segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A Justiça de Transição pós-ditadura militar nunca feita no Brasil e, na volta do macartismo de extrema-direita, o bode expiatório da vez, por Luis Nassif




Há enormes semelhanças entre a ditadura atual e o período pós 64, e entre os porões da ditadura e a Lava Jato.

Digo ditadura atual porque, desde que começou a campanha pelo impeachment, os direitos foram suprimidos no país – bem antes da chegada de Bolsonaro e preparando o terreno para ele. No período pós 2013, o discurso de ódio foi mais radicalizado ainda na mídia. Os Tribunais, especialmente de primeira instância, se envolveram no jogo político e toda forma de arbitrariedades foi cometida.

Do Jornal GGN:

Xadrez da Lava Jato como bode expiatório da hipocrisia nacional, por Luis Nassif

A Justiça de Transição que o país necessita não é a a execração pública de pessoas. É uma desafio institucional, um pacto entre poderes, especialmente aqueles que mais responsáveis pelo macarthismo do período anterior, assumindo as culpas institucionais

Peça 1 – a justiça de transição

Justiça de Transição é o sistema de julgamentos que sucede a cada período ditatorial. Consiste, de um lado, no levantamento da memória do período, de expor as chagas dos crimes cometidos, dentro do lema “para que não se esqueça, não se repita”. Depois, na reparação dos crimes cometidos. No caso das famílias de desaparecidos, em indenização financeira e pedidos oficiais de desculpas em nome do Estado que acobertou ou comandou os crimes. Depois, no financiamento de iniciativas que ajudem a lembrar os crimes – como, por exemplo, restauração de locais onde se praticava a tortura, construção de museus de memórias etc.
A lógica da Justiça de Transição é deixar claro para o país – e, especialmente, para quem praticou ou foi omisso em relação aos crimes – que tais crimes não podem passar impunes e não podem se repetir. No mínimo, há que se ter uma condenação moral e pública para constranger os que tentarem, no futuro, repeti-los.
No caso da ditadura brasileira, não houve a justiça de transição. Na Constituinte, alguns juristas   negociaram o esquecimento com as Forças Armadas, com o entendimento de que a Lei da Anistia absolvia todos os crimes, mesmo aqueles considerados crimes contra a humanidade.
Foi um acordo tão hipócrita que foram englobados nesse pacto até crimes cometidos após a promulgação da lei – como o atentado do Rio Centro e o assassinato da secretária da Ordem dos Advogados no Rio de Janeiro, assim como os atentados a bancas de revistas e tentativas de jogar bombas no centro do Rio.
Os responsáveis por esse pacto foram basicamente Sepulveda Pertence e Nelson Jobim que, mais tarde, tornaram-se Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Nas Forças Amadas, o pacto resultou em um processo de afastamento dos homens dos porões – os militares que estiveram na linha de frente da guerra suja, matando, torturando. Houve recompensas, para que pudessem iniciar a vida civil. Alguns ganharam garimpos, como foi o caso do Major Curió. Outros tornaram-se seguranças de bicheiros. Muitos criaram esquadrões da morte em vários estados. Grande parte ajudou a criar as milícias, que passaram a ocupar territórios inteiros em alguns estados.
A falta da Justiça de Transição permitiu, finalmente, que as milícias e os subterrâneos ganhassem o poder, através da eleição de Jair Bolsonaro.
A revisão da Lei da Anistia repousa há anos na gaveta do Ministro Luiz Fux, do STF, dentro da obscuridade que marca os pedidos de vista da casa.

