sexta-feira, 20 de março de 2020

Giorgio Agamben, o coronvírus e a peste pseudo-intelectual terraplanista das redes sociais e o oportunismo autoritário de certos políticos, por Caio Henrique Lopes Ramiro e Roberto Bueno


  A hipótese de Agamben é bastante interessante. Um ponto importante a se observar diz respeito à diferença de sua intervenção pública com relação a manifestações irresponsáveis de alguns governantes ao redor do mundo. Ao que parece Agamben não pretende relativizar as potencialidades do novo vírus, mas, sim, propor uma reflexão acerca dos impactos políticos do reconhecimento de uma epidemia e, ainda, do uso estratégico de argumentos, a fim de induzir estados de pânico coletivo e justificar medidas de exceção, ou, em seu momento, de adotá-las de modo desnecessariamente amplificado tendo apenas em consideração a janela de oportunidades, tenha sido ela fabricada ou não.


Do site de estudos e crítica jurídica Justificando:


O vírus e a peste

Imagem: Agência Brasil

Por Caio Henrique Lopes Ramiro e Roberto Bueno


O vírus e a peste


No dia 26 de fevereiro de 2020, o filósofo italiano Giorgio Agamben publicou no periódico Il Manifesto um interessante artigo a respeito, a saber: Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata¹.


Desde o final do ano de 2019, precisamente no dia 31 de dezembro, o mundo tomou conhecimento do aparecimento de um novo vírus corona, a partir do comunicado feito pelas autoridades chinesas à Organização Mundial da Saúde (OMS), dando conta de casos, a partir da cidade de Wuhan, de infecções respiratórias parecidas com uma pneumonia. No início do corrente ano foi alcançado o sequenciamento do novo vírus e, na data de 20 de janeiro, o cientista chinês Zhong Nanshan confirmou a transmissibilidade entre seres humanos.  

A partir de então ocorreu um rápido processo de discussão, em um sentido forte, de deliberação racional e científica e, como não poderia deixar de ser em tempos de pós-verdade, de disseminação de notícias falsas e relativização dos impactos da doença e, muito também, pelo desserviço prestado por algumas plataformas digitais que franqueiam o espaço para a prática do abuso da liberdade de expressão, com a propagação de mentiras contra os argumentos da ciência (a questão das vacinas, por exemplo) e ataques às universidades e às fontes do conhecimento e seus atores em geral, por um nítido ressentimento de uma notável massa orgânica de pseudointelectuais ─ à busca de aliar reconhecimento público à posições de poder ─ que brotaram do submundo das mídias sociais.

O que nos interessa é uma reflexão a partir do diálogo em sentido forte a respeito dos problemas gerados pelo novo vírus. No dia 26 de fevereiro de 2020, o filósofo italiano Giorgio Agamben publicou no periódico Il Manifesto um interessante artigo a respeito, a saber: Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata¹. Em linhas muito gerais, o ponto de Agamben é examinar as reais motivações para a emergência inaugurada com o surgimento do novo vírus. Para tanto, o filósofo italiano parte da análise da declaração oficial do Consiglio Nazionale delle Ricerche – CNR, que não apontou, a princípio, a existência de uma epidemia e, ainda, dispôs: “a infecção, pelos dados epidemiológicos hoje disponíveis sobre dezenas de milhares de casos, causa sintomas leves/moderados (um tipo de gripe) em 80-90% dos casos. Em 10-15%, pode se desenvolver uma pneumonia, cujo decurso é benigno na maioria absoluta. Estima-se que apenas 4% dos pacientes necessitem de hospitalização em terapia intensiva”. Nesse horizonte de perspectiva, esta análise inicial foi um dos condicionantes para que a Itália viesse a conhecer o estado sanitário atual.

A questão para Agamben está em construir uma reflexão a partir da hipótese do estado de exceção como paradigma normal de governo. Dessa forma, não pretende ser uma mistificação teológica acerca dos eventos do tempo de agora, conforme dispõem algumas objeções². Nesse sentido, o filósofo italiano questiona o diagnóstico oficial, pois se a situação real na Itália era a descrita no documento supramencionado, qual o sentido de se espalhar “um clima de pânico provocando um verdadeiro e próprio estado de exceção, com sérias limitações das movimentações e suspensão do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho em regiões inteiras?” (AGAMBEN, 2020, s/p). A gravidade dos fatos desmentiria a timidez da análise do Consiglio Nazionale delle Ricerche e, por outro lado, da iminente necessidade da tomada de medidas restritivas das liberdades públicas por razões sanitárias objetivas.

