sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Desmascarada estratégia de generalizar denúncias contra movimentos por moradia




Delegado admite que carta anônima, revelada depois por jornal como uma fake news, deu pontapé inicial ao inquérito; Processo tenta ligar movimentos ao PCC e relacioná-los ao PT


Preta Ferreira detida. Imagem: Reprodução/Jornalistas Livres
Jornal GGN A 12ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve em segunda instância, nesta quarta-feira (14), a absolvição da líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), Carmen da Silva Ferreira. Para o relator, desembargador Paulo Rossi, não existe sustentação nas acusações feitas pelo promotor do Ministério Público de São Paulo, José Reinaldo Guimarães Carneiro, de extorsão dos moradores da ocupação do antigo Hotel Cambridge.
Em janeiro deste ano, o juiz da 26ª Vara Criminal de São Paulo, Marcos Vieira de Moraes também absolveu Carmen com base na mesma conclusão: o Ministério Público não comprovou a acusação de extorsão.

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Carmen é mãe de Janice (Preta) Ferreira da Silva, cantora, atriz e produtora cultural, formada em publicidade e do educador Sidney Ferreira, todos do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Eles estão presos desde o dia 24 de junho, junto com outras lideranças, entre elas Angélica dos Santos Lima e Ednalva Silva Franco, ligadas ao Movimento de Moradia Para Todos (MMPT).
O inquérito que levou à prisão todas essas lideranças foi instaurado inicialmente para apurar os responsáveis pelo incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, tragédia que aconteceu no dia 1ª de maio de 2018 deixando 7 mortos. O grupo responsável pelo Paes de Almeida, na verdade, chama-se Movimento Social de Luta por Moradia (MSLM), liderado por Ananias Pereira dos Santos, também detido na ação deflagrada pela Polícia Civil em 24 de junho.


No dia 11 de julho, o promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo, produziu mais uma denúncia em cima do inquérito afirmando que, ao todo, 19 lideranças têm ligação com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e, ainda, com o Partido dos Trabalhadores (PT). A generalização da denúncia foi destaque em matéria do site Consultor Jurídico (ConJur), publicada no dia 6 de agosto.
Conserino conclui que os movimentos indiciados atuam como “organizações criminosas”. Sua denúncia foi aceita pela juíza da 6º Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, Érika Soares de Azevedo Mascarenhas, que, no dia 28 de julho transformou de temporária para preventiva as prisões das lideranças que lutam por moradia.

Fragilidades do processo

O relato construído para incriminar os vários movimentos por moradia em São Paulo apresenta várias fragilidades. A principal delas é uma carta anexada ao processo que, conforme revelou a Jornalistas Livres, se trata de um relato que circulou nas redes sociais e que tem como provável autor Victor Grinbaum, seguidor de Olavo de Carvalho que já foi banido das redes sociais por publicações fraudulentas.

O delegado André Figueiredo, responsável pelo Departamento de Investigações Criminais (Deic), e pelo inquérito que realizou as prisões das lideranças, confirmou à imprensa que essa carta deu o pontapé inicial às investigações.

O inquérito traz ainda uma série de relatos anônimos das supostas vítimas de extorsão, muitas delas alegando que eram obrigadas a mudar seu título de eleitor para a capital e a votarem em candidatos do PT. Por fim, aponta que pelo menos uma das lideranças, Ednalva, estaria envolvida com o PCC. O problema, é que a transcrição de áudio obtido por interceptação telefônica, feita pelos próprios investigadores, diz o contrário.
“No dia 23/10/2013, às 17h06m13s, a investigação observou uma ligação oriundo do terminal móvel (11) 9XXX-XXX5 (N.E: reservamos o número), uma uma mulher alcunhada de “net”, liga para a investigada Ednalva e diz que esta recebendo uma família, tratando-se de família do “coquinho” e que estavam na calçada e queria entrar na ocupação para tomar um banho. Edinalva explica que tal pessoa não tem boa índole e gosta de arruma confusão e diz, in verbis: ‘Ele chamou o P.C.C para mim… esse cara articulou pra tomar a ocupação da Carmem, depois para tomar a minha… esse cara morava no Marrocos, ele e o capeta na forma de gente. Em seguida ‘net’ passa o seu terminal móvel a pessoa alcunhada de ‘Shi’ e Edivalda menciona com o novo interlocutor, dizendo, in verbis: ‘Tentou tomar a ocupação de Carmem, tentou tomar minha ocupação, trazendo uns caras lá não o que do norte, sabe? … é… a família do Norte… uns caras que saiu da cadeia aí, e era desta facção família do norte”.
No final das contas, Ednalva permite que a família entre para tomar banho na ocupação. Mas como esse trecho da transcrição aponta, a tentativa da líder era evitar o contato com algum membro da facção.

