$ 10 bilhões, e meteu a tesoura em mais R$ 5,9 bilhões, corte que significa menos saúde, menos educação etc. Em nome do ajuste fiscal, o presidente já havia cortado R$ 45 bilhões. 

Poucos dias antes de a Câmara dos Deputados obstruir a Justiça e impedir que o presidente fosse investigado pelo STF, Temer editou Medida Provisória que livra os produtores rurais de pagar, nos próximos anos, mais de R$ 10 bilhões de impostos. Foi reduzida a alíquota paga por eles ao Funrural. E os ruralistas com dívidas com a União terão descontos nas multas e poderão pagar de forma parcelada. 

Para a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, a medida retira recursos da Previdência em um momento em que o governo propõe mudanças nas regras de aposentaria para conter o déficit do INSS, e beneficiará grandes empresas.

Segundo números da Receita Federal, somente com o perdão de juros e multas a perda de arrecadação será de R$ 7,6 bilhões em 15 anos, prazo de parcelamento dos débitos. Com a redução da alíquota do Funrural, o governo deixará de receber R$ 4,36 bilhões entre 2018 e 2020. Somadas, as perdas com perdão de juros e multas, e com a redução da alíquota, chegam a R$ 11,96 bilhões. E esse valor pode ser maior se a redução da alíquota vigorar além de 2020.

E ainda dizem que a culpa da falta de dinheiro do governo é da Previdência Social

Fonte: Site de Frei Betto

Neoliberalismo, o caminho negro para o fascismo, por Chris Hedges, jornalista investigativo internacional


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"O neoliberalismo como teoria económica sempre foi um absurdo. Tinha tanta validade quanto as ideologias dominantes do passado, como o direito divino dos reis e a crença fascista no Übermensch . Nenhuma das suas alardeadas promessas era remotamente possível." - Chris Hedges, jornalista. Trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, Dallas Morning News e The New York Times


Neoliberalismo, o caminho negro para o fascismo

Por Chris Hedges [*]


O neoliberalismo como teoria económica sempre foi um absurdo. Tinha tanta validade quanto as ideologias dominantes do passado, como o direito divino dos reis e a crença fascista no Übermensch . Nenhuma das suas alardeadas promessas era remotamente possível.

Ao concentrar a riqueza nas mãos de uma elite oligárquica global – oito famílias detêm hoje tanta riqueza quanto 50% da população mundial – enquanto procedia à demolição de controlos e regulamentações governamentais, gerou sempre maciças desigualdades de rendimento, poder dos monopólios, alimentou o extremismo político e destruiu a democracia. Não é necessário folhear as 577 páginas de Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty para descobrir isso. Mas a racionalidade económica nunca foi o ponto. O ponto era a restauração do poder de classe.
Como ideologia dominante, o neoliberalismo foi um êxito brilhante. A partir dos anos 70 do século XX, os seus principais críticos keynesianos foram expulsos das universidades, instituições estatais e organizações financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial e excluídos dos media. Os cortesãos e intelectuais impostores, como Milton Friedman , foram preparados em locais como a Universidade de Chicago, foram-lhes dados lugares proeminentes e pródigos fundos de grandes empresas. Disseminaram os dogmas oficiais de teorias económicas desacreditadas, popularizadas antes por Friedrich Hayek e pela escritora de terceira categoria Ayn Rand .

Uma vez ajoelhado diante dos ditames do mercado, anulando regulamentações governamentais, reduzindo os impostos para os ricos, permitindo o fluxo de dinheiro através das fronteiras, destruindo sindicatos e assinando acordos comerciais que desviavam empregos para fábricas sem condições na China, o mundo seria mais feliz e livre, um lugar mais rico. Foi um golpe. Mas funcionou.

"É importante reconhecer as origens de classe deste projeto, que ocorreu na década de 1970, quando a classe capitalista estava em grandes dificuldades, os trabalhadores estavam bem organizados e começavam a avançar", disse David Harvey , autor de A Brief History of Neoliberalism, quando falámos em Nova York. "Como qualquer classe dominante, eles precisavam de ideias dominantes. Assim, a liberdade do mercado, as privatizações, o empreendedorismo do eu, a liberdade individual e tudo o mais deveriam ser as ideias dominantes de uma nova ordem social, e foi essa a ordem implementada nos anos 80 e anos 90".