Peça 2 – a ditadura civil instalada

Há enormes semelhanças entre a ditadura atual e o período pós 64, e entre os porões da ditadura e a Lava Jato.
Digo ditadura atual porque, desde que começou a campanha pelo impeachment, os direitos foram suprimidos no país – bem antes da chegada de Bolsonaro e preparando o terreno para ele. No período pós 2013, o discurso de ódio foi mais radicalizado ainda na mídia. Os Tribunais, especialmente de primeira instância, se envolveram no jogo político e toda forma de arbitrariedades foi cometida.
O Ministério Público Federal, em função da irresponsabilidade e exibicionismo dos procuradores da Lava Jato Curitiba e do Distrito Federal, tornou-se o bode expiatório responsável pelo estado de exceção. Mas o clima de exceção perpassou todos os poderes.
Algumas exemplos desse estado de exceção:
1. A humilhação dos funcionários do BNDES, submetidos em bloco a conduções coercitivas com acompanhamento de toda a mídia, por denúncia do Ministério Público Federal do Distrito Federal.
2. Julgamentos midiáticos em cima de denúncias falsas, como as acusações contra o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e operações contra o ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel, posteriormente arquivadas, mas que alimentaram as manchetes durante meses.
3. Procurador entrando em presídios e humilhando políticos presos, no episódio envolvendo o ex-governador Sérgio Cabral Filho. Condução de Cabral algemado nas mãos e nos pés pelo delegado federal Igor de Paula.
4. Juíza intimando o cientista Elisando Carlini, por ter participado de um evento para discutir as propriedades medicinais da maconha.
5. Invasão da Escola Florestan Fernandes, com policiais civis paulistas arrombando janelas e intimidando idosos e alunos da escola.
6. O caso Rafael Braga, o catador de recicláveis preso em 2013 durante ato público do qual sequer participava, com suspeita de flagrante forjado. Contraiu tuberculose na prisão.
7. Jovens presos em uma operação em que houve espionagem por parte de um militar. Indiciados em um caso claro de flagrante forjado. Procuradores da República correram ao local, para impedir abusos contra a moçada. Foram denunciados ao Conselho Nacional do Ministério Público por colegas do MP de São Paulo, por se intrometer no trabalho dos colegas paulistas – que não compareceram ao local.
8. Juiz de Brasilia que quase matou José Genoino, ao proibir que recebesse atendimento fora da prisão, mesmo depois de ter sido submetido a uma cirurgia cardíaca de alta complexidade.
9. Prisão de lideranças da Frente de Luta pela Moradia em São Paulo, com falso flagrante imputando a elas práticas cometidas pelo tráfico.
10. Manipulação da sentença contra Lula pelo TRF4, com os três desembargadores majorando a sentença na mesma proporção, para impedir qualquer recurso, depois de constatado que a sentença inicial de Sérgio Moro, por engano, permitiria colocar Lula em liberdade.
11. Busca e apreensão na casa de um dos filhos do Lula pela Policia Civil paulista, tendo como justificativa um telefonema anônimo.
12. Grampo no Palácio do Planalto, a pretexto de controlar os celulares da Papuda.
13. Operação Carne Fraca, que comprometeu a carne brasileira nos mercados mundiais, transformando um problema de corrupção de fiscais sanitários em uma crise do setor.
14. Proibição para que diversas universidades ministrassem cursos sobre o golpe militar de 1964.
15. Ação concatenada de Tribunais Regionais Eleitorais, autorizando invasão de diversos campus universitários pela Polícia na véspera das eleições de 2014.
16. Ação coordenada da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União permitindo invasão de campus universitários e humilhação de professores, levando ao suicídio o reitor Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina.
17. O jornalista mineiro premiado, jogado na cadeia pela polícia civil de Minas Gerais, por críticas a Aécio Neves.
Nenhum desses abusos foi denunciado como tal pela mídia na época. Sequer provocou um respiro de indignação democrática. Nenhum dos responsáveis respondeu a qualquer processo por crime de abuso de autoridade e sequer a uma condenação pela mídia. Convalidou-se o Estado de Exceção com a mídia praticando o jornalismo de guerra e os tribunais aplicando o direito penal do inimigo.
Agora, depois que o furacão Bolsonaro mostrou um perigo concreto, há um aggiornamento rápido e oportunista dos principais agentes do período de trevas, na mídia e nos tribunais superiores, assumindo a função de arautos da democracia e dos direitos. Pode-se criticar a Lava Jato sem risco.
Os crimes contra a democracia foram esquecidos e, como tal, estão sujeitos a serem repetidos.

Peça 3 – o papel do Supremo Tribunal Federal

Assim como a mídia, desde o mensalão o STF avalizou as arbitrariedades e ilegalidades da Lava Jato e convalidou aquelas politicamente mais relevantes, todas – repito TODAS – as que tinham implicações diretas em favor do impeachment e da prisão de Lula.
1. A votação da prisão após 2a instância, que poderia abrir espaço para a libertação de Lula antes das eleições. A Ministra Rosa Weber, originalmente contra a prisão em 2a instância, mudou seu voto em nome da “colegialidade” – isto é, para não ficar contra a maioria. Seu voto, por ser de desempate, definiria a maioria. Ou seja, antes de ser proferido, não havia maioria e, portanto, nenhuma razão para a tal colegialidade. Seu voto foi recheado de citações de juristas internacionais. Um repórter da Folha, na época, consultou a jurisprudência do STF e constatou que a maioria dos juristas citados constavam de votos do Ministro Luiz Edson Fachin, jamais de Rosa Weber.
2. Os algoritmos do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral, com os sorteios dos casos mais sensíveis sempre caindo com Ministros dos quais já se sabia de antemão a posição  – os de Lula e Dilma com Ministros anti-PT; os de Aécio Neves e José Serra com Ministros pró-PSDB, em ambos os casos os mesmos.
3. A autorização para a prisão de um senador da República, com base em uma grampo induzindo a uma informação falsa – a de que Lula e André Esteves, do BTG Pactual, teriam proposto uma fuga a um dos delatores da Petrobras. Notícia falsa, mas que permitiu novas prisões preventivas.
4. Impedimento de Lula assumir a Casa Civil de Dilma com base em um grampo triplamente falso: fora do prazo permitido; envolvendo conversa com a presidente da República, portanto fora da alçada da 1a instância; por não dizer respeito aos fatos investigados, não poderia ter sido divulgado. Mesmo assim, foi acatado pelo STF.
É canhestra a tentativa de atribuir os recuos do STF a um mero Twitter do general Villas Boas. Ou mencionar algumas discordâncias do STF em relação à Lava Jato, em episódios de menor relevância, como álibi para apagar a história do período. A opinião militar ganhou peso porque, antes disso, o jornalismo de guerra convalidou o vale-tudo contra os adversários políticos, transformados em inimigos.
Desde o mensalão, o fuzilamento moral pela mídia impôs o discurso de ódio, o primado de que os fins justificam os meios, promovendo  escrachos em aeroportos contra qualquer Ministro que ousasse conceder o reconhecimento dos direitos dos réus, por mais inexpressivos que fossem seus gestos – meramente acatando um embargo de declaração, por exemplo.

