terça-feira, 13 de agosto de 2019

O ditador, a sua ‘obra’, e o grande blefe do senhor Guedes que trabalho patra o sistema Pinochet, por José Luís Fiori



A experiência do Chile pode servir de advertência às lideranças políticas, sociais e econômicas brasileiras, que não queiram repetir no Brasil a tragédia do “fascismo de mercado” do ditador Augusto Pinochet.


O ditador, a sua ‘obra’, e o grande blefe do senhor Guedes

por José Luís Fiori

Bem antes das urnas eletrônicas, o Brasil viu um rinoceronte conquistar 100 mil votos e um chimpanzé chegar aos 400 mil. Nasceu assim, em 1959, o voto protesto, que colocou o Rinoceronte Cacareco como vereador de São Paulo. Anos depois, em 1988, o Macaco Tião ficou em terceiro na disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro. (IG São Paulo, https://ultimosegundo.ig.com.br, 21/09/2014)
É comum entre os economistas neoliberais elogiar o Chile e considerá-lo um modelo econômico que deve ser imitado. Mais do que isto, no Brasil do capitão Bolsonaro, é costume elogiar a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), que concedeu um poder quase absoluto a um grupo de jovens economistas – liderados pelo superministro Sergio de Castro – para aplicar, ainda na década de 70, o primeiro grande “choque neoliberal” do mundo. Este transformou o Chile num verdadeiro “laboratório de experimentação” e numa espécie de “modelo de exportação” e propaganda das políticas e reformas liberais defendidas pela “Escola de Chicago”, que era o templo mundial do ultraliberalismo econômico naquela época. No entanto, a verdadeira história dessa “experiência econômica” chilena costuma ser falsificada, para induzir uma comparação que é inteiramente espúria, e um engodo que é inteiramente ideológico. Senão vejamos, ainda que de forma extremamente sintética, alguns dados importantes dessa história, começando por algumas informações mais elementares, porém indispensáveis para quem se proponha a fazer comparações entre economias e entre países.
No dia do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende – 11 de setembro de 1973 –, o Chile tinha apenas 10 milhões de habitantes, cerca de 1/21 da população brasileira, e tinha um PIB de U$ 16,85 bilhões, uma partícula de 1/130 do PIB brasileiro atual. O Chile não possuía petróleo nem autonomia energética, estava longe da autossuficiência alimentar, e além disso, não tinha indústria pesada, nem dispunha de setor produtivo estatal relevante que não fosse na indústria do cobre.
A economia chilena era quase inteiramente dependente da produção do cobre, e além deste, só exportava madeira, frutas, peixes e vinhos. Ou seja, dependia inteiramente das suas importações de petróleo e derivados, de produtos químicos, de materiais elétricos e de telecomunicações, de máquinas industriais, de veículos, de gás natural e de alimentos, quase tudo que era essencial para a reprodução simples da sociedade chilena. Por fim, o Chile era um país isolado, talvez o mais isolado do mundo, com pequena expressão demográfica, e nenhuma relevância militar ou geopolítica que não fosse para a Argentina, na Patagônia, e para a Bolívia e o Peru, na região do Atacama.
Pois bem, foi nesse pequeno país, com características econômicas, demográficas e geopolíticas extremamente simples, que se utilizou pela primeira vez o pacote das tais reformas que depois viraram um “mantra” repetido pelos governos neoliberais, em todo o mundo: flexibilização ou precarização do mercado de trabalho; privatização do setor produtivo estatal; abertura e desregulação de todos os mercados, e em particular, do mercado financeiro; abertura comercial radical e fim de todo tipo de protecionismo; privatização das políticas sociais de saúde, educação e previdência; e finalmente, privatização inclusive dos serviços públicos mais elementares, tipo água, esgoto, e de fornecimento de energia e gás. No caso do Chile, este programa foi aplicado durante os 17 anos da ditadura militar, sem enfrentar nenhum tipo de oposição política ou parlamentar, e com total apoio de um ditador que assassinou 3.200 opositores, prendeu e torturou 38 mil pessoas e obrigou ao exílio mais de 100 mil chilenos. Para não falar do fato de que, de 1973 a 1985, o governo militar impôs “toque de recolher”, ou “toque de queda”, das 10 horas da noite às 6 horas da manhã, valendo para todos os chilenos, e não apenas para 30 ou 40 portadores de tornozeleiras eletrônicas. Ou seja, durante 12 anos, toda a população chilena foi obrigada a ficar fechada em suas casas, todas as noites, como se estivesse internada num campo de concentração, e se alguém fosse surpreendido na rua no horário proibido, podia ser preso ou fuzilado, sem direito de apelação. No entanto, apesar de tudo isto, os resultados econômicos das políticas e reformas neoliberais dos “Chicago Boys” do ditador Pinochet foram absolutamente medíocres, para não dizer que foram catastróficas, ao contrário do que pensa o “superministro” de Economia do capitão, e do que diz toda a imprensa conservadora.
Para entender esse blefe ou engodo, vejamos alguns fatos e números mais importantes, para não cansar os que não gostam muito de cifras e estatísticas econômicas e sociais. Mas antes de entrar nos números, é fundamental que os leitores separem o que foi a história da ditadura, entre 1973 e 1990, daquilo que ocorreu depois do fim da ditadura, entre 1990 e 2019. Além disso, dentro da história econômica da ditadura, é necessário distinguir dois grandes períodos: o primeiro, que foi de 1973 a 1982, e o segundo, de 1982 até 1990.
Pois bem, foi no primeiro destes dois períodos econômicos da ditadura que os “Chicago Boys” do general Pinochet aplicaram seu grande choque neoliberal, que culminou com uma crise catastrófica, em 1982, e obrigou o governo militar a estatizar o sistema bancário chileno, demitir o seu superministro da Economia e reverter várias das reformas que haviam sido feitas. Como aconteceu, por exemplo, com a volta atrás da desregulamentação do setor financeiro e da própria política cambial que vinha sendo praticada pelo Banco Central do Chile. Para que se tenha uma ideia da magnitude desse desastre neoliberal, basta dizer que, em 1982, o PIB chileno caiu 13,4%, o desemprego chegou a 19,6% e 30% da população chilena se tornou dependente dos programas de assistência social que foram criados ad hoc, para enfrentar a crise. E assim mesmo, quatro anos depois, já em 1986, o PIB per capita chileno ainda era de apenas US$ 1.525, inferior ao patamar que havia alcançado em 1973.
No final da ditadura, o PIB real per capita médio do Chile havia crescido apenas 1,6% ao ano, um resultado muito próximo da estagnação econômica, ao qual se deve somar uma taxa de 18% de desemprego, e de 45% da população situada abaixo da linha de pobreza. No ano de 1990, o PIB per capita médio dos chilenos, calculado com base na paridade do poder de compra, era de apenas US$ 4.590, inferior ao do Brasil, que naquele momento, depois da “década perdida” de 1980, ainda era de US$ 6.680. Considerar isto um “sucesso” é, no mínimo, um caso de desfaçatez intelectual, quando não de deslavada propaganda ideológica.

Agora bem, o que também nunca é dito pelos economistas neoliberais é que foi só depois do fim da ditadura, no período de quase 30 anos, entre 1990 em 2019, e em particular durante os 20 anos dos governos da “concertação” de centro-esquerda, formada por partidos de tendência social-democrata, que o PIB chileno de fato cresceu a uma taxa média de 7%, na década de 90, e de aproximadamente 4,6% durante todo o resto do período democrático. Foi nesse período, e sob esses governos de centroesquerda, que a renda média dos chilenos quintuplicou, alcançando o patamar atual dos US$ 25 mil, a maior da América Latina, enquanto o PIB chegava a US$ 455,9 bilhões, já no ano de 2017. Nesse período, os governos da concertação de centro-esquerda promoveram várias reestruturações tributárias que permitiram aumentar o investimento social do Estado, com a criação do seguro-saúde universal, o seguro-desemprego e o Pilar da Solidariedade. Como consequência, a presença do Estado chileno voltou a crescer, sobretudo na área da infraestrutura e das políticas sociais de proteção, saúde e educação. E quando os analistas falam de um “milagre chileno”, referem-se a esse período democrático, e sobretudo aos governos de centro-esquerda que lograram reduzir o desemprego deixado pela ditadura, de 18% para 6 ou 7% em média, reduzindo a população situada abaixo da linha de pobreza, de 45 para 11%, o que transformou o Chile no país com o mais alto IDH da América Latina, e 38º na escala mundial.
Por fim, pouco a pouco, o legado mais dramático deixado pelas políticas e reformas neoliberais dos “Chicago Boys” do general Pinochet vem sendo revertido, como já aconteceu com a nova legislação trabalhista, que devolveu, pelo menos em parte, o poder de negociação que os sindicatos chilenos haviam perdido durante a ditadura militar. Além disso, os governos de centro-esquerda aumentaram significativamente os gastos públicos em saúde, criando o “Sistema de Garantia Explícita”, com o objetivo de expandir e universalizar sobretudo o FONASA, o braço público do Sistema Nacional de Serviços de Saúde chileno.
No entanto, não há dúvida de que a reversão mais importante ocorreu no campo da educação, em particular no campo do ensino universitário. A maioria dos brasileiros ainda não sabe, nem muito menos o “moleque do senhor Guedes” que oficia de ministro de Educação do capitão, que o fim da gratuidade do ensino superior decretada pela ditadura militar chilena, no início dos anos 1980, acabou em janeiro de 2018, quando o Congresso Nacional chileno aprovou uma lei que reestabeleceu a gratuidade universal do ensino universitário do país, incluindo todas as universidades, públicas e privadas, algo sem precedente na história acadêmica da América Latina.
A comemorada privatização e capitalização da Previdência Social, criada pelos “Chicago Boys” do general Pinochet, na verdade se transformou num pesadelo para a maioria dos aposentados e dos idosos chilenos. Ao contrário do que propaga o senhor Guedes e seus apaniguados, a média das aposentadorias chilenas é hoje de 33% do salário recebido pelo trabalhador antes da aposentadoria, e 91% da população aposentada recebe em média a ridícula quantidade de US$ 200 ao mês, o que obriga 60% dos pensionistas a receber um complemento estatal, aprovado pelo governo Bachelet em 2008, para poder sobreviver. Por isso talvez o Chile tenha hoje uma das maiores taxas de suicídio de idosos em todo mundo, e uma pesquisa de opinião pública, aplicada em 2018 – do CADEM – constatou que 88% da população chilena está insatisfeita e quer reverter e mudar o sistema atual de capitalização de Previdência.
Por fim, cabe sublinhar que mesmo durante a ditadura militar, jamais foi cogitada a privatização do cobre e da CODELCO, a única grande empresa estatal chilena, e a maior empresa produtora de cobre do mundo.
Resumindo nosso argumento:
  1. Os resultados econômicos da ditadura do general Pinochet e dos seus “Chicago Boys” foram economicamente medíocres e socialmente catastróficos.
  2. O verdadeiro “milagre chileno” – se é que houve – ocorreu depois da ditadura, no período democrático, e em particular durante os governos de centroesquerda naquele país na maior parte do período entre 1990 e 2019. E é uma perfeita asnice intelectual atribuir a estabilidade macroeconômica chilena atual ao “banho de sangue”’ promovido pelo general Pinochet, entre 1973 e 1990.
Mas apesar de que seja uma verdadeira aberração lógica comparar a economia brasileira com a economia chilena, a experiência do Chile pode servir de advertência às lideranças políticas, sociais e econômicas brasileiras, que não queiram repetir no Brasil a tragédia do “fascismo de mercado” do ditador Augusto Pinochet, uma das grandes excrecências humanas do século XX.
Ainda é tempo de impedir que o fanatismo ideológico do senhor Guedes destrua 90 anos de história da economia brasileira, para atender ao interesse de um pequeno grupo de banqueiros, financistas e agroexportadores, passando por cima do interesse do “resto” da sociedade brasileira.
Agosto de 2019
José Luís Fiori – Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 201 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.

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