"Como projeto político, foi muito habilidoso, disse ele. "Conseguiu muito consentimento popular porque falava sobre liberdade individual e liberdade de escolha. Quando eles falavam sobre liberdade, era a liberdade do mercado. O projeto neoliberal disse à geração de 68: "Tudo bem, você quer liberdade? É Isso que o movimento estudantil pretende nós vamos dar isso a vocês, mas vai ser a liberdade do mercado. A outra coisa que você procura é justiça social – esqueça. Então, vamos dar-lhes liberdade individual, mas esqueçam a justiça social. Não se organizem". O objetivo era desmantelar as instituições, as instituições coletivas da classe trabalhadora, particularmente os sindicatos e pouco a pouco os partidos políticos que representassem algum tipo de preocupação com o bem-estar das massas".

"A grande coisa sobre a liberdade do mercado é que parece ser igualitária, mas não há nada mais desigual do que o tratamento igual dos desiguais", continuou Harvey. "Promete igualdade de tratamento, mas se você for extremamente rico, isso significa que pode ficar ainda mais rico. Se você for muito pobre, é mais provável que fique ainda mais pobre. O que Marx mostrou brilhantemente no primeiro volume de O Capital é que a liberdade de mercado produz níveis cada vez maiores de desigualdade social ".

A disseminação da ideologia do neoliberalismo foi altamente organizada por uma classe capitalista unificada. As elites capitalistas financiaram organizações como a Business Roundtable, a Câmara de Comércio e grupos de reflexão como a The Heritage Foundation para vender a ideologia ao público. Inundaram universidades com doações, desde que as universidades retribuíssem com fidelidade à ideologia dominante. Usaram a sua influência e riqueza, bem como serem donos dos media, para transformar a imprensa no seu porta-voz. Silenciaram ou dificultaram o emprego a quaisquer heréticos. O aumento dos valores das ações, em vez da produção, tornou-se a nova medida da economia. Tudo e tudos foram financiarizados e tornados mercadorias.

"O valor é fixado por qualquer que seja o preço verificado no mercado", disse Harvey. "Assim, Hillary Clinton é muito valiosa porque fez uma palestra na Goldman Sachs por 250 mil dólares. Se eu der uma palestra para um pequeno grupo no centro da cidade e receber 50 dólares, então obviamente ela vale muito mais do que eu. A valorização de uma pessoa e do seu conteúdo é avaliada por quanto consegue obter no mercado".

"Esta é a filosofia por trás do neoliberalismo", continuou. "Temos de atribuir um preço às coisas. Mesmo que não sejam realmente coisas que devam ser tratadas como mercadorias. Por exemplo, a assistência médica torna-se uma mercadoria. Habitação para todos torna-se uma mercadoria. A educação torna-se uma mercadoria. Assim, os estudantes têm de pedir emprestado para obter a educação que lhes dará um emprego no futuro. Esse é o golpe da coisa. Basicamente, diz-se que se você é um empreendedor, se se qualificar, etc, receberá a justa recompensa. Se não recebe uma justa recompensa é porque não se qualificou suficientemente. Adquiriu o tipo errado de cursos. Fez cursos de filosofia ou de clássicos em vez de aprender técnicas de gestão de como explorar mão-de-obra.

O contra do neoliberalismo é agora amplamente compreendido em todo o espectro político. É cada vez mais difícil esconder a sua natureza predatória, incluindo suas exigências de enormes subsídios públicos (a Amazon, por exemplo, recentemente solicitou e recebeu incentivos fiscais multimilionários de Nova York e Virgínia para estabelecer centros de distribuição nesses estados). Isso forçou as elites dominantes a fazerem alianças com demagogos de direita que usam as táticas cruas do racismo, islamofobia, homofobia, fanatismo e misoginia para canalizar a raiva e a crescente frustração do público para longe das elites e canaliza-la para os mais vulneráveis.

Esses demagogos aceleram a pilhagem pelas elites globais e, ao mesmo tempo, prometem proteger os trabalhadores e as mulheres. A administração de Donald Trump, por exemplo, aboliu numerosas regulamentações , das emissões de gases do efeito estufa [1] à neutralidade da Internet e reduziu os impostos para os indivíduos e empresas mais ricos, eliminando cerca de 1,5 milhão de milhões de dólares de receita do governo nos próximos dez anos, adotando linguagem e formas autoritárias de controlo.