Peça 4 – o novo pacto da anistia

Assim como no fim da ditadura, esboça-se atualmente um novo pacto de anistia.  É relevante por duas coisas: por explicitar a ansiedade dos pactuadores em superar rapidamente o clima irrespirável do momento; mas por se saber claramente, hoje em dia, os resultados de sair dos períodos de exceção sem uma justiça de transição, sem punição – ainda que meramente moral -, uma autocrítica, um pedido público de desculpas pelo mal que causaram, abrindo espaço para a ascensão das bestas do Apocalipse na condução do país.
A falta de punição permite a instrumentalização dos princípios e a reiteração dos abusos. O sujeito, jornalista, político, homem público, Ministro, pula de um barco para outro e pode voltar para o barco inicial sem risco de ser exposto e podendo retornar daqui a pouco ao barco do golpismo.
A força desses homens-bambus (que acompanham o movimento dos ventos) reside em sua exposição pública. A imagem pública de alguém deveria ser a síntese dos atos que pratica. E um dos atributos é a coerência em torno de princípios claros. Bolsonaro é coerente, no alinhamento com a barbárie. Mas os novos campeões da democracia, não são. Nós sabemos o que eles fizeram nos últimos verões.
Não se trata de revanchismo, de criminalizar pessoas, mesmo porque o grande pacto nacional tem que se dar em torno de um amplo processo de pacificação. Mas se trata de expor e condenar as práticas nas quais incorreram.
Juristas progressistas, que avalizaram o impeachment, precisam admitir que transformar um problema contábil em crime de responsabilidade é uma violência contra a democracia. Ministros do STF que aceitaram o estupro da Constituição, sob o argumento de que a presidente tinha perdido condições de governabilidade, tem que assumir que seu papel é defender a Constituição. Imprensa que praticou, e ainda pratica, o jornalismo de guerra, tem que buzinar aos quatro cantos que os princípios legitimadores do jornalismo são a defesa dos direitos e a diversidade de opiniões. O PT tem que admitir que o excesso de pragmatismo político comprometeu todo um projeto popular e expôs aos inimigos a Petrobras.
Sem essa purgação dos pecados, tudo será como antes. Ou seja, se os fins procurados exigem garantismo, tornam-se garantistas; se os fins exigem punitivismo, punitivistas se tornam, sem a menor preocupação com a coerência. Voam da intolerância mais abjeta para o legalismo mais defensável sem serem cobrados. Qual a garantia de que, passado o fantasma Bolsonaro, não retomem o discurso de ódio do período anterior, sabendo que a memória publicada e televisada tem prazo de validade, não quer saber os pecados que foram cometidos.
É esse país de hipócritas que se deseja legar para as próximas gerações?
Há um pacto em andamento, similar ao pacto da anistia, que consiste dos seguintes passos:
* Atribuam-se todos os abusos do período à Lava Jato Curitiba, ao brilho inexcedível de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, que conseguiram ludibriar mídia, Supremo, tribunais superiores.
* Considerem-se todos os escorregões do STF como fruto da ação incomparavelmente maliciosa de Moro explorando a boa fé de Ministros ingênuos (levante alguns casos irrelevantes, em que decisões de Moro foram reformadas, para defender a ação isenta do Supremo no período).
* Atribua a adesão incondicional da mídia à Lava Jato como reflexo legítimo da indignação com a corrupção, mesmo que tenha feito a divisão entre os corruptos do lado de lá e os do lado de cá, e poupado os amigos.
* Esqueça que todos os abusos da Lava Jato foram testemunhados por repórteres setoristas, alocados em tempo integral da operação e que esconderam as torturas inflingidas a presos, as retaliações contra delegados que reagiram contra as ilegalidades. Diga que foi a astúcia incomparável de Moro que permitiu levar a mídia no bico e todos se beneficiaram profissionalmente da parceria por idealismo desprendido.

Peça 5 – Moro e a Lava Jato

A figura pública de Sérgio Moro foi exposta pela primeira vez como Ministro da Justiça. Na Lava Jato era apenas o juiz monossilábico que se manifestava através de sentenças mas que, nas audiências, mostrava uma timidez surpreendente para o personagem criado pela mídia.
Conhecendo, agora, ele, Deltan Dallagnol e seus colegas, dá para apostar na narrativa dos seres cerebrais, que manipularam STF, mídia, tribunais superiores? É evidente que não. Foram apenas instrumentos de um jogo muito maior. Aliás, ambos, juiz e procuradores, foram a parte mais viciada da aliança nacional pelo impeachment, pelo excesso de pequenas ambições, pelo discurso salvacionista e pelo deslumbramento tipicamente provinciano.
Na Vazajato, juiz e procuradores, que se tornaram a principal peça para derrubar uma presidente da República, se encantavam com o mercado de palestras, com os convites para salões grã-finos, com os cachês recebidos, em fazer bonito para a sua Igreja e para seu banco de investimento de predileção, ou em exibir fotografias de viagens internacionais em seus perfis, em uma demonstração típica de agentes políticos microscópicos, que agiam apenas como bactérias oportunistas sobre o tecido social e político do país.
Transformá-los em bodes expiatórios não melhorará em nada a democracia brasileira. Apenas mudará a guarda para as próximas aventuras antidemocráticas, para as quais serão convocados novos personagens dos porões.

