segunda-feira, 19 de julho de 2021

Militares, geopolítica e o aumento da brutalização do regime, por Roberto Bitencourt da Silva, historiador e cientista político

 


  O presidente tem pleno conhecimento do interesse do capitalismo internacional pelos recursos energéticos e demais bens naturais brasileiros e latino-americanos. Como vassalo que é, esforça-se por entregá-los, de maneira célere, ao arrepio dos mais altos interesses nacionais e regionais.

Militares, geopolítica e o aumento da brutalização do regime

por Roberto Bitencourt da Silva

A elevação do tom provocativo e golpista por parte da cúpula das Forças Armadas, que tanta e justificada apreensão provoca em diferentes setores da sociedade civil brasileira, coincidiu com uma reunião de integrantes do governo federal com o chefe da CIA, William J. Burns.

A nota oficial do Ministério da Defesa e a entrevista concedida pelo comandante da Aeronáutica ao jornal O Globo, manifestando explícita irritação com a CPI da pandemia e visando constranger os senadores à frente das investigações, vieram na esteira do encontro oficial com o dirigente da CIA.

Diga-se, CIA, agência de inteligência estadunidense, notoriamente especializada na trama de golpes e violações de direitos humanos e demais normas do direito internacional, em especial vitimando os países capitalistas periféricos, dissonantes ou mais frágeis no sistema mundial.

De acordo com o noticiário, a motivação da visita de Burns ao Brasil girou em torno do diálogo sobre a questão venezuelana e a respeito da contenção do intercâmbio latino-americano com a China (Ricardo Della Coletta, Folha de S.Paulo, 2 jul. 2021). Manter e incrementar as criminosas sanções econômicas unilaterais e extraterritoriais, para que promovam a derrubada do governo de Nicolás Maduro, causando dor e sofrimento à população, são propósitos declarados do governo dos EUA.  

O presidente Bolsonaro tem no apoio a essa causa odiosa e ilegal um dos principais compromissos de governo, assumido com demais lideranças regionais e em apoio à geopolítica estadunidense. Amplas frações das classes dominantes, bem como as oligarquias políticas conservadoras e liberais no Brasil, compartilham igual repúdio à experiência anti-imperialista, socializante, nacionalista e popular do chavismo venezuelano. Um vizinho “incômodo”. Um “mau exemplo”, que “ameaça” a “segurança hemisférica”. Com efeito, a “segurança” do capital oligopolista e monopolista, em particular capital made in USA.

Por outro lado, criar embaraços nas relações da América Latina com a China consiste em igual objetivo estratégico da política externa dos EUA. Na avaliação do ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a reunião entre integrantes do governo brasileiro com o chefe da CIA teve esse destacado tema na mesa. Amorim descartou a hipótese de arranjos de curto prazo que venham a avalizar a sustentação norte-americana a um eventual golpe de Estado bolsonarista (Brasil 247, 9 jul. 2021).

Nos últimos dias, tem ficado bastante perceptível a prevalência de significativas tensões no condomínio de poder do Brasil. É razoável supor que o pano de fundo é alinhavado pela crescente animosidade dos EUA com a China e pelo controle global dos recursos naturais em escassez, em contexto de perdulária produção e consumo capitalista. Adicione-se a grave questão da mudança climática. Convenhamos, assuntos da mais alta relevância e complexidade, direta ou indiretamente abordados dias atrás nas reuniões entre o governo brasileiro, a CIA e a embaixada dos EUA.

A respeito, marionete da geopolítica ianque, Bolsonaro afirmou: “O interesse do Brasil por [parte] de alguns países é enorme. Alguns países dependem de nós, do que produzimos aqui. E esses países pensam 50, 100 anos à frente” (Ricardo Della Coletta, Folha de S.Paulo, 2 jul. 2021). O presidente tem pleno conhecimento do interesse do capitalismo internacional pelos recursos energéticos e demais bens naturais brasileiros e latino-americanos. Como vassalo que é, esforça-se por entregá-los, de maneira célere, ao arrepio dos mais altos interesses nacionais e regionais.

A seguir a lógica da grande disputa mundial por poder, travada com unhas e dentes pelos EUA, na defesa dos históricos contornos imperialistas e agressivos do sistema capitalista, é plausível argumentar que o aludido cenário global possui forte incidência na realidade política e econômica brasileira. A agenda do golpe de Estado brando de 2016, aplicada duramente, é marcada pela conversão absoluta da economia do país em uma plataforma exportadora de commodities. Um modelo econômico ultraliberal e neocolonial que dá total ênfase às atividades rurais, sob o controle do latifúndio e do capital internacional, em uma sociedade cuja maioria absoluta da população vive nas cidades. Em curso uma verdadeira tragédia social, ambiental, jurídica, econômica, cultural etc.