O neoliberalismo gera pouca riqueza. Em vez disso, redistribui-a para as mãos das elites dominantes. Harvey chama isso de "acumulação por desapossamento".

"O principal argumento da acumulação por desapossamento baseia-se na ideia de que quando as pessoas ficam sem capacidade de produzir ou fornecer serviços, elas criam um sistema que extrai riqueza de outras pessoas", disse Harvey. "Essa extração então torna-se o centro de suas atividades. Uma das maneiras pelas quais essa extração pode ocorrer é criando mercados onde antes não existiam. Por exemplo, quando eu era mais jovem, o ensino superior na Europa era essencialmente um bem público. Cada vez mais [este e outros serviços] se tornaram uma atividade privada como os serviços de saúde. Muitas dessas áreas que você consideraria não serem mercadorias no sentido comum, tornam-se assim mercadorias. Habitação para a população de baixos rendimentos era frequentemente vista como uma obrigação social. Agora tudo tem de passar pelo mercado. Impõe-se uma lógica de mercado em áreas que não deveriam estar abertas ao mercado".

"Quando eu era criança, a água na Grã-Bretanha era fornecida como um bem público", disse Harvey. "Então, é claro, foi privatizada. Você começa a pagar taxas de água. Eles privatizaram o transporte [na Grã-Bretanha]. O sistema de autocarros é caótico. Há empresas privadas a circularem por toda parte. Não é o sistema que as pessoas realmente precisam. A mesma coisa acontece na ferrovia. Uma das coisas agora interessantes na Grã-Bretanha é que o Partido Trabalhista diz: 'Vamos trazer tudo isso de volta à propriedade pública porque a privatização é totalmente insana e tem consequências insanas, não está a funcionar devidamente. A maioria da população concorda com isto".

Sob o neoliberalismo, o processo de "acumulação por desapossamento" é acompanhado pela financiarização.

"A desregulamentação permitiu que o sistema financeiro se tornasse um dos principais centros de atividade redistributiva através da especulação, predação, fraude e roubo", escreve Harvey no seu livro, talvez o melhor e mais conciso relato da história do neoliberalismo. "Promoções de ações, esquemas Ponzi, destruição de ativos estruturados pela inflação, espoliação de ativos por meio de fusões e aquisições, promoção de níveis de endividamento que reduzem populações inteiras – mesmo nos países capitalistas avançados – à escravidão pelas dívidas. Para não falar em fraudes empresariais, desapropriação de ativos, invasão de fundos de pensão dizimados em colapsos de ações e por manipulação do crédito e do valor de ações, tudo isso se tornou uma característica central do sistema financeiro capitalista".

O neoliberalismo, exercendo um tremendo poder financeiro, é capaz de fabricar crises económicas para deprimir o valor dos ativos e depois apossar-se deles.

"Uma das maneiras pelas quais se pode engendrar uma crise é cortar o fluxo de crédito". "Isso foi feito no leste e sudeste da Ásia em 1997 e 1998. De repente, a liquidez secou. As principais instituições deixam de emprestar dinheiro. Havia um grande fluxo de capital estrangeiro para a Indonésia. Eles fecharam a torneira. O capital estrangeiro fugiu. Fecharam a torneira do crédito em parte porque, uma vez que as empresas fossem à falência, poderiam vir a ser compradas e colocadas novamente a funcionar. Vimos a mesma coisa durante a crise da habitação aqui [nos EUA]. As execuções hipotecárias das habitações deixaram muitas vazias que poderiam ser apanhadas a preços muito baixos. A Blackstone [2] apareceu, comprou todas as casas e é agora o maior senhorio dos Estados Unidos. Tem 200 mil propriedades ou algo parecido. Está à espera que o mercado dê uma volta. Quando o mercado muda, o que pode acontecer em breve, então poderá vender ou arrendar e ganhar imensos lucros com isso. Desta forma, a Blackstone ganhou uma fortuna a crise dos arrestos hipotecários, onde todos perderam. Foi uma enorme transferência de riqueza".