Peça 6 – o novo arreglo da anistia 

A Justiça de Transição que o país necessita não é a a execração pública de pessoas, não é ajoelhar no milho nem se vergastar em público. É uma desafio institucional, um pacto entre poderes, especialmente aqueles mais responsáveis pelo macarthismo do período anterior, assumindo as culpas institucionais.
Um primeiro ensaio de autocrítica seria a defesa intransigente de um aprofundamento da democracia e não apenas da perna penal da Lava Jato. Por exemplo, cobrar do Procurador Geral da República Augusto Aras a recomposição da área de direitos humanos que tem em cargo chave, hoje em dia, um procurador terraplanista de ultra-direita. As áreas de direitos humanos têm sido desmontadas no âmbito da Procuradoria Geral da República, sem um centésimo da repercussão dos temas da Lava Jato. Apoiar o PGR sem exigir a contrapartida da recuperação da defesa dos direitos difusos e das minorias, é hipocrisia.
Um segundo ensaio seriam manifestações de Ministros do Supremo – especialmente os que mais se lambuzaram com o clima da Lava Jato – de afirmação dos princípios constitucionais e o fim da manipulação das eleições com suas decisões. E uma defesa firme dos direitos daqueles que eram e continuam sendo tratados como “inimigos’.
Um terceiro ensaio seria a mídia ir além das meras manifestações de fé na democracia e assumir a defesa intransigente das vítimas do outro lado – lideranças rurais e indígenas assassinadas, jornalistas independentes massacrados por ondas de processos, o genocídio na periferia etc.
Principalmente, o reconhecimento que foi essa guerra política irresponsável, essa exploração do ódio, do direito penal do inimigo que levou o Brasil ao ponto mais baixo da degradação moral, com a eleição e, mais do que isso, a contemporização com a presidência de Jair Bolsonaro.

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domingo, 2 de agosto de 2020

“Livro das suspeições”, escrito por juristas, evidencia parcialidade de Moro e dos procuradores da Lava Jato



Organizado por Lenio Streck e Marco Aurélio Carvalho, do grupo Prerrogativas, livro traz 34 artigos de juristas sobre a parcialidade e os abusos cometidos por Sérgio Moro e procuradores na operação Lava Jato




(Foto: Reuters | ABr)

Catarina Barbosa e Geisa Marques, Brasil de Fato - 

Em um momento em que se discute a retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da parcialidade do então juiz Sérgio Moro na operação Lava Jato e o afastamento do procurador Deltan Dallagnol da força-tarefa, o grupo Prerrogativas, formado por advogados e defensores públicos, lançou neste sábado (1), em transmissão ao vivo pela internet, O livro das suspeições. 


A obra reúne artigos escritos por 34 juristas, nos quais as ações do então juiz Sérgio Moro e dos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) que atuaram na força-tarefa são examinadas, tendo como resultado a evidenciação da atuação parcial dos agentes públicos em diversos momentos da operação.
A publicação é organizada pelos juristas Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho, que também integram a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Streck ressalta que uma das propostas da disponibilização do conteúdo, que pode ser baixado gratuitamente, é levar os bastidores da Lava Jato para além da comunidade jurídica e informar que “todos temos direito a juízes imparciais, e Moro não foi imparcial”.
“Não é um livro sobre pessoas, sobre um personagem, um réu, uma pessoa. É um livro que alerta para o que acontece todos os dias em um país como o Brasil. Juiz e Ministério Público não podem ter lado. O livro das suspeições é um tratado sobre o direito fundamental de que cada réu seja acusado por um Ministério Público isento e um juiz imparcial, como fazem os grandes tribunais da Europa e, em todo o mundo, os tribunais democráticos. São imparciais”, pontua.
Leia o livro abaixo, ou baixe o arquivo neste link.
“Projeto de poder”
As ações e resultados obtidas pela Lava Jato, segundo o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), que atuou na operação, também reforçam que havia um “projeto de poder” em jogo. A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva impediu sua participação na eleição presidencial de 2018, que teve Jair Bolsonaro (sem partido) como vitorioso. Mesmo depois de dizer que “jamais entraria para a política”, o ex-juiz aceitou o convite para ser ministro da Justiça e Segurança Pública do governo eleito.
“Nós falávamos que tinha um projeto de poder, mas tínhamos que comprovar. Hoje está comprovado. Um dos procuradores reconheceu que votou e trabalhou para o atual presidente, que, evidentemente, foi eleito em função de projeto de poder e dos excessos da Lava Jato”. 
O advogado se refere ao procurador regional aposentado Carlos Fernando do Santos Lima, que afirmou à imprensa, em 2019, que a força-tarefa tinha um candidato “preferido” na época das eleições, alegando que “os lava-jatistas eram a favor do Bolsonaro”.
A parcialidade de Sérgio Moro, conforme aponta a jurista Dora Cavalcanti, também se mostra em sua postura nas audiências. Cavalcanti cita, entre outros pontos, a negativa do magistrado para perguntas da defesa, pedidos de produção de provas e solicitações para verificar o relacionamento entre o Ministério Público brasileiro e autoridades estrangeiras, no âmbito na cooperação jurídica internacional. 
“Esse desequilíbrio vinha até mesmo na forma indelicada e irônica de tratar o acusado, de tratar os advogados dos acusados que estavam fazendo um trabalho de defesa e o trabalho daquele advogado que ficava acompanhando um delator. Havia ali um tratamento completamente desigual, irônico e desrespeitoso”, pontua.
Outro ponto levantado foi quanto às condenações no Tribunal Regional Federal, no caso envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O jurista Fábio Tofic Simantob diz que Moro "se despiu de sua toga" ao assumir um lado. "Será que haveria essas condenações se o juiz fosse outro?", questionou.
Em sua análise, Moro se portou, desde o início da operação, como um Juiz de ataque, um juiz que via o seu réu como um adversário. 
O que fazer quando se sabe que sabe?
A provocação que perpassa o livro se direciona à sociedade e às instituições. Diante do acúmulo de constatações de abusos apontados por juristas acerca dos excessos da Lava Jato, fica o questionamento sobre o que fazer. 
Dois julgamentos que devem acontecer nos próximos meses podem jogar luz à questão. O primeiro deles é o pedido de remoção do procurador da República Deltan Dallagnol da operação Lava Jato. Segundo informação divulgada pela CNN Brasil, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tem maioria para punir o coordenador da força-tarefa.
Na pauta do CNMP há diversos processos contra Dallagnol, que está envolto em suspeitas aprofundadas pelo procurador geral da República, Augusto Aras. 
Sem singularizar o caso do procurador, Marco Aurélio de Carvalho, um dos organizadores do livro, afirma que "muito menos sobre tal ou qual reu e muito mais sobre a reacreditação do sistema de justiça”.
A mesma avaliação é compartilhada por Kakay. Ao ser questionado sobre a retomada do julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no Supremo Tribunal Federal (STF), o jurista evitou individualizar o caso, mas ressaltou a relevância da decisão dos ministros. 
“Nós queremos uma resposta. Nós esperamos que a Suprema Corte dê essa resposta, inclusive, revertendo os dois votos já feitos. É uma esperança minha, não apenas pelo caso, mas por aquilo que representa simbolicamente pro futuro, para outros julgamentos. Porque isso será o precedente. As pessoas não estão se dando conta, esse será um precedente. Se o Supremo julgar que ele não é suspeito, como ficará o sistema judiciário a partir daí?, indaga.
Conforme informação da coluna de Mônica Bergamo, do jornal Folha de São Paulo, O julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo do triplex em Guarujá (SP) deve ser analisado na Segunda Turma da Corte apenas em sessões presenciais. Por causa do cenário de pandemia, ainda não há previsão previsão para o retorno. 
Em novembro, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, irá se aposentar, e é dele o voto considerado decisivo no caso. O presidente Jair Bolsonaro é quem nomeará o substituto, o que pode mudar o cenário previsto para a votação.
Além dos juristas mencionados nesta matéria, entre os autores dos artigos também estão alguns dos nomes mais importantes do Direito no Brasil, como Alberto Toron, Juliano Breda, Carol Proner, Flávia Rahal, Priscila Pâmela e Roberto Podval.