O inquérito não traz muitas provas com base nas interceptações telefônicas. Isso porque, segundo os investigadores, um homem, não identificado pela polícia, ligou para outro homem (também não identificado), para avisá-los, a pedido de um advogado mencionado somente pelo primeiro nome, que todos os membros do movimento estavam sendo grampeados.
“[A investigação] não obteve êxito maior em seu objetivo pelo simples fato da sua existência ter sido “vazada”, consoante se observa da fala transcrita acima, que realmente existe uma organização criminosa totalmente esquematizada com a finalidade última de constranger moradores das ocupações que coordenam, a efetuarem pagamentos de “aluguel” e “taxas de manutenção”, sob pena de serem obrigadas a desocupar o local, mediante violência ou ameaça, inclusive se valendo da ajuda de indivíduos denominados de “manos””, conclui nos autos a juíza Érika Mascarenhas.
Uma outra reportagem do site Jornalistas Livres destaca que, em relação a troca de título de eleitor, o inquérito não considera a necessidade do documento para que os moradores de ocupações tenham acesso aos programas sociais estaduais e municipais.
O movimento liderado por Carmen, em especial, ganhou um edital de financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades, para reformar o Hotel Cambridge.
“A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano”, escreve Laura Capriglione no Jornalistas Livres.
O MSTC foi criado em 2001 e responde hoje por 10 prédios ocupados na cidade de São Paulo.
“As contribuições coletivas são essenciais nas ocupações para a manutenção dos locais ocupados, com reformas, limpezas, projetos habitacionais e segurança, inclusive para evitar tragédias como a que ocorreu no ano passado na ocupação do edifício Wilton Paes, no Largo do Paissandu”, explicou Ariel de Castro Alves, advogado do movimentoem entrevista ao ConJur.
A ocupação mais famosa do movimento é a do Hotel Cambridge, localizado na avenida 9 de Julho e onde vivem cerca de 170 famílias hoje. Desde que foi ocupado, no final de 2012, o espaço recebe inspeções tanto da Prefeitura quanto de organizações internacionais, e acabou se tornando referência na solução do problema de moradia em São Paulo.
Em depoimento aos Jornalistas Livres, o secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre disse sobre a atuação de Carmen no movimento por moradia: “Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela”.
Os advogados do MSTC ressaltam que, ao analisarem o inquérito mais recente, percebem que as “denúncias são requentadas, assim como as mesmas testemunhas de processo anterior foram novamente ouvidas no Deic”.
“Inclusive algumas que eram ligadas ao crime organizado e queriam levar traficantes para vender drogas nas ocupações e a Carmen não permitiu”, completam.

Notas

O promotor Conserino é o mesmo que foi condenado em março de 2016 a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de uma publicação no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”. Ele também é um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex atribuído ao petista, transformando-o em réu.
A juíza Érika Soares de Azevedo Mascarenhas, da 6º Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que aceitou a denúncia de Conserino foi a mesma que, em 2000, condenou o então colunista da Folha de S.Paulo, e hoje editor-chefe do GGN, Luis Nassif a três meses de prisão por denunciar uma manobra financeira ilegal da Mendes Júnior para acabar com a Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
“Fracassou, e foi pouco notada, uma das mais atrevidas aventuras já tentadas contra os cofres públicos: a ação de indenização proposta pela Mendes Júnior contra a companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) por atrasos nos pagamentos. A indenização pedida era de R$ 10 bilhões, muitas vezes maior do que o preço total da obra. No mês passado, o Superior Tribunal de Justiça liquidou definitivamente com a aventura”, escreveu o jornalista na época. Texto suficiente para levar a Mendes Júnior a mover uma ação contra ele, aceita pela juíza da 6ª Vara.
A decisão de Mascarenhas contra a liberdade de imprensa foi derrubada no Tribunal de Justiça de São Paulo, em segunda instância.

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