Harvey adverte que a liberdade individual e a justiça social não são necessariamente compatíveis. A justiça social, escreve ele, requer solidariedade social e "disposição de subordinar necessidades e desejos individuais à causa de uma luta mais geral por, digamos, igualdade social e justiça ambiental". A retórica neoliberal, com ênfase em liberdades individuais pode efetivamente "separar as ideias de liberdade, identidade política, o multiculturalismo e, eventualmente, o consumismo narcisista, das forças sociais alinhadas na procura de justiça social através da conquista do poder de Estado".

O economista Karl Polanyi entendeu que existem dois tipos de liberdade. Há as más liberdades para explorar os que nos rodeiam e extrair enormes lucros sem levar em conta o bem comum, incluindo o mal que é feito ao eco-sistema e às instituições democráticas. Essas más liberdades têm origem no facto de as grandes empresas monopolizarem as tecnologias e os avanços científicos a fim de obter enormes lucros, mesmo quando, como no caso da indústria farmacêutica, um monopólio significa que as vidas daqueles que não podem pagar preços exorbitantes são colocadas em risco. As boas liberdades – liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o seu trabalho – acabam por ser extintas pela primazia dada às más liberdades.

"Planeamento e controlo são atacados como negação da liberdade", escreveu Polanyi. "A livre iniciativa e a propriedade privada são declaradas essenciais para a liberdade. Uma sociedade construída sobre outros fundamentos é dito que não merece ser chamada de livre. A liberdade que a regulamentação cria é denunciada como falta de liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são denunciados como uma camuflagem da escravidão".

"A ideia de liberdade" degenera, assim, numa mera defesa da livre iniciativa, que significa "a plenitude da liberdade para aqueles cujo rendimento, lazer e segurança não precisam ser promovidos, e uma mera margem de liberdade para as pessoas que podem em vão tentar fazer uso de seus direitos democráticos para se defenderem do poder dos donos do capital", escreve Harvey, citando Polanyi. "Mas se, como é sempre o caso, "nenhuma sociedade é possível em que o poder e a compulsão estejam ausentes, nem num mundo em que a força não seja necessária", então a única maneira pela qual esta visão utópica liberal poderia ser sustentada é pela força, violência e autoritarismo. A utopia liberal ou neoliberal está condenada, na opinião de Polanyi, a ser frustrada pelo autoritarismo, ou mesmo pelo fascismo total. As boas liberdades estão perdidas, as más são assumidas.

O neoliberalismo transforma a liberdade de muitos em liberdade para alguns. O resultado lógico é o neofascismo. O neofascismo abole as liberdades civis em nome da segurança nacional e classifica grupos inteiros como traidores e inimigos do povo. É o instrumento militarizado usado pelas elites dominantes para manter o controlo, dividir e separar a sociedade e acelerar ainda mais a pilhagem e a desigualdade social. A ideologia dominante, não sendo mais crível, é substituída pela bota militar.

[1] O autor toma como boa a maior impostura científica da história da humanidade: a teoria do aquecimento global.   Ver Aquecimento global: uma impostura científica   e   Acerca da impostura global
[2] Blackstone: é o fundo abutre que em Portugal adquiriu o Novo Banco (ex-Banco Espírito Santo) por preço praticamente nulo.

[*] Jornalista. Durante quase duas décadas foi correspondente estrangeiro na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs. Fez reportagens em mais de 50 países e trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, Dallas Morning News e The New York Times, no qual foi correspondente estrangeiro durante 15 anos.

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/50680.htm

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Homenagem a Eugenia Gonzaga, uma procuradora notável, por Luis Nassif


"Quando as ossadas de Perus caíram em sua mesa, a procuradora Eugênia Gonzaga não tinha ideia sobre os anos de chumbo, a ditadura, a tortura. Lembrava-se, pequena, ouvindo o tio mais moço contar para o pai o que ocorria no ABC, a tortura, as prisões arbitrárias. E a indignação do pai, recusando-se a acreditar que essas barbaridades pudessem acontecer em terra tão boa quanto o Brasil.
"Sua formação política começou com o caso de Perus, ouvindo os relatos de familiares dos desaparecidos, as histórias de torturas e torturadores, principalmente o drama ancestral das famílias de quem foi tirado inclusive o direito ao luto, de velar filhos, primos, tios desaparecidos." - Luis Nassif



