terça-feira, 20 de agosto de 2019

Casamento satânico entre ultraliberalismo econômico e autoritarismo levando à crescente infelicidade social, por Jorge Alexandre Neves



Se a abordagem ultraliberal da política econômica for mantida – e tudo indica que será – o cenário mais provável é da manutenção da depressão econômica, com o aumento da desigualdade e da pobreza.



Hieronymus Bosch

Casamento satânico

por Jorge Alexandre Neves

Vários de nós, analistas dos cenários políticos e socioeconômicos do Brasil e do mundo, temos observado que o século XXI começou com uma marca semelhante àquela de um século antes, qual seja, uma brutal elevação da desigualdade em nível global e, muito em consequência desta, um forte desgaste do liberalismo político. Assim como nas primeiras décadas do século XX, este cenário tem levado à emergência de lideranças políticas autoritárias, em vários países do mundo.
Todavia, há uma diferença marcante nestes dois momentos. No início do século XX, o liberalismo político estava sendo rivalizado por alternativas – ambas autoritárias – dos dois extremos do espectro político. Vivenciou-se, naquelas primeiras décadas do século passado, a emergência tanto do nazi-fascismo quanto do bolchevismo como alternativas reais de poder, em particular no continente europeu.

[O GGN prepara uma série no YouTube que vai mostrar a interferência dos EUA na Lava Jato. Quer apoiar o projeto pelo interesse público? Clique aqui]

Acredito que a inexistência, hoje, de uma contestação forte do liberalismo político à esquerda do espectro ideológico está favorecendo um novo fenômeno, um casamento satânico entre autoritarismo político e liberalismo econômico. Nas primeiras décadas do século XX, os regimes autoritários de direita e de esquerda que chegaram ao poder fizeram uso de políticas econômicas antiliberais, com forte intervenção do Estado, políticas de industrialização e de fortalecimento das economias nacionais. Hoje, observa-se justamente o contrário. 
Se considerarmos o caso brasileiro, o contraste é talvez ainda mais forte. O Estado Novo foi um período fortemente autoritário no Brasil, mas com políticas econômicas antiliberais, que propiciaram a aceleração da industrialização, com o estabelecimento das indústrias de bens intermediários, fundamentais para os períodos posteriores de substituição das importações de bens de consumo duráveis e de bens de capital.
Hoje, o casamento satânico entre autoritarismo político e liberalismo econômico se faz presente em diferentes países do mundo, inclusive no Brasil. Aqui, do ponto de vista político, ainda estamos apostando na hipótese de que as instituições políticas liberais terão higidez suficiente para resistir aos arroubos autoritários que pipocam de todo lado (incluindo os estamentos judiciário e militar), com destaque para o presidente Bolsonaro. Obviamente, já não vivemos em um regime democrático próximo da plenitude (1). Por outro lado, ainda não mergulhamos em um autoritarismo desenfreado.
Na economia, por sua vez, experimentamos uma abordagem ultraliberal, que nos conduz para uma retomada acelerada do aumento da desigualdade de renda conjugada a uma terrível depressão econômica, reconhecida até mesmo por economistas conservadoresE esse não é um fenômeno apenas brasileiro.
O cenário internacional indica de forma muito clara uma forte desaceleração da economia mundial. Talvez o mundo não entre em recessão, mas já é certo que irá desacelerar de forma significativa. Segundo os próprios economistas conservadores (2), essa desaceleração já “estava contratada” há algum tempo. Todavia, a escalada da guerra comercial entre os EUA e a China (3) tende a prejudicar ainda mais o crescimento econômico mundial.
É curioso, portanto, que o novo Relatório Focus, do Banco Central, tenha vindo com uma – embora discretíssima – elevação das expectativas de crescimento econômico para este e para o próximo ano. De onde os entrevistados tiraram tal otimismo? Confesso que não sei. Para mim, ficou parecendo mais uma peça de ficção (de wishful thinking) dos “agentes do mercado”, como uma que me caiu recentemente nas mãos (4).
Se a abordagem ultraliberal da política econômica for mantida – e tudo indica que será – o cenário mais provável é da manutenção da depressão econômica, com o aumento da desigualdade e da pobreza. Esse cenário, somado a um ambiente político intoxicado pelo autoritarismo, levará a uma conjuntura de enorme imprevisibilidade. Por enquanto, o presidente Bolsonaro tem conseguido manter o apoio de algo como 1/3 do eleitorado. Será que isso se manterá ao longo do próximo ano? Quanto tempo o povo brasileiro irá aguentar viver sob o domínio de um casamento satânico?
  1. Há vários exemplos possíveis, mas penso que os mais profícuos são as ameaças de comandantes militares e outras autoridades ao STF.
  2. Ver, por exemplo, a análise feita pelo Prof. Simão Davi Silber, da FEA-USP, no último programa Globo News Painel.
  3. Guerra esta que, como todos sabemos pela História, começa com um caráter comercial e, depois, torna-se de outra natureza. Esse conflito econômico entre as duas grandes potências atuais, como muitos têm destacado, tem um caráter muito mais geopolítico e seguirá um roteiro difícil de prever.
  4. Refiro-me a um hilariante documento intitulado “Resumo sobre projeções econômicas, Brasil 2019-2023”, que andou circulando nas redes sociais.
P.S.: Aproveitando a oportunidade, cadê Queiroz?
Jorge Alexandre Barbosa Neves
Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997
Pesquisador PQ do CNPq
Pesquisador Visitante
University of Texas – Austin
Professor Titular do Departamento de
Sociologia – UFMG
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Nenhum comentário:

Postar um comentário