sábado, 1 de agosto de 2020

Sobre o bolsonarismo...




Delírio ideológico, síndrome de messianismo, militarismo e profundo ódio à democracia.... isso é o bolsonarismo....

Greg News: Ideologia dos mIlitares brasileiros



Do Canal Greg News, da HBO:

Confira o 17º episódio da 4ª temporada do Greg News, com Gregorio Duvivier! Toda sexta, às 23h, você assiste a um novo episódio na HBO Brasil.


O Caso Banestado, o maior escândalo de corrupção do Brasil onde o juiz foi Moro, que o ajudou a abafar e as ligações com a Lava Jato: A infernal máquina brasileira de lavar dinheiro, por Pepe Escobar



Como um esqueleto que chacoalha no armário, o caso Banestado volta à tona. Uma retomada das investigações pode deixar em maus lençóis os barões das finanças, próceres da Operação Lava Jato e figuras carimbadas do sistema político



Por Pepe Escobar, no Asia Times |Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Duas décadas depois de um terremoto político, um potente tremor secundário que deveria sacudir o Brasil está sendo recebido com um silêncio estrondoso.
O que agora é chamado de “vazamentos do Banestado” e “CC5gate” é algo parecido com o antigo caso WikiLeaks: uma lista publicada pela primeira vez na íntegra, dando nomes e detalhando um dos maiores casos de corrupção e lavagem de dinheiro do mundo nas últimas três décadas.
Esse escândalo pode nos proporcionar o saudável exercício daquilo que Michel Foucault reconhecera como uma “arqueologia do saber”: sem entender esses vazamentos, é impossível colocar no devido contexto eventos que vão dos sofisticados ataques de Washington ao Brasil ― inicialmente via NSA [National Security Agency (Agência de Segurança Nacional norte-americana)], espionando o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2010-2014) ― até a operação “Lava Jato”, que pôs na cadeia Luis Inácio Lula da Silva, e abriu o caminho para a eleição do presidente neofascista Jair Bolsonaro.
Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede.Veja como participar >>>
O crédito pelo furo jornalístico desta trama de guerra híbrida orwelliana deve ser tributado, mais uma vez, à mídia independente. O pequeno site Duplo Expresso, liderado pelo jovem e ousado advogado internacional Romulus Maya, radicado em Berna, foi quem publicou a lista pela primeira vez.
Uma épica live de cinco horas reuniu os três principais protagonistas da denúncia do escândalo, no final dos anos 90, e que agora se dispõem a confrontá-lo novamente: o então governador do Estado do Paraná, Roberto Requião, o promotor federal Celso Tres e o agora superintendente aposentado da Polícia Federal, José Castilho Neto.
Anteriormente, em outra live, Maya e o antropólogo Piero Leirner, principal analista de guerra híbrida do Brasil, me informaram sobre as inúmeras complexidades políticas dos vazamentos, enquanto discutíamos a geopolítica no Sul Global.
As listas do CC5 estão aquiaqui e aqui. Vejamos o que as torna tão especiais.