De onde vem a energia que empurra esta moça? Geograficamente veio das Minas Gerais, dos lados de Guaxupé, da cidade batizada de Guaranésia, a esquecida Guaramnésia, segundo os trocistas locais, a cidade prometida que se esqueceu de crescer.
De onde a moça trouxe essa sede de justiça, de solidariedade, essa vontade de ir além, de superar os limites físicos e os burocráticos?
Há pessoas que nascem assim, com o sentido de missão. E o sentido de missão da moça se encontrou com o sentido de missão que havia no Ministério Público Federal dos anos 90, a corporação revigorada pelos ventos liberalizantes da Constituição de 1988, empenhada na missão de defensora dos direitos difusos da sociedade.
Quando as ossadas de Perus caíram em sua mesa, a procuradora Eugênia Gonzaga não tinha ideia sobre os anos de chumbo, a ditadura, a tortura. Lembrava-se, pequena, ouvindo o tio mais moço contar para o pai o que ocorria no ABC, a tortura, as prisões arbitrárias. E a indignação do pai, recusando-se a acreditar que essas barbaridades pudessem acontecer em terra tão boa quanto o Brasil.
Sua formação política começou com o caso de Perus, ouvindo os relatos de familiares dos desaparecidos, as histórias de torturas e torturadores, principalmente o drama ancestral das famílias de quem foi tirado inclusive o direito ao luto, de velar filhos, primos, tios desaparecidos.
E, sem nenhuma formação política, fincada apenas na doutrina, nos princípios e, especialmente, na Constituição, pôs-se a cumprir seu dever. Denunciou legistas irresponsáveis, torturadores cruéis, políticos coniventes. A ponto de o ex-prefeito Paulo Maluf ir se queixar a um Procurador Geral da República que já tinha sido chamado de ladrão, de desonesto, mas nunca de coveiro.
Ao lado do colega Marlon Alberto Weichert tornou-se uma das principais vozes em defesa da justiça de transição – o conjunto de medidas políticas e judiciais para reparar violações de direitos humanos após períodos de ditadura. Seu trabalho e de Marlon, esgotando todas as instâncias jurídicas internas, foi essencial para que o caso Herzog fosse levado à Corte Interamericana, resultando na condenação do Brasil.
Mais que isso, descobriu o enorme poder restaurador da Constituição.
Através da Constituição entendeu que toda criança tem o direito indisponível à educação. Indisponível significa que é direito da criança, mais do que direito dos pais. Pais não podem impedir filhos de estudar, assim como não podem proibir de receber transfusões de sangue, vacinas e outros avanços alvos de preconceito supersticioso.
Crianças com deficiência não deixam de ser crianças. Logo, têm direito à educação nos mesmos ambientes das crianças sem deficiência, e não segregadas em guetos, isoladas do convívio com as pessoas sem deficiência, e, por isso mesmo, sem oportunidade de se sociabilizarem. Se não existem escolas preparadas, é responsabilidade do poder público preparar. E, dessa luta tenaz, nasceu uma política pública que, hoje em dia, acolhe 800 mil crianças com deficiência na rede federal – obra do ex-Ministro da Educação Fernando Haddad.
Por conta desse atrevimento, foi alvo de 3.500 ações preparadas por APAEs (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais) temerosas de perder seu quinhão de repasses públicos não fiscalizados.
Com a Constituição na mão e com a ânsia de mudar o mundo na alma, a procuradora foi construindo tijolo a tijolo sua obra, reforçando o lado mais legítimo do Ministério Público Federal, o trabalho da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que abrigou algumas das procuradoras referenciais do MPF – como Ella Wiecko, Deborah Duprat e, em tempos esquecidos, a própria Raquel Dodge, atual Procuradora Geral da República.