Nesse sentido, no horizonte brasileiro emerge um potencial deslocamento das tradicionais e conservadoras oligarquias políticas, investidas de verniz e retórica democráticas, compartilhadas desde a redemocratização dos anos 1980. Uma redução plausível de seus papeis, assim como a possibilidade de diminuição da força de alguns conglomerados de mídia, como a Globo, que operam com a delicada questão da legitimidade do poder, forçosamente tendo que se investir de alguma capa politicamente liberal e defender certas prerrogativas legais da democracia representativa. Ora também mobilizando as temáticas de gênero e raça como peças do tabuleiro do intrincado jogo do exercício da legitimidade.

Desse modo, me parece ter razão Celso Amorim, ao alegar que a CIA não daria de modo tão explícito apoio a uma aventura golpista de Bolsonaro. No entanto, no médio e longo prazo, sobretudo a nota do Ministério da Defesa, o pronunciamento do brigadeiro e demais operações realizadas por aquilo que muitos analistas chamam de Partido Militar, são expressões da desinibida ascensão de uma nova oligarquia política em consolidação, menos ciosa com as regras e práticas da democracia burguesa representativa.

Um fato que, em parte, está longe de ser novidade em nossa história. Há tempos o sociólogo Agustín Cueva sublinhava o desenvolvimento desigual da democracia burguesa: mais sólida no centro capitalista. Mais fácil ser descartada na periferia. Os padrões draconianos de acumulação e de exploração do trabalho são a base desse fenômeno. Padrões terrivelmente aprofundados desde 2016.  

Intensificam-se as medidas arbitrárias e extralegais no cotidiano das populações metropolitanas, rurais e indígenas, já conhecidas no dia a dia do nosso capitalismo dependente e selvagem. A força bruta militar e paramilitar é um desdobramento natural nas presentes condições do capitalismo a cada dia mais subordinado do Brasil, com uma economia crescentemente desnacionalizada e reprimarizada.

As tensões EUA/China são uma moldura em que se enquadra a subalterna posição do Brasil, chumbando-nos no subdesenvolvimento e na miséria. Uma terra de bens naturais a serem exclusivamente explorados pelos EUA e seus sócios. Militarização da vida social e política para “disciplinar” as classes subalternas e “perigosas”, majoritariamente subocupadas, desempregadas, desalentadas, famintas.

O grande capital doméstico e gringo, por meio das suas entidades representativas, oferece apoio ora tácito, ora empolgado ao governo e ao ascendente padrão ainda mais brutalizado do capitalismo e do regime político nacional. Parte da cúpula das Forças Armadas distancia-se cada vez mais de qualquer legitimidade e legalidade. Ela paga tributo ao sistema de defesa estadunidense, que é onde reside a soberania de fato que essa casta militar procura se atribuir. Com esse suporte, o alto oficialato das Forças Armadas (e o seu governo) se porta como um grupo de comandantes de um Exército de ocupação.

Por ora, o jogo é todo jogado por cima. O Povo não dá qualquer cartada. De resto, trata-se de uma variável que dá maior conforto aos apelos das oligarquias civis tradicionais e a intelectuais orgânicos e coletivos seus, como as Organizações Globo e o grupo Folha, apelos e denúncias contra as investidas autoritárias de Bolsonaro. O consenso dos de cima converge para a agenda neocolonial e ultraliberal, promovida sem freios, dispensando, pois, um regime explicitamente de força, na ótica das aludidas frações do poder.

Não temos salvação sob os rígidos limites do papel acentuadamente amesquinhado e miserável conferido pelo capitalismo internacional ao nosso país. Os protestos nas ruas contra o governo Bolsonaro têm caracterizado uma incipiente e alvissareira capacidade de mobilização e organização popular. Precisam ser estendidos e ganhar maior amplitude, sobretudo afetando aquilo que mais dói ao poder econômico: o bolso. Greves gerais dos trabalhadores são extremamente necessárias, de modo a gerar curto circuitos nos processos de circulação e acumulação do capital.

Uma dilatada plataforma social e política envolvendo amplos setores da sociedade brasileira, sem prioridade concedida a calendários eleitorais, construindo um programa de ação e de país, demonstrando capacidade dirigente à Nação. Estas são todas iniciativas fundamentais para contrapor o Povo aos seus algozes: as oligarquias políticas conservadoras e tradicionais, a emergente casta política militar, o grande capital doméstico e estrangeiro e o imperialismo ianque.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

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