Na “reorganização” das escolas do Estado, dois cacoetes das elites: decidir sem debate e oferecer às maiorias o mínimo. Mas Florestan Fernandes inspira a resistir
Por Fernanda Feijó1 - Pesquisadora do Laboratório de Política e Governo da UNESP
Fonte: Outras Palavras
O Brasil caracteriza-se por estabelecer políticas sociais de forma autoritária: sempre “de cima para baixo”. Tal fenômeno tem marcado o desenvolvimento do país desde os primórdios da República (se considerarmos que o Império era um regime autoritário em si) até os dias atuais. Podemos perceber a força desse autoritarismo quando falamos mais especificamente de políticas educacionais e dos percursos que as mesmas percorreram ao longo do último século.
Desde a década de 1930, quando a intelectualidade brasileira iniciava o processo de institucionalização das ciências sociais, já se anunciava a importância da educação formal dentro do país, ainda que naquele momento a preocupação maior fosse formar quadros para a elite dirigente do país que pudessem impulsionar o processo de modernização que se colocava em curso. No contexto de centralização política propiciada pela Revolução de 1930, a educação nacional passa, então, efetivamente a ser responsabilidade do Estado. Foi justamente nesse momento, que o Brasil ensaiou o desenvolvimento de um “pseudoestado de bem-estar”, a saber extremamente conservador e autoritário, na qual o Estado realizava reformas sem a participação da sociedade nos processos decisórios.
Esse contexto é fundamental para compreender as origens da nossa cultura política tão antidemocrática, na qual vigora o famoso esquema “de cima para baixo”, onde a população não tem a possibilidade de participar, efetivamente das decisões acerca de política que vão influenciar diretamente sua vida.
Nem na primeira experiência política de fato democrática que o país experimentou, a partir de 1945, houve participação democrática no que tange aos processos decisórios em termos das políticas educacionais. O caso da primeira Lei de Diretrizes e Bases (lei 4024/61), deixa claro o movimento antidemocrático que ronda a questão educacional no país. Sua tramitação demorou longos 15 anos para ser concluída, durante um período no qual grupos de intelectuais lutavam por uma educação pública, democrática, laica e de qualidade. Apesar de diversos movimentos e da participação intensa de personalidades como Florestan Fernandes na defesa da escola pública, a lei aprovada, ao final, representava apenas a vontade da elite, favorecendo o ensino privado.
Com o fim desse primeiro ciclo democrático e a ascensão de um novo governo autoritário, não se poderia esperar nada melhor da Reforma Jarbas Passarinho (Lei 5692/71), executada em 1971 no seio da ditadura militar, que incentivava ainda mais a privatização e também o tecnicismo da educação.
Com o novo advento da democracia, esperava-se conseguir uma nova perspectiva, especialmente no que tange à questão das políticas sociais, sobretudo após tantos anos de autoritarismo nas decisões. Nesse espírito foi concebida a “Constituição Cidadã”e em conformidade com a mesma, iniciou-se o processo de construção de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/96). A princípio, a tramitação da LDB deu-se a partir de uma visão democrática e participativa, pensando o avanço democrático e que pudesse qualificar as políticas nacionais de educação. O primeiro projeto de lei da nova LDB constituiu-se a partir de discussões que envolveram, além dos parlamentares, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), representante da sociedade civil através de educadores, intelectuais, estudantes, etc. Ou seja, um ampla discussão perpassava a construção da nova lei, levando-se em consideração a necessidade da construção de uma escola pública de qualidade.Porém nem ela escapou à sanha autoritária das decisões políticas que reinam na nossa cultura política. A LDB tramitou durante 8 anos no pós-redemocratização, durante os quais a correlação de forças políticas dentro do Congresso Nacional passou por diversas movimentações. No momento em que ela foi aprovada (1996), a base governista apoiava o projeto que o poder executivo, então PSDBista, elaborava para a educação nacional. Nesse sentido, aprovou-se uma Lei de Diretrizes e Bases com um sentido administrativo bastante distinto daquele concebido no início da sua discussão, no qual se ampliava o controle do poder executivo (e consequentemente anulava-se o de outras instâncias da sociedade civil) sobre as decisões acerca da educação nacional.
Esse breve contexto histórico nos permite compreender a dimensão histórica do problema pelo qual passamos, uma vez que os problemas que vivênciamos na educação paulista agora são fruto, ao mesmo tempo, da herança política autoritária e das reformas educacionais executadas ao longo da nossa história, mas sobretudo das que viriam na década de 1990. Tais reformas foram realizadas em nível nacional, mas o estado de São Paulo, por estar alinhado política e partidariamente com o governo central à época, adotou tais medidas incondicionalmente, servindo de modelo para essa nova política instaurada.
A política educacional adotada pelo governo federal na década de 1990 foi realizada e em consonância com as transformações político-econômicas vigentes no país na mesma época. Nesse período, não só o Brasil, mas a América Latina como um todo, realizou reformas estruturais no aparelho do Estado, como tentativa de superar os graves problemas econômicos que assolavam esses países, pautadas no ideário dos países desenvolvidos – considerados “potências econômicas” – acerca das medidas a serem tomadas para frear a recessão e incentivar o crescimento dos países latino-americanos. Nesse contexto, o Brasil passou a assistir a uma intensa desregulamentação das relações de mercado, bem como da organização de produção e trabalho, cada vez mais complexificados pela revolução tecnológica e econômica impulsionada pelo avanço da globalização.
Consequentemente, as políticas educacionais formuladas no final do século XX foram elaboradas a partir das novas formas de organização das esferas sociais e políticas, resultando em uma reforma institucional na qual se procurou adequar o currículo escolar às novas exigências do mercado de trabalho e às mudanças tecnológicas, pois o profissional que passa a ser exigido pelo mercado deveria, então, ser “criativo”, “imaginativo”, “adaptável”, “maleável” e “autônomo”, de forma que as motivações pessoais acabam por se sobrepor aos valores coletivos. A educação brasileira vai dar vazão a essa lógica que subordina a educação às exigências da estrutura econômica vigente, através de uma legislação educacional que preconiza um currículo que prima por um viés educacional individualista e cognitivista.
Desse modo, sob o auspício do governo do PSDB, tanto em nível nacional quanto no estado de São Paulo, estabeleceu-se uma centralização administrativa na qual o Estado passa a ter total controle sobre as reformas a serem implementadas, porém de forma absolutamente autoritária (conforme a tradição política do país…), uma vez que toda discussão realizada com a sociedade civil – organizada ou não – era ignorada pelo poder público na hora de implementar as políticas necessárias.
Nesse contexto, o governo Mário Covas com a Secretaria de Educação de São Paulo sob o controle de Rose Neubauer, inicia uma reforma, também à época (1995) denominada de “reorganização”. Os objetivos eram os mesmos que permeiam a “reorganização” agora proposta por seu suecessor Herman Voorwald: dividir as escolas por ciclos/faixas etárias, com o intuito de melhorar a qualidade da oferta de ensino.
Porém, a intenção de realizar essa “reorganização” fazia parte da reforma nacional mais ampla: economizar com a educação, segundo os ditames de bancos e organismos internacionais (BIRD, BM, UNESCO, dentre outros). Reorganizar, nesse sentido, significava fechar salas e instituir parcerias, tanto com os municípios visando o avanço do plano de municipalização do ensino fundamental (previsto na Constituição e, com mais foco, na LDB que ainda seria aprovada no ano seguinte), quanto com a iniciativa privada, no intuito de se despojar de diversas de suas responsabilidades – ainda que, em termos de determinar as políticas, a centralização autoritária das decisões permanecesse.
O estado de São Paulo, ao pautar a reforma que se inicia em 1995, baseou-se em estudos de agências internacionais – cujo objetivo era analisar que tipos de políticas poderiam otimizar resultados educacionais – que“mostravam” que reduzir o número de alunos por sala e investir em valorização de docentes era um investimento que não se justificava, uma vez que medidas mais baratas como a adoção das já referidas parcerias, também propiciavam desempenho positivo nos exames externos de qualidade da educação. A reorganização, portanto, foi guiada por uma visão econômica do processo educativo; realizando, na verdade, mais uma reforma administrativa que buscava maior aproveitamento de resultados a custos mínimos do que, de fato, uma reforma que pudesse melhorar a qualidade do ensino.
Qualquer análise grosseira da atual condição em que se encontra a educação paulista hoje é capaz de apontar o fato de que essa reforma, vinte anos depois, não resultou em qualidade, nem em avanços para o ensino. Pelo contrário. Para aqueles que, como nós, estamos em franco e cotidiano contato com a rede estadual de ensino, fica claro o quanto a escola pública está sucateada. Salas superlotadas (onde estão as classes ociosas??), falta de infraestrutura como bibliotecas, laboratórios, salas multimídia, para além do ajuste fiscal realizado esse ano, a partir do qual diversas escolas ficaram sem o material básico de trabalho (papel sulfite, canetas, papel higiênico, etc).
Fácil compreender porque, nesse momento, a secretaria de Educação apela, mais uma vez, para a velha medida de “reorganização”. Vinte anos atrás deu resultado. Economizou-se bastante dinheiro: à custa da qualidade do ensino, à custa de salas fechadas, de acordos escusos com a iniciativa privada, à custa do emprego de professores.
Mais uma vez, o Estado se utiliza da tradição autoritária que nossa tradição impõe, de estabelecer uma política de cima pra baixo,determinando que a divisão por ciclos vai ocorrer sem consulta aos diretamente envolvidos: alunos, seus pais e professores. Mais uma vez, o discurso aponta para a garantia de aumento da qualidade da educação, caso os alunos sejam divididos por ciclos (Anos iniciais do ensino fundamental – 1º a 5º anos, anos finais do ensino fundamental – 6º a 9º anos e Ensino Médio – 1ª a 3ª séries). Porém, se não deu certo há vinte anos, o que garante que dará certo agora? Em quais pesquisas (sérias) o governo se baseia para afirmar que essa divisão de ciclos é melhor para nossas crianças e adolescentes? Além disso, outro argumento que sustenta a decisão para essa reforma (sim reforma! É um movimento muito grande para ser denominado apenas de “reorganização”) é o das “classe ociosas” em função da diminuição de alunos no estado. Que houve a diminuição, concordamos. Que existem salas sem utilidade, não! Por que não diminuir a quantidade de alunos por turma? Ou reaproveitar salas como laboratórios, multimeios, bibliotecas…
Não existem classes sem aluno! O que existe é classe sem professor, escola sem biblioteca, banheiro sem papel higiênico… E agora alunos sendo considerados como números, com sua subjetividade e afeto por sua escola, professores, funcionários e amigos, sendo veementemente ignorados.
Essa é a cultura política que impera no nosso país: antidemocrática, que desencoraja a participação da população nas decisões que impactarão diretamente as suas vidas. Tratando-se ainda de educação, tal situação torna-se ainda mais grave: como formar alunos aptos à participação política democrática se à eles é imposta toda e qualquer política que, na maior parte das vezes, não tem como foco a qualidade do seu ensino?
Por isso é preciso resistir. É preciso que permaneçamos firmes lutando, como lutou nosso saudoso mestre Florestan Fernandes da década de 1950 até o fim de sua vida, por uma educação pública, democrática, laica e de qualidade.
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1Professora de Sociologia da rede estadual paulista de ensino.Doutoranda em Ciências Sociais pela FCLAr – UNESP.
1Professora de Sociologia da rede estadual paulista de ensino.Doutoranda em Ciências Sociais pela FCLAr – UNESP.
Pesquisadora do Laboratório de Política e Governo da UNESP.
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