Anos atrás, aos seus inúmeros afazeres, Eugenia somou o de presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, uma comissão instituída por lei e que, desde os anos 90, servia apenas para enriquecer currículos de pessoas pouco empenhadas em buscar resultados.
Visitou cemitérios perdidos do interior da Bahia, no Araguaia, em Marabá, embrenhou-se nas matas de Foz do Iguaçu, conseguiu um laboratório junto à Unifesp para refazer as autópsias, outro na Bósnia para ajudar nas identificações. Trabalhou com esmero cada detalhe do trabalho, desde as expedições atrás de ossadas até os cuidados com cada familiar para extrair seu DNA, contornando a desconfiança que passou a dominar todos os familiares, com a falta de vontade e de resultados da Comissão.
Mais que isso, ampliou as responsabilidades do Estado para além das vítimas políticas, dos militantes da luta armada. O cemitério de Perus estava coalhado de corpos de todas as origens, não apenas vítimas da guerra armada, mas vítimas anônimas da violência policial. E todos os familiares têm direitos iguais, de saber o destino de seus parentes.
Foi assim que entregou aos familiares o atestado de óbito do espanhol que morava na Venezuela, um mero vendedor de carros, preso por engano em São Paulo, torturado porque encontraram em sua mala livros de filosofia, e, depois, morto como queima de arquivo. Décadas depois, os filhos vieram de Caracas para receber os ossos e ficarem sabendo que o pai não os abandonara, como sempre pensaram, mas fora vítima da barbárie.
Conseguiu também o direito legal das famílias de modificar o atestado de óbito de cada desaparecido, restabelecendo definitivamente sua história. A primeira retificação foi do ex-embaixador José Jobim, duplamente assassinado pela ditadura, com a morte física e com a morte moral, de enquadrá-lo na categoria dos suicidas.
Nesta segunda-feira foi anunciada a identificação de mais um desaparecido político, Aluizio Palhano Pedreira Ferreira, desaparecido em 9 de maio de 1971, em São Paulo, era integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.
Antes de ser enterrado em Perus, Palhano passou pela Casa da Morte, em Petrópolis. Nas ossadas, as marcas de costelas quebradas, pulso partido. Mas o fato de ter vindo da Casa da Morte para Perus reforçou a luta de Eugenia para que o alvo de identificação sejam todos os desaparecidos, enterrados em valas clandestinas, e não apenas as vítimas políticas sob suspeita de terem sido enterradas em Perus.
Às vésperas da grande bruma que se aproxima, o feito final foi o evento em Brasília, de segunda a quarta, que reuniu mais de uma centena de familiares de desaparecidos. E tirou da toca até o irascível e querido Bernardo Kucinsky.
Foi um encontro preparado nos mínimos detalhes, do conteúdo das fichas de inscrição, à exposição de fotos de desaparecidos, um trabalho sensível, mostrando fotos do desaparecido com familiares e contrapondo fotos posteriores dos mesmos familiares, salientando o vazio.
A semana de Eugenia foi inteiramente ocupada com follow-ups das passagens, procura de marceneiros para tirar as fotos da exposição das embalagens, os procedimentos para retirarem DNAs dos familiares. A Secretaria de Direitos Humanos não tem orçamento. Mas Eugênia já havia conseguido suprir a necessidade de recursos com emendas parlamentares. Questões burocráticas foram trabalhadas pelo WhatsApp em conversas que, às vezes, varavam a noite.
No final de tudo, a grande lição: contra o desânimo, a energia de não desistir; contra o medo, a coragem; contra o arbítrio, os princípios. E, coroando tudo, o imenso orgulho de ser brasileira.
PS – Por questão de transparência, sou obrigado a revelar que sou o “outro” na vida de Eugenia. Seu casamento indissolúvel continua sendo com o Ministério Público Federal.