O mecanismo

Em 1969, o Banco Central do Brasil criou o que viria a ser conhecida como a “conta CC5”, para facilitar empresas e executivos estrangeiros na transferência legal de pequenos ativos para o exterior. Por muitos anos, o fluxo de caixa nessas contas não foi significativo. Então, nos anos 90, tudo mudou, com o surgimento de uma grande e complexa movida criminosa focada na lavagem de dinheiro [N. do T. preferiu-se aqui, com o termo “movida”, em parte fazer uma evocação ao bem conhecido movimento boêmio-cultural espanhol, como uma onda, uma agitação, mas também evocar a polissemia que o termo guarda no castelhano latino-americano].
A investigação original do Banestado começou em 1997. O promotor federal Celso Tres ficou surpreso ao descobrir que, de 1991 a 1996, o equivalente a nada menos que 124 bilhões de dólares havia sido transferido para o exterior. No final das contas, durante toda a existência dessa movida (de 1991 a 2002), o total escalaria para 219 bilhões de dólares ― situando o Banestado no cerne de um dos maiores esquemas de lavagem de dinheiro do mundo em todos os tempos.
O relatório do promotor Celso Tres deu origem a uma investigação federal, que partiu de Foz do Iguaçu ― estrategicamente situada na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai ―, onde os bancos locais lavavam fundos vultosos através de suas contas CC5.
Eis como funcionava: os doleiros do mercado negro, em conluio com funcionários dos bancos e do governo, faziam uso uma vasta rede de contas bancárias, em nome de laranjas e de empresas fantasmas, para lavar recursos ilegais oriundos de corrupção pública, fraude tributária e crime organizado, em especial por meio do Banco do Estado do Paraná (Banestado) em Foz do Iguaçu. Daí chamar-se “caso Banestado”.
Até 2001, a investigação federal parecia não chegar a lugar algum, quando então o superintendente da Polícia Federal José Castilho constatou que a maioria das transferências estava, na verdade, caindo em contas da agência do Banestado em Nova York. Castilho foi a Nova York em janeiro de 2002 para acelerar o necessário rastreamento internacional dos fundos.
Através de uma ordem judicial, Castilho e sua equipe revisaram 137 contas do Banestado em Nova York, acompanhando a movimentação de 14,9 bilhões de dólares. Em alguns casos, os nomes dos beneficiários eram os mesmos de políticos brasileiros que atuavam no Congresso, ministros e até ex-presidentes.
Depois de um mês em Nova York, Castilho volta ao Brasil com um relatório de 400 páginas. Apesar das evidências esmagadoras, ele foi removido da investigação, suspensa então por, pelo menos, um ano. Quando o novo presidente Lula assume o governo no início de 2003, Castilho volta à ação.
Em abril de 2003, Castilho identificou uma conta particularmente interessante no banco Chase Manhattan, chamada “Tucano” ― apelido do PSDB, liderado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), no poder antes de Lula e que mantivera laços muito próximos às máquinas políticas do presidente norte-americano Bill Clinton e do primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Castilho foi fundamental na criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o caso Banestado. Mas, mais uma vez, essa Comissão não levou a lugar algum. Não houve sequer a votação de um relatório final. A maioria das empresas negociou acordos com a Receita Federal do Brasil e, assim, encerrou qualquer possibilidade de ação judicial no que respeita à sonegação de impostos.

O caso Banestado encontra a Lava Jato

Em essência, os dois maiores partidos políticos, o PSDB neoliberal, de FHC, e o Partido dos Trabalhadores, de Lula ― que jamais enfrentaram de fato as maquinações imperialistas e a classe rentista brasileira ― participaram ativamente para enterrar uma investigação aprofundada do caso.
Além disso, ao suceder FHC, Lula, de forma consciente ou talvez na intuição de preservar a governabilidade, tomou a decisão estratégica de não investigar a corrupção tucana, embalada por uma série de privatizações desonestas.
Os promotores de Nova York chegaram ao ponto de preparar uma lista especial do Banestado para Castilho, com o que realmente importava para o processo criminal: o circuito completo do esquema de lavagem de dinheiro, apresentando os fundos inicialmente remetidos de forma ilegal para fora do Brasil, por meio das contas CC5; sua passagem através das agências, em Nova York, dos bancos brasileiros envolvidos; até chegar nas contas e fundos fiduciários dos paraísos fiscais (por exemplo, Cayman, Jersey, Suíça); para só então retornar ao Brasil sob a forma ― plenamente lavada ― de “investimento estrangeiro”, quando então se prestariam ao uso real e gozo dos beneficiários finais, os verdadeiros donos da grana.
No entanto, o ministro da Justiça brasileiro, Marcio Thomaz Bastos, nomeado por Lula, bloqueou o avanço das investigações. Como nota metaforicamente o superintendente Castilho: “Isso me impediu de voltar ao Brasil com o cadáver do crime”.
Embora Castilho nunca tenha posto as mãos nesse documento crítico, pelo menos dois deputados brasileiros, dois senadores e dois promotores federais, que mais tarde ascenderiam à fama como “estrelas” da operação Lava Jato ― Vladimir Aras e Carlos Fernando dos Santos Lima, ― o teriam obtido. Por que e como o documento ― chamêmo-lo de “bolsa de defunto” ― nunca foi encontrado nos processos criminais no Brasil é ainda um mistério complementar a cobrir todo o enigma.
Enquanto isso, existiriam relatórios “não confirmados” (várias fontes se esquivam em registrar isso) de que esse documento pode ter sido usado para extorquir os envolvidos, majoritariamente bilionários, que figuram na lista.
O condimento extra, na esfera judicial, está no fato de que o juiz estadual acusado por alguns de enterrar o caso Banestado não era outro que não Sergio Moro, a figura autoassumida como o Elliot Ness dos trópicos, que na próxima década alcançaria a condição de superestrela, como o capo di tutti capi da Lava Jato e daí, por consequência, ministro da Justiça de Bolsonaro. Moro acabou renunciando e agora já está, de fato, fazendo campanha para concorrer à presidência em 2022.
E aqui chegamos à conexão tóxica Banestado-Lava Jato. Considerando especulações, sobre o suposto modus operandi de Moro na Lava Jato, de alterar nomes nos documentos com a finalidade de pôr Lula na cadeia, o desafio agora seria provar se Moro “vendia” não-condenações no caso Banestado. Ele dispunha de uma desculpa legal conveniente: sem o “corpo do crime” arrolado no processo criminal no Brasil, ninguém poderia ser considerado culpado.
À medida que mergulhamos nos detalhes excruciantes, o Banestado se parece cada vez mais com o fio de Ariadne que pode desvelar o começo da destruição da soberania do Brasil. Um conto cheio de lições a serem aprendidas por todo o Sul Global.