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Para Agamben há uma desproporção nas medidas tomadas e o documento do CNR, o que permitiria o diagnóstico de que o terrorismo teria esgotado suas possibilidades como forma de justificação das medidas de exceção e, desse modo, “a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite” (AGAMBEN, 2020, s/p) e, neste sentido, caberia indagar sobre a real origem da presente pandemia, se acaso derivada do modelo de uma guerra biológica. Além disso, a situação atual, segundo Agamben, permite verificar a construção de um estado de medo nas consciências dos indíviduos, o que implica no aparecimento de estados de pânico coletivo, que podem ser desencadeados pela epidemia, bem como permitem a verificação da aceitação de um recuo das liberdades, tendo em vista a obssessão e o desejo de segurança, que para Agamben são induzidos pelos governos, e deste modo, apenas reforçando o que já foi bem descrito e analisado em seu momento como doutrina do caos por Naomi Klein.

A hipótese de Agamben é bastante interessante. Um ponto importante a se observar diz respeito à diferença de sua intervenção pública com relação a manifestações irresponsáveis de alguns governantes ao redor do mundo. Ao que parece Agamben não pretende relativizar as potencialidades do novo vírus, mas, sim, propor uma reflexão acerca dos impactos políticos do reconhecimento de uma epidemia e, ainda, do uso estratégico de argumentos, a fim de induzir estados de pânico coletivo e justificar medidas de exceção, ou, em seu momento, de adotá-las de modo desnecessariamente amplificado tendo apenas em consideração a janela de oportunidades, tenha sido ela fabricada ou não. Em algumas partes do globo, talvez seja possível verificar que há um nível maior de infecção pela Peste, um grau de infecção talvez pior do que o do corona vírus, agora conhecido como Covid-19.

Albert Camus (1913-1960), filósofo e literato argelino, fez da Peste um de seus personagens centrais e, no ano de 1947, publica o livro cujo título é A peste (La peste). Importante notar que a obra vem a público apenas dois anos após o fim do segundo conflito planetário. A narrativa se passa em uma pequena cidade localizada na Argélia, a saber: Oran e tem como um de seus personagens centrais o médico e habitante local Rieux. A cidade é descrita como tranquila, uma localidade em que os habitantes vivem de maneira confortável. No entanto, a urbe é assolada por uma peste que abruptamente atinge os cidadãos. A peste é inicialmente vinculada a uma infestação de ratos na cidade. Não obstante, dias após o aparecimento dos animais, surgem os primeiros habitantes acometidos dos sintomas de uma doença desconhecida e, a princípio, a população de Oran não leva muito a sério a nova doença. Contudo, o contágio é rápido e a peste progride, forçando a cidade de Oran a isolar-se do resto do mundo.

Aqui, cumpre ressaltar que a Peste também será personagem de outro importante livro de Camus, a saber: Estado de Sítio. Ora, ao que parece Camus pretendia de fato era colocar em questão que a Peste pode estar relacionada a certo tipo de ideário autoritário de linhagem fascista e, no fundo, trata-se de algo que aparece sem causar muita estranheza. Além disso, Camus apresenta no texto de Estado de Sítio, que a Peste tem por objetivo o governo, vindo a tornar-se o governante e dirigente autoritário da vida dos cidadãos, sendo notável a utilização das circunstâncias como instrumento eficiente para a consecução de fins antidemocráticos de intensidade variável.

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Nesse sentido, vale citar um trecho de Estado de sítio, quando a Peste afirma que: “Eu reino. É um fato. É, portanto, um direito. Mas um direito que não se discute, ao qual deveis adaptar-vos. Aliás, não vos iludais: se reino é à minha maneira […] Não possuo cetro e tomei o aspecto de um suboficial. É maneira que encontrei de vos atormentar, pois é bom que sejais atormentados: tendes tudo por aprender. Vosso rei tem as unhas negras e o uniforme sóbrio. Não está sentado no trono: está sitiando. Seu palácio é uma caserna; seu pavilhão de caça, um tribunal. O estado de sítio está proclamado” (CAMUS, 1979, pp. 58-59). A partir dessa reflexão de Camus, bem como provocados pelo texto de Agamben, parece-nos possível notar que a peste do ideário autoritário foi inoculada de maneira sútil nas sociedades ocidentais, o que implica ─ mesmo do ponto de vista da reação pautada pela racionalidade científica ─, certo clamor por medidas de exceção em nome da segurança, estratégia autoritária junto às sociedades que vêm sendo estimulada e, não obstante, foi percebida e denunciada por filósofos como Walter Benjamin, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Nesse ponto é importante lembrar a voz da Peste: “Eu não me esqueço de ninguém. Todos suspeitos – eis um bom começo” (CAMUS, 1979, p. 60) e, assim, portanto, não há povo ou classe de privilegiados, de escolhidos, todos são suspeitos e potencialmente culpáveis e, logo, em potência, inimigos de seu reinado e, nesta condição, todos eles ao alcance do irremediável castigo e punição.

Ora, no texto de A Peste, o que vai ocasionar uma série de sentimentos ligados ao medo nos cidadãos de Oran é o isolamento. Conforme mencionado linhas atrás, Albert Camus parece pretender relacionar A Peste com o ideário autoritário, de tal modo, destaca que em determinado momento a condição de isolamento vai desencadear toda espécie de violências, como, por exemplo, a falsa crença de que uma solução para o problema de Oran pode estar no ato de queimar as casas dos infectados, cuja reflexão atualizada pode ser a sua ampliação, transitando do isolamento para a justificativa do extermínio, seja por intervenção deliberada ou pela simples carência de meios para o atendimento dos necessitados. O isolamento como reposta ou prevenção à conjuntura do novo corona vírus foi antecipado há muito tempo pelo hiperindividualismo da busca de interesses egoísticos, que já obstacularizaram em grande medida sentimentos de solidariedade e cuidado para com a alteridade, não só no que diz respeito ao reconhecimento de direitos, mas, também, de responsabilidade com o outro. Portanto, desde muito vem sendo destruída qualquer possibilidade de uma reflexão a respeito de uma vida comum, com o incentivo massivo de uma vida atomizada, fria e vazia.

A forma de vida atomizada pode não ser necessariamente aquela que saiu das sombras e agora brada na esfera pública uma espécie de melancolia pelos regimes autoritários e ditatoriais, mas, invariavelmente, deixa-se, por medo, infectar pela promessa fascista e autoritária da Peste: “trago-vos o silêncio, a ordem e a absoluta justiça” (CAMUS, 19179, p. 60). Assim, talvez o ambiente seguro para os negócios seja mesmo o silencioso espaço dos cemitérios e das valas comuns onde se empilharam o produto das fábricas de morte nazistas, por exemplo. O que se torna imperioso observar com Camus, Agamben e, antes dele com Walter Benjamin, é que o estado de exceção na qual vivemos tornou-se a regra e, no mundo, pode-se notar, em algumas partes, a presença da Peste reinando com o aspecto de suboficial e, infelizmente, ao relativizar desdenhosamente a situação, estão, no fundo, a decidir soberanamente quem vive e quem morre, pois, para espectro ideológico do autoritarismo de linhagem fascista, algumas vidas não merecem viver.


Caio Henrique Lopes Ramiro é Professor no curso de Direito do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP).
Roberto Bueno é Professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Notas:
[1] O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada”. As traduções são livres e de nossa autoria, salvo indicação em contrário. Há uma excelente tradução do texto em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada.
[2]O texto de Agamben gerou um debate e sofreu objeções. Ver: Paolo Flores D’Arcais – http://temi.repubblica.it/micromega-online/filosofia-e-virus-le-farneticazioni-di-giorgio-agamben/; Davide Grasso http://www.minimaetmoralia.it/wp/agamben-coronavirus-lo-eccezione/

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