Triste Privilégio da Escolha pelo Retrocesso, por Jorge Alexandre Neves, Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia)



  "O processo iniciado no Brasil a partir de 2013, contudo, me parece bem menos “padrão”. A partir da redemocratização, o país percorreu uma estrada compatível com um processo civilizatório que o levaria a ser um país moderno, desenvolvido, equitativo, justo. Claro que houve problemas ao longo do processo, mas esses poderiam ter sido enfrentados sem que se jogasse a criança fora junto com a água do banho. A partir de 2013, contudo, o Brasil se defrontou com uma encruzilhada na qual teria que escolher manter-se no caminho civilizatório ou pegar a estrada de volta ao país que sempre foi: atrasado, subdesenvolvido, extremamente desigual e injusto. Até agora, tudo indica que o país escolheu a segunda opção."

Foto: Mídia Ninja

Triste Privilégio, por Jorge Alexandre Neves
Do GGN:
Quando aluno de doutorado, na década de 1990, li o livro de Robert Putnam “Comunidade e Democracia...” e fiquei pensando no privilégio que é um pesquisador da nossa área poder observar de perto um processo de transformação social, política ou econômica de grande relevância, como tinha sido o caso dele, ao pesquisar com atenção o processo de formação dos governos regionais na Itália. De certa forma, nós cientistas sociais brasileiros estamos tendo o triste privilégio de observar de dentro o processo de profunda transformação social, política e econômica que o Brasil está passando, desde 2013.
É óbvio que o processo vivido pelo Brasil a partir da democratização também foi muito interessante e válido para nossas pesquisas. A grande maioria de nós, a partir de diferentes abordagens e enfoques, produziu e publicou muitos trabalhos sobre as três décadas que sucederam o início da redemocratização. O mesmo se pode dizer de outros períodos. Todavia, focando apenas o período a partir da redemocratização, me parece bastante claro que, até 2013, o Brasil percorreu uma trajetória mais ou menos comparável às de outros países que se redemocratizaram. Com altos e baixos, seguiu-se um roteiro razoavelmente previsível, com uma lenta, porém relevante, formação de um Estado de Bem-Estar Social.
O processo iniciado no Brasil a partir de 2013, contudo, me parece bem menos “padrão”. A partir da redemocratização, o país percorreu uma estrada compatível com um processo civilizatório que o levaria a ser um país moderno, desenvolvido, equitativo, justo. Claro que houve problemas ao longo do processo, mas esses poderiam ter sido enfrentados sem que se jogasse a criança fora junto com a água do banho. A partir de 2013, contudo, o Brasil se defrontou com uma encruzilhada na qual teria que escolher manter-se no caminho civilizatório ou pegar a estrada de volta ao país que sempre foi: atrasado, subdesenvolvido, extremamente desigual e injusto. Até agora, tudo indica que o país escolheu a segunda opção. Por outro lado, essa lamentável escolha está sendo um prato cheio para nós cientistas sociais. A produção intelectual resultante desse processo está sendo das mais profícuas. Algumas obras de grande relevância e de impacto internacional vão derivar desse processo.
O inusitado do trajeto começa já com o momento no qual se iniciou.  Em 2013, o PIB brasileiro cresceu 3%, a taxa de desemprego era de 5,4% e estava em queda. Praticamente tudo caminhava a contento. Os indicadores de saúde evoluíam bastante, bem como os de educação. Toda vez que leio esse documento da OCDE sobre o PISA-2012 (https://www.oecd.org/pisa/keyfindings/PISA-2012-results-brazil.pdf), sinto uma dor no coração. O primeiro parágrafo já é revelador (tradução minha): “Embora o Brasil tenha um resultado abaixo da média da OCDE, seu desempenho médio em matemática subiu desde 2003 de 356 para 391 pontos, fazendo do Brasil o país com a maior elevação desde 2003. Melhoras significativas também foram observadas em leitura e ciências”.
Minha hipótese principal, que já externei em outra coluna aqui no GGN (“Um Golpe Estamental”, de 11 de agosto último), é a de que está exatamente no sucesso das políticas de bem-estar social – em particular na área de educação, não apenas com a melhoria da qualidade da educação pública, mas principalmente com a queda da desigualdade educacional – a explicação pela explosão política de 2013. O estamento burocrático e profissional brasileiro sentiu-se ameaçado em sua eficaz estratégia de reprodução intergeracional.
Aí está uma especificidade brasileira que torna a estrada civilizatória particularmente árdua por nossas bandas: o inigualável poder de nosso estamento burocrático e profissional. Mesmo na América Latina, não se encontra nada igual.
