terça-feira, 31 de março de 2020

Não há filantropia ou reza que neutralize a natureza corrupta do capitalismo, por Álvaro Miranda



Para além do coronavírus, o próprio passado já nos sinaliza a transitoriedade do capitalismo por seu caráter pernicioso e sórdido de portador de crises e guerras.

Não há filantropia ou reza que neutralize a natureza corrupta do capitalismo

por Álvaro Miranda

A pandemia do coronavírus confirma a natureza corrupta do sistema capitalista – obviedade para muitos e enigma para outros que se aconchegam em crenças cristãs e humanitárias, a fim de encostar a cabeça em paz no travesseiro na hora de dormir e esperar mais um dia seguinte de notícias ruins. 
Desnecessário lembrar, pois nada tendo a ver, tanto a suposta ambivalência do ser humano expressa pelo mito bíblico de Adão e Eva – que teriam se tornado versados no bem e no mal depois da mordida na maçã –, como a ideia idílica de Rousseau, para quem o homem nasce bom mas é corrompido pela sociedade. 
Ética se constrói na experiência e não no abstrato, como se fosse igual para todo mundo. Evidente que ações filantrópicas e voluntárias isoladas são bem vindas aqui e ali, mas a superfície da boa vontade alheia pode esconder, involuntariamente, nesses gestos a essência da podridão estrutural da convivência nesse tipo de sociedade. E, em alguns casos, chega a incentivar e reproduzir a corrupção com uma postura álcool gel de limpar a própria consciência, mesmo apoiando o obscurantismo.
Ninguém tem “culpa” pelo sistema capitalista, nem os próprios capitalistas, que surgiram historicamente reificados, assim como o proletariado, ambos visceralmente relacionados nas contradições da exploração do trabalho – esse fenômeno não tão óbvio que tem a ver com o metabolismo do ser humano com a natureza na fase adiantada de sua evolução. 
Diferentemente das demais espécies de animais, o ser humano não só se adapta à natureza como a transforma, fazendo escolhas entre alternativas já prontas e criando e construindo uma infinidade de outras nesse processo de viver “com e na” natureza – sendo ele mesmo natureza, ao mesmo tempo em que se afasta da chamada “barreira natural” com o desenvolvimento tecnológico.
Nessa parada aí não existe ente esotérico, acima da lua, supra-humano ou algo do infinito intervindo. Se é algum castigo, o coronavírus não veio do além, mas sim das ações desse capitalismo, suas formas de criação de animais, transformação genética e outros elementos da produtividade em massa de víveres ligada à concorrência. É o ser humano e só ele no seu estar aí na natureza. Não cabe também cair na ingenuidade de questionar se houve ou se está havendo ou não evolução desde os tempos das cavernas. 
Claro que a evolução da vida em sociedade – o capitalismo como fase passageira desse processo – faz parte do afastamento do ser humano da barreira natural. Porém – e essa é a percepção de Marx e Engels, a partir, mas questionando os hegelianos – tal trajetória é feita de contradições, conflitos e história, e não de uma racionalidade abstrata de aprimoramento inevitável com um fim “último” e linear previsto porque o ser humano seria “racional” e superior às demais espécies.
Difícil dizer para onde estamos caminhando. Porém, não tão complicado constatar que, para se compreender o que somos e por que somos assim, há que se ter um olhar histórico a fim de saber como chegamos até aqui, no tal século XXI – este contemporâneo ao qual muitos querem tratar como presente perpétuo. Este momento como se fosse resultado de uma suposta “revolução tecnológica” abstrata, sem o entrelaçamento deste instante com as revoluções industriais dos séculos passados, suas guerras e as mudanças nas formas de produzir e fazer circular as mercadorias.
Para além do coronavírus, o próprio passado já nos sinaliza a transitoriedade do capitalismo por seu caráter pernicioso e sórdido de portador de crises e guerras. São muitos os exemplos da natureza corrupta deste sistema, que se esconde ou se manifesta em diferentes manifestações discursivas e práticas, além do próprio ethos da democracia liberal. 
Reúno aqui apenas alguns rápidos exemplos, a começar, portanto, pelo binômio igualdade-liberdade consagrado pelas revoluções burguesas europeias e estadunidense dos séculos XVII e XVIII. 
O que, contraditoriamente, forma a base de uma ideia de democracia, esconde a hipocrisia da falsa igualdade na venda e compra da força de trabalho – vale dizer, como se capitalistas e trabalhadores fossem equiparados porque um compra e o outro vende sua força de trabalho, juridicamente, em condições supostamente “iguais”. 
Daí também a falsa liberdade dos indivíduos – uma vez que serão mais livres, potencial ou efetivamente, aqueles que tiverem mais recursos e poder, tanto materiais como políticos, simbólicos e culturais. E haja liberdade religiosa derramando-se pelos excessos de alguns que fazem tudo para destruir a laicidade do estado.
Outra face oculta do caráter corrupto do capitalismo é a tal racionalidade econômica. Esta contempla os princípios da concorrência e das oscilações do mercado, os contratos de “boa fé”, os “os elementos não contratuais do contrato” (Durkheim), o “valor de mercado”, o estado mínimo, a falsa ideia de mercado sem estado e, dentre outras situações, os preços sobre preços, a exemplo dos varejistas estarem reclamando essa semana que os bancos aumentaram os juros em plena pandemia. 
Sem falar do banditismo mais grotesco do aumento exorbitante de preços de álcool gel, máscaras, equipamentos e outras mercadorias de emergência. A tal “mão invisível” do mercado de Adam Smith revelou-se um dos mantras mais cínicos que atravessou os últimos dois séculos e meio. Aqui, diga-se de passagem, a longevidade não confirma verdades, mas sim a própria exploração dos seres humanos por outros seres humanos através de muito sangue, suor, guerras, pernadas dos mais fortes contra os mais fracos e do casamento espúrio entre a ideia cristã e a racionalidade capitalista.
Pluralidade de moedas nacionais (por que não um equivalente a uma moeda mundial, como Keynes chegou a pensar?), bolsa de valores, guerras, novos colonialismos, concentração de renda, fome, desequilíbrios ecológicos, desastres ambientais provocados pela ganância da produtividade, enfim, um conjunto de escombros que, convenhamos, não tem nada de esotérico ou ético, antiético ou aético de um dos lados da ambivalência humana.
A etnografia registra casos de comunidades indígenas, que a arrogância ocidental classifica como primitivas – comunidades que têm cultura e capacidade tecnológica para acumular excedentes de alimentos durante um ano. Isso, sem freezers. Em doze meses, os indivíduos dessa sociedade aproveitam o tempo para outras atividades, seja de natureza lúdica, o amor, a dança, a pesca ou a arte, além da eventual guerra, se necessário, contra forças que possam ameaçá-las.
No último dia 27, o Valor Econômico publicou reportagem dando conta de que a maioria das grandes empresas negociadas na bolsa brasileira tem dinheiro em caixa e aplicações financeiras para cobrir mais um de ano de pagamento da folha de salários de seus funcionários. O jornal diz na primeira página:
“Um levantamento feito pelo Valor Data com base em dados de balanços indica que 85% dessas companhias conseguiriam honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que parassem de faturar durante 12 meses por causa dos efeitos da pandemia de coronavírus. Metade das empresas restantes (15%) conseguiriam cobrir pelo menos seis meses de salários. Os dados se referem a 97 empresas não financeiras que fazem parte do Ibovespa e do Índice Small Caps (…)”.
A matéria pondera que não foram considerados os gastos com impostos, energia e outros itens, ausência que poderia distorcer a análise e propiciar ilações equivocadas. Mesmo assim, há algo que chama a atenção, sobretudo, no que diz respeito à força e capacidade de ação de empresas privadas e instituições públicas, diferentemente de iniciativas isoladas que se prontificam, bem intencionadas, à filantropia, mas podendo incentivar, involuntariamente, o risco de embaçar um debate mais radical e necessário sobre nossos problemas estruturais.
De nada adiantam pingos no oceano de águas revoltosas. Fica assim cada vez mais pertinente a interpretação de Walter Benjamin do quadro de Paul Klee, “Angelus Novus”. O anjo da história, segundo Benjamin, voa de costas para o futuro, com olhos arregalados e esbugalhados por ver a sucessão de tanto escombro aos seus pés na medida em que não consegue fechar suas asas agitadas pelo vendaval do progresso.  

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