O rei do dólar paralelo

Naquela live épica, Castilho fez soar um alarme quando se referiu a 17 milhões de dólares que haviam transitado pela filial do Banestado em Nova York e depois, de todos os lugares do mundo possíveis, acabou sendo enviado para o Paquistão. Ele e sua equipe descobriram isso apenas alguns meses após o 11 de setembro. Enviei-lhe algumas perguntas sobre o assunto, e ele respondeu, por meio de Romulus Maya, que seus investigadores podem desenterrar tudo novamente, pois um relatório indicaria a origem desses fundos.
É a primeira vez que essas informações são divulgadas ― e suas ramificações podem ser explosivas. Estamos falando de fundos duvidosos, possivelmente de operações com drogas e armas, saindo da tríplice fronteira, que historicamente é um dos grandes nódulos de operações clandestinas da CIA e do Mossad.
O financiamento pode ter sido proporcionado pelo chamado rei do dólar paralelo, Dario Messer, via contas CC5. Não é segredo que os operadores do mercado paralelo na tríplice fronteira estão todos conectados ao tráfico de cocaína do Paraguai ― e também a evangélicos. Essa é a base do que Romulus Maya, Piero Leirner e eu já caracterizamos como o “Evangelistão da Cocaína”.
Messer é uma engrenagem indispensável na máquina de reciclagem associada ao tráfico de drogas. O dinheiro viaja para paraísos fiscais sob a proteção do imperialismo, é devidamente lavado, e ressuscita gloriosamente em Wall Street e no centro financeiro de Londres, com o bônus extra para os Estados Unidos de diminuir parte de seu déficit em conta corrente. Taí a deixa para entender a “exuberância irracional” de Wall Street.
O que realmente importa é a livre circulação de cocaína; escondida ― por que não? ― numa inusitada carga de soja ― o que, de quebra, garante a saúde do agronegócio. Essa é uma imagem duplicada da rota da heroína da CIA no Afeganistão, que eu detalhei em outro lugar.
Em termos políticos, Messer é, antes de mais nada, o elo perdido crucial da ligação com Moro. Até uma grande mídia como O Globo foi forçada a admitir, em novembro passado, que os negócios sombrios de Messer foram “monitorados” sem trégua por duas décadas, por diferentes agências de inteligência norte-emericanas, em Assunção e em Ciudad del Este, no Paraguai. Moro, por sua vez, é um trunfo para duas diferentes agências norte-americanas ― o FBI e a CIA ―, além do Departamento de Justiça.
Nessa trama complexa, Messer pode ser o coringa. Mas também existe um Falcão Maltês, e, como aquele imortalizado no filme clássico de John Huston [a partir da obra literária homônima de Dashiell Hammett], existe apenas um Falcão Maltês. Ele está atualmente em um cofre na Suíça.
Refiro-me aos documentos oficiais originais, apresentados pela gigante da construção civil Odebrecht à operação Lava Jato, que foram indiscutivelmente “manipulados”, “a princípio” pela própria empresa, mas também, “talvez”, em conluio com o então juiz Moro e a equipe de acusação liderada por Deltan Dallagnol.
E isso foi feito não apenas com o objetivo de incriminar Lula e as pessoas próximas a ele, mas também, estrategicamente, para excluir qualquer menção a indivíduos que não deviam, sob hipótese alguma, ser trazidos à luz… ou aos bancos dos tribunais. E, sim, você adivinhou se pensou no rei do dólar paralelo, ao que tudo indica, acolitado pelos Estados Unidos.
O primeiro impacto político sério que se seguiu à liberação dos vazamentos do caso Banestado é que os advogados de Lula, Cristiano e Valeska Zanin, finalmente, e de forma oficial, solicitaram às autoridades suíças a entrega dos originais.
O ex-governador Roberto Requião, aliás, foi o único político brasileiro a pedir publicamente a Lula, em fevereiro, que buscasse os documentos na Suíça. Não é surpresa que Requião seja agora a primeira figura pública no Brasil a pedir a Lula que torne ostensivo todo o seu conteúdo, tão logo o ex-presidente ponha as mãos nele.
A lista real, não adulterada, de pessoas envolvidas na corrupção da Odebrecht está repleta de grandes nomes ― incluindo a elite judiciária.
Confrontando as duas versões, os advogados de Lula podem, finalmente, ser capazes de demonstrar a fabricação de “evidências” que levaram à prisão de Lula e também, entre outros desdobramentos, ao exílio do ex-presidente do Equador Rafael Correa, à prisão de seu ex-vicepresidente Jorge Glas, a prisão do ex-presidente Ollanta Humala e sua esposa e, mais dramaticamente, ao suicídio do ex-presidente do Peru, Alan Garcia.

Patriot Act brasileiro

A grande questão política agora não é descobrir o grande mestre manipulador que enterrou o escândalo do Banestado há duas décadas. Como detalhou o antropólogo Piero Leirner, o que importa é que a apuração das informações contidas no vazamento das contas CC5 do caso se concentre no maquinário de como a corrupta grande burguesia brasileira, em associação com políticos e agentes do Judiciário (nacionais e estrangeiros), se entronizou como classe rentista e, ainda assim, eternamente submissa e controlada pelos arquivos “secretos” do imperialismo.
O vazamento inédito da lista de contas CC5 do Banestado pode permitir o reconhecimento do sentido dos lances políticos por trás do fracasso recente de Lula. Trata-se de uma guerra de espectro total (“híbrida”), onde piscar não é uma opção. E o projeto geopolítico e geoeconômico de destruir a soberania do Brasil e transformá-la em uma subcolônia imperial está vencendo, sem dúvida.
O potencial explosivo desses vazamentos do Banestado e do CC5gate pode ser medido pela reação dos diversos limited hangouts [“mediadores coarctativos” ou “entregadores limitados” ou, numa velha terminologia sindical, “pelegos”]: um silêncio estrondoso, que abrange partidos de esquerda e meios alternativos supostamente progressistas. Para a grande mídia, por seu turno, para quem o ex-juiz Moro é uma vaca sagrada, um vazamento como esse é considerado, na melhor das hipóteses, uma “história antiga”, “fake news” ou até mesmo não mais que uma “farsa”.
Lula está diante de uma decisão fatídica. Com acesso a nomes até agora mantidos nas sombras pela Lava Jato, ele pode ser capaz de detonar uma bomba de nêutrons e resetar todo o jogo político, expondo um furúnculo de ministros do Supremo ligados à Lava Jato, promotores federais, promotores estaduais, jornalistas e até mesmo generais que receberam fundos da Odebrecht no exterior. Sem falar de trazer para a berlinda o rei do dólar paralelo, Dario Messer, quem, de fato, controla o destino de Moro. Isso significa, em última instância, apontar um dedo diretamente para o estado profundo dos Estados Unidos. Não vai ser uma decisão fácil de tomar.
Agora está claro que os credores do Estado brasileiro eram, originalmente, devedores. Cruzando as contas, seria possível fechar o círculo contábil do lendário “desequilíbrio fiscal” do Brasil ― exatamente no momento em que essa praga é embandeirada, mais uma vez, com a intenção de dizimar os ativos do precarizado Estado brasileiro. O ministro das Finanças, Paulo Guedes, neopinochetista e líder de torcida de Milton Friedman, já avisou que vai continuar vendendo empresas estatais como se não houvesse amanhã.
O plano B de Lula seria fechar um tipo de acordo que enterraria todo o dossiê ― exatamente como a investigação original do Banestado foi enterrada há duas décadas ― na tentativa de preservar a liderança do Partido dos Trabalhadores como uma oposição domesticada, sem tocar naquilo que se tornou o essencial na questão: como e por que Guedes está vendendo o Brasil.
Essa parece ser a opção preferida de Fernando Haddad, que perdeu a eleição presidencial para Bolsonaro em 2018 e é uma espécie de versão brasileira de Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile. Ele é um neoliberal envergonhado, que sacrificaria tudo para ter mais uma chance de ascender ao poder, possivelmente em 2026.
Se o Plano B acontecer, ele pode vir a galvanizar a ira dos sindicatos e movimentos sociais ― a classe trabalhadora brasileira de carne e osso, que está às portas de ser dizimada pelo neoliberalismo anabolizado e pelo conluio tóxico da versão brasileira, inspirada nos EUA, do Patriot Act, com esquemas militares que lucram com o Evangelistão da Cocaína.
E tudo isso depois que Washington ― com sucesso ― quase destruiu a campeã nacional Petrobras, um dos alvos iniciais da espionagem da NSA. Zanin, advogado de Lula, também acrescenta ― e talvez já seja tarde demais ― que a “cooperação informal” entre Washington e a operação Lava Jato, nos termos do Decreto 3.810/02, era, na realidade, ilegal.

O que Lula vai fazer?

No pé em que está a apuração das informações a partir do vazamento do caso Banestado, uma primeira lista VIP do Banestado foi elaborada. Ela inclui o atual presidente do Superior Tribunal Eleitoral e ministro do Supremo, Luis Roberto Barroso, banqueiros, magnatas da mídia e industriais. O promotor da operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, por sua vez, parece ser muito próximo da corte judiciária neoliberal instalada no STF.
A lista VIP pode ser lida como um roteiro das práticas de lavagem de dinheiro dos brasileiros do 0,01% ― estimados em aproximadamente 20.000 famílias detentoras da dívida interna brasileira de quase um trilhão de dólares. Uma grande parte desses fundos foi reciclada para voltar ao Brasil como “investimento estrangeiro” através do esquema CC5 na década de 1990. E foi exatamente assim que a dívida interna do Brasil explodiu.
Ainda assim, ninguém sabe, em detalhes, onde a torrente de dinheiro sujo, lavada pelo Banestado, realmente acabou chegando. A “bolsa do defunto” nunca foi formalmente reconhecida como tendo sido trazida de volta de Nova York, e nunca entrou em nenhum processo criminal. No entanto, o crime de lavagem de dinheiro pode ser considerado como continuado ― e, assim, sua prescrição não seria aplicável. Portanto, alguém ou alguns, poderiam ir para a cadeia. Parece que, para breve, não vai ser o caso.
Enquanto isso, patrocinado pelo Estado Profundo dos Estados Unidos, pelas finanças transnacionais e pelos operadores das elites locais ― alguns de farda, outros de toga ― o golpe de guerra híbrida em câmera lenta contra o Brasil continua se espraiando, dia após dia, aproximando-se do domínio de espectro total.
O que nos leva à questão-chave final: o que Lula vai fazer a respeito?