Leio na imprensa que o economista Samuel Pessoa calculou que o judiciário brasileiro custa 2% do PIB, quatro vezes a média da OCDE. Ao mesmo tempo, vejo uma entrevista com Guilherme Afif Domingos na televisão, na qual faz uma certeira, porém incompleta, análise sobre a associação entre patrimonialismo e corporativismo. Mirou e acertou bem em cheio o estamento burocrático e profissional. Esqueceu-se, porém, do outro lado da moeda patrimonialista, sua associação com o rentismo. Esta última, por sinal, parece um fenômeno mais universal do que a primeira (vale a pena ler, entre outros, os trabalhos do sociólogo John Hall sobre patrimonialismo nos EUA e sua associação com o rentismo capitalista, em particular, seu capítulo intitulado “Capitalism in America: the Public Domain in the Making of Modernity – from Colonial Times to the Late Nineteenth Century”, no volume “Patrimonialism and Empire” organizado por Mounira Charrad e Julia Adams, em 2015).
A associação entre patrimonialismo e rentismo capitalista é um fenômeno encontrado em todo o mundo. Sem dúvida, ele é uma barreira para o desenvolvimento social e a democracia. Todavia, nos países capitalistas centrais houve um forte desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social, em decorrência de vários fatores (entre eles, obviamente, o contexto histórico) e um deles foi a possibilidade de uma aliança política entre a chamada “classe média” e a classe trabalhadora. No Brasil, essa aliança, quando houve, sempre foi precária e, particularmente, efêmera. O principal problema é que, aqui, não há uma típica “classe média”, pois predomina, justamente, um estamento (*). Ou seja, no Brasil, além da plutocracia rentista, o estamento burocrático e profissional (que forma a parte mais robusta e poderosa dos estratos médios) também se posta como um obstáculo ao desenvolvimento social e à redução da desigualdade.
O problema fiscal brasileiro é, fundamentalmente, um conflito distributivo. O processo político e as eleições deste ano iriam indicar a solução do conflito. Por que não me surpreendi quando li a notícia de que o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, colocou como alternativa à reforma da previdência a desvinculação dos gastos públicos (aposentadorias, pensões, BPC e seguro desemprego) do salário mínimo? Seria algo muito mais regressivo do que a reforma da previdência que está em tramitação no congresso (**). Todavia, provavelmente mais fácil de ser conseguida, pois irá atingir apenas os mais pobres e que não contam com lobbies atuando no congresso nacional. Essa medida, se ocorrer, provocará forte inclinação descendente na estrada de volta ao nosso velho Brasil de guerra.
Embora todos que somos de esquerda sejamos contra essa possível solução para o conflito distributivo brasileiro (tirar dos que já têm tão pouco), a verdade é que evitamos discutir seriamente esse conflito distributivo. Um dos problemas do impasse que o Brasil enfrenta desde 2013 é que a solução desse conflito exigiria mexer nos privilégios do estamento burocrático e profissional. Sejamos razoáveis, não há nenhum país moderno, desenvolvido, equitativo e justo que tenha diferenças salariais tão grandes entre o setor público e o setor privado. Para se buscar uma concertação, no Brasil, que resolva nosso problema distributivo de forma progressiva, seria necessário que a esquerda colocasse na mesa de negociação a redução dos privilégios do estamento público, como contrapartida a uma maior tributação da plutocracia rentista. Obviamente, essa redução de privilégios precisaria ser, ela também, progressiva. O problema está em que muitos na esquerda tendem a confundir o corporativismo com o interesse público. Se não enfrentar o corporativismo do estamento burocrático e profissional do Estado brasileiro, a esquerda jamais conseguirá resolver o problema distributivo brasileiro de forma progressiva e, assim, levar nosso processo civilizatório à sua maturidade.
Não sei se outros pesquisadores o farão. No meu caso, porém, essa parcela de culpa não vou evitar de colocar na nossa conta, ao analisar nosso passado recente. Estamos longe de ser os maiores devedores, mas precisamos reconhecer que temos nossa responsabilidade sobre a dívida social brasileira. Temos dado nossa contribuição para que o Brasil seja o que é: atrasado, subdesenvolvido, extremamente desigual, injusto.
(*) Ao contrário do que outros colegas sociólogos pensam, acredito que o processo de formalização da PEA, associado ao crescimento da renda e ao aumento das oportunidades de formação educacional técnica e superior iniciado no Brasil, a partir da década passada, era o início da constituição de uma genuína “classe média”, no Brasil. Contudo, os problemas econômicos e políticos, a partir de 2013, abortaram tal processo.
(**) Há algumas semanas, Eduardo Giannetti deu uma entrevista na qual disse temer que as políticas de Paulo Guedes – que chamou de “aventura” – arruínem o liberalismo no Brasil. Provavelmente, a desvinculação do salário mínimo no lugar da reforma da previdência irá nessa direção que ele tanto teme. Só me causa espécie que Giannetti não tenha percebido que tão ou mais destrutível para os fundamentos do liberalismo é a atuação da lava jato, ao arrepio da lei. Afinal, um dos fundamentos morais do liberalismo é “o império da lei”. O apoio entusiasmado que sempre deu à lava jato parece indicar que seu compromisso com valores liberais é seletivo e instrumental.
Jorge Alexandre Neves - Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq e articulista do jornal Hoje em Dia. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos.