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terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Trump, plutocracia e capitalismo: quem são os "novos" titãs? Resenha do livro Titans of Capital, de Peter Phillips, feito por Ladislau Dowbor

 


No dia da posse de Trump, vale examinar os megafundos que agora controlam a riqueza do Ocidente. Quem são. Como manejam o equivalente a 8,5 vezes o PIB dos EUA. Por que estão ávidos por enfraquecer os Estados e reinar absolutos


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VEJA MAIS:

Resenha de Titans of Capital (2024), de Peter Phillips, publicado pela Seven Stories Press

Peter Phillips escreveu um livro que mais parece um relatório de pesquisa, e que é de uma prodigiosa utilidade: em vez de ilustrar as suas opiniões, ele nos dá ferramentas para entender como todo o processo de acumulação do capital se deformou, gerando a convergência das catástrofes da desigualdade e da destruição ambiental. Ao detalhar como as coisas efetivamente funcionam no topo da pirâmide do poder econômico – e, portanto, do poder político, Phillips põe em nossas mãos uma excepcional ferramenta de trabalho.

Quem lê os meus trabalhos sabe que eu não sou muito pródigo em flores, mas neste caso, os dois dias que gastei em ler este pequeno livro me deixaram entusiasmado. E como as traduções demoram a aparecer, recomendo a todo o nosso pequeno mundo que se interessa por entender a zona econômica que vivemos, que comprem o livro em inglês mesmo. Nada de complexo nesta escrita.

Para já, pensando nas pessoas que têm dúvidas sobre a nossa dependência do poder econômico global, tema central deste livro, vou só apresentar este gráfico, que não está no livro, mas que ilustra este tema no Brasil:[1]

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O nome BlackRock é pouco familiar para as pessoas no Brasil. Lembremos que em 2024 essa empresa gestora de ativos (fortunas) administra um pouco mais de 10 trilhões de dólares. O presidente americano Joe Biden administras 6 trilhões, orçamento federal dos Estados Unidos. Vejam no gráfico acima para onde essa corporação estende os seus drenos no Brasil, isso que ela se encontra em inúmeros países. Empresas chave da economia brasileira têm os seus interesses ligados à BlackRock, cujo objetivo não é produzir nada, é apenas drenar dividendos, e o máximo possível, como vimos no caso da Petrobrás, elevando os preços para aumentar os dividendos, um dreno amplo sobre toda a população, a chamada profit inflation, inflação gerada por elevação de lucros. O preço que você pagou a mais no botijão de gás ou no posto de gasolina foi para pagar dividendos.

Bastam participações acionárias limitadas para colocar as empresas ao seu serviço, ou seja, maximizar dividendos para acionistas, os que hoje chamamos de “proprietários ausentes”, absentee owners. Isso é a realidade da indústria dita nacional. Não tenham dúvida de que quando os diretores da Samarco ou da Vale tiveram de optar entre consertar as barragens ou aumentar os dividendos, optaram pelos dividendos, e os bônus correspondentes para eles mesmos. Privatizar, ou seja, abrir as portas para acionistas internacionais, é também desnacionalizar. Isso para situar o mecanismo que permite aos gigantes financeiro no topo drenar recursos da base da sociedade em escala mundial.

Phillips selecionou as 10 maiores empresas de gestão de ativos. No conjunto, administram quase 50 trilhões de dólares, equivalentes em 2022 a mais ou menos a metade do PIB mundial de 100 trilhões. Essa é a dimensão. Em seguida, ele elenca, para cada empresa, os diretores, um total de 117 para o conjunto das 10 empresas. Essa gente não constitui a lista de bilionários, e sim gente que ganha muitos milhões, mas essencialmente tomando as decisões. O detalhe da diretoria de cada uma destas gigantescas corporações mostra que a maior parte dirige não uma empresa, mas várias outras, tanto entre os 10 como para fora. Vejam também que em 5 anos, entre 2017 e 2022, aumentaram esse controle em 89,5%, quase dobrando. O controle no topo está se reforçando rapidamente.

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Gera-se assim um universo de interesses entrecruzados das corporações, um gigantesco oligopólio planetário, que não tem nada a ver com o que chamamos de economia de mercado, a tradicional visão que nos ensinam, de empresas que concorrem lealmente para prestar melhores serviços à população. Estão solidamente articuladas para se servir. Uma ficha para cada diretor permite ver que se trata de boas famílias, que estudaram essencialmente nas mesmas escolas de elite e universidades correspondentes, formando uma classe de colegas. Dois terços são americanos. Participam todos das três principais organizações intracorporativas, o Council for Foreign Affairs, Business Round Table e Business Council. Todos são convidados regulares do Fórum Social Mundial, do qual Larry Fink, da BlackRock, é inclusive um dos administradores (trustee).

O fato de cada um dos diretores ter interesses cruzados com outros no grupo dos 10 vai ser reforçado pelo fato de participarem dos conselhos de administração de numerosas outras instituições, como a CIA, ou o Departamento de Estado, com forte presença nas decisões militares, mas também como conselheiros políticos em várias áreas, de numerosos departamentos públicos, permitindo manter ofensiva permanente contra por exemplo a regulação do mercado de medicamentos, a política tributária, e em particular a regulação das fontes de gases de efeito estufa na área da energia.

Phillips traz de maneira detalhada, empresa por empresa, quanto cada uma investe no petróleo e no gás (apesar de proclamarem a sua adesão aos ESG e às energias limpas), no carvão, no tabaco, no álcool, na indústria do plástico, na produção de armas de fogo, na indústria das apostas, na privatização dos sistemas carcerários, inclusive de armamento pesado militar. E em cada setor buscam a maximização de vendas e de retorno a curto prazo.

Igualmente importante é o fato da apresentação dos dados, empresa por empresa, diretor por diretor, setor por setor de atividade, ser extremamente bem organizada, permitindo uma visão de conjunto sobre como o sistema funciona, o grau de poder que alcançou, o ritmo de avanço que continua, e tipo de impacto que gera, por exemplo ao apoiar combustíveis fósseis ou o tabaco. Dois capítulos complementares, sobre a China e sobre a Rússia, fecham este pequeno volume, que nos traz uma claridade impressionante sobre como funciona o topo da pirâmide, o poder realmente existente.

Simplesmente organizando a informação mais significativa sobre as maiores corporações do mundo, o autor deixa clara quem está no topo da pirâmide mundial de poder corporativo, e como usa este poder. Essas corporações por sua vez controlam indiretamente, por participação acionária, os gigantes da comunicação (GAFAM – Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) e evidentemente os banco menores, seguradoras, grandes empresas de seguro de saúde, o Big Pharma e assim por diante. Os algoritmos movem o dinheiro segundo os interesses da maximização no curto prazo.

A fratura entre a maximização dos interesses corporativos, este universo que curiosamente chamamos de “os mercados”, e os interesses da sociedade, em termos de progresso econômico, social e ambiental fica claramente exposta. É o poder de cima para baixo que fica claro, poder que permite que o dinheiro flua de baixo para cima. Simplesmente pela desproporção entre o dinheiro que colocam nas inúmeras empresas, o dinheiro que extraem, explica-se que neste universo de tanto progresso tecnológico tenhamos tantos desastres sociais e ambientais.

Deixem-me lembrar que a pesquisa de Eduardo Magalhães Rodrigues, no pós-doutorado que fez comigo na PUC-SP, na Pós-Graduação em Economia Política, apresenta um primeiro desenho semelhante em como as corporações, através de tomadas cruzadas de participação acionária e de diretorias cruzadas, constituem igualmente um universo extremamente centralizado, com papel particularmente central da Eletrobrás. Não à toa batalharam a sua privatização. Mas fica também claro o funcionamento do universo oligopolizado das finanças e, surpreendentemente, dos planos de saúde, hoje em dia uma grande indústria da doença.


Notas

[1] Peres, João – No Brasil, maior gestora de fundos do planeta tem investimento três vezes mais poluidor que na Europa e nos EUA. – O Joio e o Trigo, 18 de maio de 2024

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

O mito da dívida pública no limite e as vantagens que dela tiram rentistas e o Mercado Financiero, por Andre Motta Araujo




Na dívida interna é tecnicamente impossível a insolvência porque o devedor pode emitir sua própria moeda e liquidar a dívida.



O mito da dívida pública no limite

por Andre Motta Araujo

A base doutrinária do neoliberalismo da Escola do Rio, para travar o orçamento da União e manter estática a recessão iniciada em 2014, é o propalado aumento dito “insuportável” da dívida pública da União. A alegação cai em ouvidos de uma população que, em 99% dos casos, desconhece os rudimentos do tema, o que torna fácil a propagação dessa lenda do “LIMITE DA DÍVIDA PÚBLICA”, estamos à beira da insolvência.
O Brasil nunca quebrou por dívida pública muito mais perigosa, a DÍVIDA PÚBLICA EM MOEDA ESTRANGEIRA, que existia antes de 1994, enquanto a dívida publica interna era de valor modesto. Foi o Plano Real quem criou a dívida pública doméstica em títulos, com a troca de 43 moedas pobres, como Sunaman, Siderbrás, Cibrazem, etc. por Notas do Tesouro Nacional-NTN, que equivaliam a dinheiro líquido. A dívida pública interna em títulos foi criação dos neoliberais do Plano Real e tornou-se agora sua arma para desmontar o Estado como agente econômico.
Entre 1946 e 1983 o Brasil DEIXOU DE PAGAR DÍVIDA EXTERNA por três vezes e nem por isso o Brasil deixou de crescer às maiores taxas do mundo.
Já na dívida interna é tecnicamente impossível a insolvência porque o devedor pode emitir sua própria moeda e liquidar a dívida.
O LIMITE É CIRCUNSTANCIAL, DEPENDE DO PIB E DOS JUROS
Porque 73,7 % ou 75,3% do PIB é o limite da dívida pública brasileira? Ninguém explica porque não existe uma racionalidade nesse limite.
Dívida pública em MOEDA SOBERANA teoricamente não tem limite, pode ser resgatada com emissão de moeda pelo Estado. não importa o volume.
As duas variáveis básicas são a taxa de crescimento do PIB e a taxa de juros que o Estado paga para os portadores de títulos.
O TOMADOR DA DÍVIDA PÚBLICA
Dívida pública em títulos de um Estado soberano é quase-moeda, é moeda com juros. Aliás, grandes países nem estão pagando mais juros, ao contrário, estão cobrando para guardar o dinheiro dos detentores de liquidez que basicamente é o SISTEMA FINANCEIRO. Os juros são ESTIPULADOS pelo emissor e não pelo mercado, é assim em Washington, Frankfurt, Tokyo e Brasília, os bancos são OBRIGADOS, na prática, a comprar os títulos como reserva.
A taxa de juros básica que o Estado brasileiro paga pela dívida pública não é para atrair investidores, é para segurar a taxa de inflação.


Os investidores podem se contentar com taxas menores na ausência de outro lugar para entesourar sua liquidez, não há alternativa no Brasil atual.
O primeiro grande comprador de títulos federais geralmente é o BANCO CENTRAL. Nos EUA o Federal Reserve System detém UM TERÇO da dívida pública federal em sua carteira, geralmente os bancos centrais empoçam esses títulos como contrapartida de depósitos compulsórios ou voluntários do sistema financeiro, aí incluindo bancos, fundos de investimento, seguradoras e tesourarias de grandes empresas, bem como o saldo credor da própria União. Em última escala, são os Bancos Centrais que estipulam o limite da dívida pública e são eles que fazem o “mercado” desses títulos, comprando e vendendo todo dia como ajuste de liquidez do sistema. Nos EUA, para um orçamento federal de US$ 4,7 trilhões, existe uma dívida em títulos de US$ 23 trilhões, mais de quatro vezes o orçamento. Nessa proporção, no Brasil, nossa dívida pública seria de R$ 14 trilhões, no entanto é hoje metade disso. Há muito espaço para a dívida crescer, desde que se pague juro menor ou até negativo.
Portanto é uma lenda que o título público de um Estado em sua própria moeda compete com outros papeis no mercado, ele tem características de liquidez que nenhum outro papel tem e pode existir inclusive sem pagar juros, como hoje existe no Japão e na União Europeia. Hoje no mundo circulam US$16 trilhões de títulos públicos sem juros ou com juro negativo e o mundo não acabou por causa disso.
Nessa linha, o limite apregoado pelos neoliberais e repercutido pela mídia por ignorância ou má fé, ou uma combinação das duas coisas, é IRREAL.
Não há esse limite. A dívida pública da União pode ainda crescer muito, o limite é dado pela voluntariedade do Banco Central. Na minha análise há espaço para crescer, desde já, mais R$50 bilhões por mês por leilões de menor taxa (compra quem aceita a menor taxa) e com o Banco Central como comprador de última instância. O ideal seria um título novo, Notas de Investimento Público, cujos valores se destinem exclusivamente para a conta INVESTIMENTOS DA UNIÃO, o que fara o PIB crescer de 3 a 5% a ano, mantendo equilibrada a proporção dívida PIB em cinco anos.
SEM INVESTIMENTO PÚBLICO O PIB NÃO CRESCE
O investimento público no Orçamento da União para 2020 será de R$19 bilhões, para um orçamento de R$3,6 trilhões, o menor índice de investimento público desde 1946.  Esse nível, praticamente simbólico, compromete o futuro do País e é incompreensível quando há espaço para um programa de investimento público com aumento controlado da dívida pública, que se auto financia porque o investimento público leva ao aumento do PIB e este compensa a dívida nova emitida. É mais logico aumentar o PIB do que paralisar o governo por falta de arrecadação e este cai porque o PIB não cresce, MAS a expansão da dívida pública para financiar investimento público PRECEDE o crescimento do PIB, sem aquele o PIB não tem como crescer.
A atual política de cortes retroalimenta a recessão. Quanto mais se corta, mais cai o PIB e, em consequência, a arrecadação, em um círculo vicioso que é preciso quebrar com o investimento público financiado por mais dívida pública girada pelo Banco Central. Espaço há, desde que se queira.
O DEBATE QUE NÃO HÁ
É impressionante o coro de uma só voz sobre a austeridade suicida que vem desde a gestão Levy no governo Dilma até hoje, a partitura não muda.
Cortar mais e mais, em plena recessão, aprofunda a recessão, aumenta o desemprego, leva à paralisia dos governos nos três níveis, é preciso um pouco mais de inteligência e criatividade. Esse tipo de receita nunca deu certo e não dará no Brasil, contar com o milagre do mercado salvador é fantasia pura, o mercado não salvou países em crise em momento algum da História Econômica, quem salvou em 1933 e em 2008 foi o Estado.
AMA

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Na recessão brasileira, os maiores lucros bancários do mundo, por Andre Motta Araujo



Entre as causas da recessão brasileira estão os JUROS MAIS ALTOS DO MUNDO para o consumidor pessoa física e entre os mais altos para as empresas. Ao déficit público enriquece rentistas pelos juros criminosos planejados para a Dívida Pública.


Na recessão brasileira, os maiores lucros bancários do mundo

por Andre Motta Araujo, no GGN

A política monetária ultrapassada, medíocre, burra, do bunker econômico, vai enterrar o Brasil por mais 20 anos. Porque não se abre um debate sobre a MODERN MONETARY THEORY, algo que hoje é tema central na discussão no novo pensamento econômico que vai muito além da Teoria Monetarista ortodoxa? Nada muda na doutrina e prática monetária do nosso Banco Central desde 1994, está congelada quando BCs do mundo inteiro mudaram?
Nada evolui, não tem ideias novas? Não tentam ao menos discutir, lançar o debate, patrocinar seminários internacionais com Prêmios Nobel?
Que tal SOLUÇÕES para o cataclisma social do desemprego e da estagnação? NÃO HÁ NENHUM PROBLEMA NO BRASIL, está tudo em ordem?

[O GGN prepara uma série no YouTube que vai mostrar a interferência dos EUA na Lava Jato. Quer apoiar o projeto pelo interesse público? Clique aqui]

O Banco Central é parte  crucial da profunda crise econômica, financeira e social que só aumenta no Brasil, não se conhece manifestação do nosso BC sobre alguma evolução em suas crenças sobre o mercado de juros na economia real, juros que não cessam de subir mesmo quando cai a taxa básica, o Banco Central acha normal, não faz nada, deixa correr. Por que não ameaça com algo mais drástico para conter a escalada nos juros e a consequente evolução estratosférica no lucro dos bancos?
As desculpas de sempre, não mudam há 20 anos, o spread é alto porque bla, bla, bla, nem se dão ao trabalho de inventar desculpa nova. O BC não faz absolutamente nada e deixa correr, por que não ameaça criar um TETO para os juros? Ah, não pode porque o mercado é livre, com três bancos que, por coincidência, sobem juntinhos as taxas para cartão de crédito rotativo, cheque especial e crédito pessoal.
Os bancos centrais, em qualquer País, fazem parte do contexto político e social, não são ilhas acima do quadro geral econômico que afeta a população. Se no Brasil acontecer um cataclisma social causado pela RECESSÃO SEM FIM com um agravamento da miséria, o Banco Central vai ser engolido junto com os demais escombros institucionais, não adianta uma MOEDA ESTÁVEL EM UM PAÍS INSTÁVEL, da paz monetária dos cemitérios não brota nada.
OS JUROS ALTOS
Entre as causas da recessão brasileira estão os JUROS MAIS ALTOS DO MUNDO para o consumidor pessoa física e entre os mais altos para as empresas.
Os inacreditáveis comentaristas econômicos da mídia brasileira, que seguem a mesma cartilha dos economistas de mercado, atribuem os juros no cartão de crédito, no cheque especial e nos créditos pessoais à FALTA DE COMPETIÇÃO no mercado bancário brasileiro.
Mas quem foi que criou a falta de competição? FOI O BANCO CENTRAL E SEU ENTORNO, a mesma cabeça que vem desde o Plano Real. Antes de 1994, o Brasil tinha 600 bancos, 38 bancos de médios a grandes, 18 bancos estaduais, TUDO FOI LIQUIDADO DE PROPÓSITO para gerar os 3 MEGA BANCOS PRIVADOS de hoje. Os Ministros da Fazenda e Presidentes do BC são os responsáveis pela fusão e liquidação de bancos que reduziram a concorrência.
Foram fechados bancos de grande tradição e considerável porte como o BANESPA, onde havia algumas operações políticas mas que jamais justificariam a liquidação pura e simples do banco, que tinha agências em todas as capitais brasileiras e uma grande em Nova York; o BAMERINDUS com 600 agências e perfeitamente recuperável com algumas irregularidades que bancos em qualquer lugar do mundo tem, forçado à venda ao HSBC e hoje mais um engolido pelo BRADESCO. Então a diminuição da concorrência é PRODUTO da política do BANCO CENTRAL. O custo de salvamento de um banco como o BANESPA ou BAMERINDUS seria infinitamente menor do que o seu desaparecimento na barriga dos três grandes de hoje, criando um mega cartel que custa caro.
Também contribuíram para o fim da concorrência a proposital diminuição do papel dos bancos públicos como BANCO DO BRASIL E CAIXA ECONOMICA como contraponto aos mega juros dos três grandes privados. Ao fundo está sempre o cérebro do BANCO CENTRAL, que é o pai dos TRÊS GRANDES gestados por ele quando forçou liquidações e fusões por IDEOLOGIA DE CONCENTRAÇÃO, para dar “mais solidez sistêmica ao sistema bancário”, eufemismo que  disfarça o gosto pela CARTELIZAÇÃO, o cartel de onde hoje saem os dirigentes do Banco Central, a maior usina de lucros bancários do mundo, gerados pelos juros escorchantes cobrados à população brasileira, onde o Santander, um dos cinco maiores bancos do planeta, tem 32% do seu lucro aqui, onde tem o maior lucro sobre ativos, o maior lucro sobre patrimônio líquido e onde mais cresce entre todos os países onde atua.
A LIQUIDAÇÃO DO BNDES
O BNDES é mais uma das vítimas da cruzada moralista, ao lado das 15 maiores empreiteiras do País, dos estaleiros e das firmas de engenharia. O BNDES foi um dos instrumentos centrais do desenvolvimento do Brasil entre 1960 e 2010, o que por si só o tornou alvo de fechamento por parte dos “economistas de mercado”, que não querem a concorrência do BNDES nos seus negócios, só não fecham à fórceps porque precisam do Congresso.
O BNDES, desde o Governo Temer, vem sendo sangrado pelo Tesouro que raspa seu caixa e o transfere para o Governo em benefício dos credores, deixando o País com cada vez menos fontes de financiamento para a infraestrutura, tarefa que o setor privado dificilmente pode suprir porque os prazos de maturação dos grandes projetos de infraestrutura são longos e os retornos são baixos. Fica assim o Brasil sem um dos motores do crescimento, para alegria dos “mercados” e dando sequência ao grande projeto de desmonte institucional do Estado brasileiro, demolindo a Era do Crescimento para que o País sobreviva na Era da Estagnação, onde 180 milhões de brasileiros tem pouca ou nenhuma renda e nenhum futuro.

sábado, 6 de julho de 2019

O neoliberalismo e a necropolítica: o objetivo é deixar morrer as pessoas que não são rentáveis



 "Valverde apresenta seu novo livro com a alusão a um texto pichado em um muro: “Com a ditadura nos matavam. Agora nos deixam morrer.” Em De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (‘Icaria/Más madera’), essa ativista e escritora sustenta que o sistema neoliberal é incompatível com a luta contra a desigualdade. Para ela, esse sistema divide a sociedade em excluídos e incluídos: desconsidera os primeiros e atemoriza os segundos para perpetuar e aumentar o poder e a riqueza dos privilegiados."



Favela e pobreza no Brasil. Foto: Tania Rego/Agência Brasil

TRADUZIDO POR LUIZ MORANDO
Clara Valverde, ativista política e social, além de escritora, apresenta seu novo livro De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (Icaria / Más madera): “O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos Excluídos, que os vejam como estranhos, diferentes, desagradáveis e não se solidarizem com eles.”
Valverde apresenta seu novo livro com a alusão a um texto pichado em um muro: “Com a ditadura nos matavam. Agora nos deixam morrer.” Em De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (‘Icaria/Más madera’), essa ativista e escritora sustenta que o sistema neoliberal é incompatível com a luta contra a desigualdade. Para ela, esse sistema divide a sociedade em excluídos e incluídos: desconsidera os primeiros e atemoriza os segundos para perpetuar e aumentar o poder e a riqueza dos privilegiados.
O que devemos entender por “necropolítica neoliberal”?
Necro é o termo grego para ‘morte’. As políticas neoliberais são políticas de morte. Não tanto porque os governos nos matam com sua polícia, mas porque deixam morrer pessoas com suas políticas de austeridade e exclusão. Deixa morrer os dependentes, os sem-teto, os doentes crônicos, as pessoas nas listas de espera, os refugiados que se afogam no mar, os emigrantes nos CIE[i]
Os corpos que não são rentáveis para o capitalismo neoliberal, que não produzem nem consomem, são deixados para morrer.
Como você consegue convencer os cidadãos de que essa “necropolítica neoliberal” os beneficia? Por que não ocorre uma rebelião massiva contra ela?
Os que ainda não estão excluídos, os que ainda acreditam no mito de que nesta sociedade somos livres aceitam e endossam o que dizem os poderosos e sua imprensa: que os excluídos não são como eles, que são um povo imundo e sujo, diferente, com má sorte e maus hábitos. O mito interiorizado é que os excluídos procuraram a situação que sofrem.
Não ocorre uma rebelião massiva contra as necropolíticas dos governos, contra a exclusão, porque as pessoas que ainda não estão excluídas não se identificam com os excluídos. Pensam “este não sou eu”, “isso não vai acontecer comigo”. Não se deixam identificar com aquele que sofre, não tem empatia radical. Na realidade, as necropolíticas afetam a todos. Então, essa pessoa incluída na doença será possivelmente excluída sem renda e sem ajuda.
Nesse desenho social, há cidadãos excluídos e cidadãos incluídos. Ninguém defende os excluídos?
Muito poucas pessoas defendem os excluídos. Quantas pessoas se organizam para apoiar os sem-teto? Quantas ajudam os idosos ou doentes crônicos e suas associações? Na PAH [Plataforma de Afetados pela Hipoteca – “associação de pessoas que perderam sua casas para os bancos e foram despejadas”] há apoio mútuo e empatia radical, mas quase todos os que estão ativos na PAH também são afetados pelos despejos.
Os incluídos acreditam que estão a salvo de expulsão do sistema, mas são advertidos a todo o momento de que podem ser excluídos. O temor da exclusão estimula a falta de solidariedade em nossa sociedade?
Os que agora têm sorte de não estar doentes, despejados, desempregados, deveriam pensar que a maioria, a menos que se tenha muito capital econômico, poderia chegar a ser excluída. Vamos dizer que você era motorista de ônibus. Se você adoece, ainda que tivesse contribuído durante anos, é muito possível que o Instituto Catalán de Evaluaciones Médicas (ICAM) te dê alta, mesmo que esteja muito doente para trabalhar. Então, o que você fará? Sem poder trabalhar, sem renda e com as despesas que uma doença implica e que a Seguridade Social não cobre…
O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos Excluídos, que os vejam como estranhos, diferentes, desagradáveis e não se solidarizem com eles.
O neoliberalismo impõe sua necropolítica mediante a violência. Mas essa violência nem sempre é explícita. Você diz que o mais eficaz para os interesses do neoliberalismo é a ‘violência discreta’. A que você se refere?
Por exemplo, cortes, mercantilização e privatização da saúde pública são uma violência discreta. Não matam a tiros os doentes das listas de espera. Mas, quantos morrem nessas listas intermináveis? Essas listas são longas porque os administradores da saúde pública e os políticos as organizam para que a saúde privada “sugue” dela. Isso tem, como uma de suas consequências, o sofrimento e a morte lenta dos doentes que esperam.
Você afirma que o sentido das palavras tem mudado e que, para combater a necropolítica neoliberal, temos que voltar a chamar as coisas pelo seu nome. Quais armadilhas da linguagem você destacaria?
Temos que chamar as coisas pelo nome que elas têm. Políticos neoliberais de direita, aqueles que são “centristas”, todos nos maltratam. Não há outra palavra. É mau trato. As condições laborais são maus tratos. Os cortes são maus tratos. As leis de mordaça são maus tratos.
Existem muitas armadilhas linguísticas. O fato de as pessoas tomarem como suas as frases-armadilhas dos poderosos é preocupante. Frases como “É o que temos”, “Não posso reclamar”, “Não vai piorar”, “Nada acontece” etc. ou o ‘pensamento positivo’ que faz as pessoas se sentirem culpadas por estarem zangadas com os políticos e com a situação atual.
A tolerância é outra grande armadilha. A tolerância é muito violenta. Você tenta dizer que é bom, que sim, temos que tolerar o que é diferente. ‘Tolerar’ quer dizer ‘aguentar’ e é uma posição de poder sobre o outro. “Eu te aguento mesmo que você seja pobre, trans, negro, autista etc.” Não, as diferenças não são para ser toleradas. As diferenças têm que ser olhadas, entender o motivo das desigualdades entre grupos diferentes e mudar a situação. É necessário nomear as desigualdades e lutar contra elas ao mesmo tempo em que celebramos a diversidade.
É chocante quando se fala sobre a contratação de deficientes ou o papel das ONG como um instrumento manipulado pelo neoliberalismo em interesse próprio.
Aqui não se fala disso, mas em muitos países, sim. Há numerosos autores que falam de “ONGismo” e de “Inspiração Pornô”.
O ONGismo é a utilização da comunidade para fazer o trabalho que o governo deveria fazer com nosso dinheiro. O ONGismo é um tema complexo porque as pessoas boas que se envolvem com uma ONG o fazem com boas intenções. Mas então são eles os que têm que cortar e fazer com que seus funcionários aceitem salários miseráveis para realizar tarefas que correspondem ao Estado de Bem-estar Social.
Dê alguns exemplos dessa manipulação na publicidade.
Há alguns anos a Fundação La Caixa utilizava pessoas com síndrome de Down não muito severa como exemplos de como deveriam ser os trabalhadores. Agora há um anúncio da empresa de máquinas de lavar roupas, Balay, em que um mudo diz: “Olhe! Se um trabalhador com deficiência é o melhor trabalhador, sorria e não reclame: você, que não é deficiente, deveria se calar, trabalhar e não protestar”. Isso é um exemplo de “Inspiração Pornô”, uma espécie de pornografia com os deficientes.
Mas a realidade é que a maioria dos deficientes não tem renda e sofre muito. E se consegue um trabalho, sua empresa não tem que pagar sua Previdência Social. É uma economia para o dono.
A necropolítica é especialmente evidente na Espanha? Você destaca que nesse país tem sido enterrada a memória histórica do que supunham ser a guerra e o franquismo, que apenas no Camboja há mais valas comuns por abrir.
Na realidade, a necropolítica pode ser vista no mundo todo. Veja a situação de violência no México.
Mas sim, uma sociedade como a nossa, que se destaca mundialmente pela quantidade de pessoas desaparecidas e sem enterrar há 80 anos, não é uma sociedade que possa funcionar de forma humana. Temos mais de 100.000 avós e avôs sem enterrar ainda. Quantas pessoas da nossa geração são afetadas por isso diretamente? E indiretamente?
Caminhamos por campos e vales, e sob nossos pés estão milhares e milhares de pessoas que o governo, nenhum governo, crê que mereçam ser encontradas e entregues a suas famílias. Isso produz uma sociedade muito doente.
O sistema de saúde serve como exemplo perfeito da forma de atuar dessa necropolítica neoliberal. É onde se torna mais evidente seu modo de agir?
É uma das áreas onde mais vemos o sofrimento causado pela necropolítica, porque no sistema de saúde trabalhamos com a vida e o corpo das pessoas, com o sofrimento inevitável que é parte do ser humano.
Dou um pequeno exemplo: os profissionais de enfermagem de hospitais nos quais se implantou o método “Lean”, inventado para as cadeias de montagem de carros da Toyota. Eles dão mais importância a estar “no horário” (pontuais com a velocidade que suas tarefas lhes impõem, velocidade nada humana nem para o profissional nem, sobretudo, para o paciente) do que à qualidade do trabalho e ao bem-estar dos pacientes. Dizem estar contentes se estão “no horário”, como se fossem condutores da Renfe[ii]!
O método Lean foi implementado sem protestos entre os profissionais de saúde. Da mesma forma que muitos profissionais não questionam o Lean, tampouco questionam o autoritarismo e o paternalismo que eles mesmos utilizam com os doentes.
O que é grave é que esses profissionais de saúde são também vítimas de autoritarismo e paternalismo das administrações de saúde. Eles são maltratados e exige-se que também maltratem. Finalmente, sem se dar conta, acabam fazendo o que muitos autores chamam “governar por terceiros”, ou seja, fazendo o trabalho sujo dos neoliberais.
E essa ação é simbolizada pelas doentes com Síndrome de Sensibilização Central (SSC). Por quê?
Porque as doentes (a maioria é composta por mulheres, adolescentes e crianças) de SSC são pelo menos 3,5% da população – ainda que os pesquisadores internacionais digam que o percentual é muito mais alto – e a cada ano perdem parte dos poucos direitos que tinham. Com Boi Ruiz[iii], os enfermos de SSC na Catalunha deixaram de ter direito de acessar seus médicos. E se o novo conselheiro seguir o acordo Juntos Pelo Sim-CUP, seguirão sem poder ver seu médico e os que adoecem agora não poderão ser diagnosticados.
Oitenta por cento desses doentes vivem fechados em suas casas, em suas camas, sem nenhuma ajuda de saúde nem social. E estão doentes demais para protestar, participar de movimentos sociais etc. A maioria adoece entre 10 e 30 anos de idade. Não tem plano de saúde. Uma longa vida de pobreza e sofrimento os aguarda na cama. E aqueles que conseguiram trabalhar alguns anos e pagar algum plano de saúde, o ICAM faz todo o possível para que não tenham nenhuma ajuda financeira. Até os que conseguiram uma pensão através dos tribunais, o ICAM lhes tira a pensão.
O antídoto contra essa necropolítica está no desejo de compartilhar. “Para sobreviver e viver é preciso compartilhar”, você diz. Isso vai funcionar?
As iniciativas, ideias e grupos envolvidos em comum são o antídoto contra a necropolítica. O que o poder absoluto quer dividir, nós temos que juntar. Temos que juntar pessoas doentes, saudáveis, trans e todos os gêneros, várias raças, anciãos, crianças… Mas para fazê-lo temos que desenvolver uma empatia radical e começar a partir dos espaços excluídos. Não funciona que os “incluídos” convidem os excluídos para seus movimentos. Tem que ser o contrário. Os que ainda se acham incluídos precisam ir a esses espaços intersticiais onde a exclusão vive e começar a partir daí.
Nesse sentido, quero agradecer ao Catalunya Plural por entender que para poder ter esta entrevista comigo, que vivo na cama 90% do tempo com encefalomielite miálgica [síndrome da fadiga crônica], tivemos que fazer do meu jeito. Alguns precisam de uma rampa para suas cadeiras de rodas. Outros precisam de Skype e e-mail.
Entrevista de Clara Valverde publicada inicialmente em 11 de julho de 2017, em El Diário. Disponível em: <http://www.eldiario.es/catalunyaplural/neoliberalismo-aplica-necropolitica-personas-rentables_0_479803014.html>.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Dowbor: há saída no labirinto capitalista?



Em sua fase delirante, sistema comete todos os desvarios – e os trata como alta sabedoria. Teremos inteligência para escapar da cilada?

Artigo do economista Ladislau Dowbor, publicado no Outras Palavras



The most intellectual creature ever to walk the earth,
is destroying its only home
.” –
Jane Goodall
A burrice no poder tende não só a se perpetuar, como nela se afundar. O acúmulo de bobagens ou de tragédias, a partir de um certo ponto, exigiria tamanha confissão de incompetência, que os donos de poder continuam até a ruptura total. Reconhecer a burrice torna-se demasiado penoso. Barbara Tuchman nos dá uma análise preciosa dos mecanismos, no que ela chama de Marcha da Insensatez: “Uma vez que uma política foi adotada e implementada, toda atividade subsequente se transforma num esforço para justificá-la.” Isso levou, por exemplo, cinco presidentes note-americanos sucessivos a se afundarem na guerra do Vietnã, apesar da convicção íntima, hoje conhecida, de que era uma causa perdida. A burrice política obedece a uma impressionante força de inércia. (263)
Qualquer semelhança com o golpismo no Brasil insistir numa política que empurra o país para trás, mesmo depois de quatro anos de desastre, não é evidentemente uma coincidência, é a regra. No túnel da burrice, os que a perpetram sempre imaginam que logo adiante surgirá a proverbial luzinha. Se a política sacrifica em vez de ajudar, dirão que o sacrifício não foi suficiente, é só aprofundar um pouco mais. Com gigantesco esforço de mídia, de fake-news e de dinheiro, elegeu-se um presidente cujo rumo é simplesmente acelerar a Marcha. Com Deus e a Família rumo ao absurdo.

A burrice da “austeridade”

“”A “austeridade”, para quem não tenha notado, não funciona. Como diz Stiglitz, nunca funcionou. Por uma razão simples: o capitalismo, para se expandir, precisa de produtores, mas também de consumidores. No centro do raciocínio, está a ilusão de que não temos recursos suficientes para incluir os pobres. As políticas sociais e um salário mínimo decente não caberiam na economia, no orçamento, ou na Constituição, segundo os políticos. Façam um cálculo simples: o Brasil produz 6,3 trilhões de reais de bens e serviços, o montante do nosso PIB. Isso dividido por 208 milhões de habitantes nos dá um per capita de 30 mil reais ao ano, ou seja, 10 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Isso está longe das ambições de consumo da nossa classe média alta, mas assegura, para o comum dos mortais, o suficiente para uma vida digna e confortável. Nosso problema não é falta de recursos, e sim a burrice na sua distribuição. Na fase do lulismo, a economia cresceu, sendo que a renda dos mais pobres e das regiões mais pobres cresceu mais do que a renda dos mais ricos: todos ganharam, os pobres de maneira mais acelerada, reduzindo a desigualdade. A ascensão dos pobres gerou nos ricos a reação esperada: a mesma que tiveram com Getúlio e com Jango, agora repetida com Dilma e com Lula. Reconhecer que funciona o que sempre denunciaram seria penoso demais. A burrice é muito teimosa. Portugal tem uma experiência simpática: mandou a “austeridade” às favas, e está indo de vento em popa. Com uma lei absurda de teto de gastos, nós institucionalizamos o aprofundamento da desigualdade. Já se notou que a austeridade recomendada é a dos pobres que têm pouco, e não a dos ricos que têm muito e ainda esbanjam?

A burrice do golpe

O Banco Mundial qualificou os anos 2003 a 2013 de The Golden Decade¸ a década dourada da economia brasileira. É preciso ser muito ideologicamente cego para ignorar o imenso avanço que representaram a queda do desemprego de 12% em 2002 para 4,8% em 2013, a abertura de 18 milhões de empregos formais, a retirada de 38 milhões de pessoas da pobreza, a redução do desmatamento da Amazônia de 28 para 4 mil quilômetros quadrados, o acesso à luz elétrica para 15 milhões de pessoas e assim por diante. A opacidade mental dificulta naturalmente a aceitação dos números por quem quer se convencer do contrário. Então se gera uma forma sofisticada de bobagem chamada hoje de “narrativa”: fazer política para o povo é populismo, o populismo quebrou as contas do Estado e o caminho certo é o da boa dona de casa que só gasta o que tem. Portanto, a dona de casa Dilma tem de ir para casa. Mas os números são simples: o que gerou o déficit não foram as políticas econômicas e sociais do governo, e sim os juros escorchantes sobre a dívida pública e a dívida privada, a chamada financeirização. Já pararam para pensar o que significa o Brasil ter, em 2018, 64 milhões de adultos endividados até o ponto de não poderem mais pagar suas dívidas? São adultos, acrescentem as famílias, estamos falando da massa da população.
Quando a Dilma tenta, entre 2012 e 2013, reduzir as taxas de juros, começa a guerra política, com manifestações, boicote e denúncias. A partir de meados de 2013 não há mais governo. Dilma ainda ganha a eleição, mas como foi anunciado pelos adversários, não governaria. A burrice atinge o seu ápice quando se cortam as políticas sociais com a lei do teto de gastos, mas se mantêm as taxas de juros. Os bancos agradeceram, a classe rentista também. Jogaram a economia na recessão.Em termos políticos, tiraram Dilma sem crime, prenderam Lula sem comprovação de culpa, elegeram um presidente absurdo por meio da prisão de quem ia ganhar a eleição, e quem prendeu Lula ganhou o posto de ministro. Sim, de 2014 para cá, são muitos anos em que estão “consertando” a economia, que continua parada. O presidente eleito vai reduzir ainda mais os rendimentos da massa da população. Só para lembrar, o Bolsa Família são 30 bilhões de reais ao ano, que geram demanda e dinamizam a economia. Só os juros sobre a dívida pública, na faixa de 320 bilhões de reais, representam dez vezes mais, alimentando rentistas. E como as finanças deformadas quebraram a economia, o déficit aumentou. É um círculo vicioso. E quanto mais travam a economia, mas explicam que o sacrifício ainda é insuficiente. No entanto, persiste a narrativa simplória: Dilma quebrou a economia. Para a maioria das pessoas, em particular quando não entendem os processos, política se resume a eleger o culpado. O sistema financeiro travou a economia, mas vendeu ao povo uma culpada, aliás mulher e teimosa, vítima ideal. O poder dos bancos funciona hoje apenas para os banqueiros e para os rentistas.

A burrice do rentismo

O lucro sobre investimento é legítimo: gera empregos, produtos, e paga impostos. O lucro sobre aplicações financeiras constitui dividendos, assegura grandes retornos para quem não produz nada. Os banqueiros chamam os diversos papéis que rendem dividendos de “produtos”, o que constitui um disfarce simpático. Dinheiro ganho com aplicações financeiras não coloca um par de sapatos no mercado de bens realmente existentes. Diferenciar investimento produtivo e aplicação financeira é básico.
O manual britânico sobre o funcionamento da moeda explica o efeito bola de neve, financial snow-ball effect: papéis financeiros renderam nas últimas décadas entre 7% e 9% ao ano. Só para lembrar, a produção efetiva de bens e serviços aumenta no mundo num ritmo incomparavelmente menor, da ordem de 2% a 2,5%. Os afortunados, logicamente, irão optar pelas aplicações financeiras. Por exemplo, um bilionário que aplica o seu dinheiro a modestos 5% ao ano ganha 137 mil dólares ao dia, sem precisar produzir nada. A cada dia a maior parte deste dinheiro é reaplicada, gerando um enriquecimento improdutivo que gradualmente multiplica bilionários e trava a economia. É o capitalismo dando o tiro no próprio pé, ao perder a sua principal justificativa, a produtividade. De crise em crise, no cassino financeiro mundial, vimos o 1% dos mais ricos do planeta se apropriar de mais riqueza do que os 99% seguintes. No curto e médio prazo, funciona muito para o 1%. Como institucionalização da remuneração dos improdutivos muito superior à dos que produzem, não funciona para o conjunto. É sistemicamente disfuncional.
A economia de mercado supunha trocas entre produtores e consumidores, com geração de emprego e renda. Hoje os “mercados”, grupo limitado de especuladores, apresentam um surto de otimismo a cada redução dos direitos da população. É a lógica da insensatez. Não é preciso ir muito longe para aprender algo de positivo: a China controla o seu sistema financeiro para que seja utilizado produtivamente, os alemães usam a rede de caixas de poupança locais (sparrkassen) assegurando que o dinheiro seja investido no que a comunidade necessita. Sabemos o que funciona: é quando o dinheiro é investido produtivamente.
,Um exemplo prático ajuda: há alguns anos a Coréia do Sul desbloqueou recursos públicos pesados para financiar sistemas de transporte público não poluente. O investimento gerou evidentemente um conjunto de atividades de pesquisa e de produção, e portanto emprego. Como utilizar transporte coletivo é muito mais barato do que cada pessoa pegar o seu carro, foram geradas economias que mais que compensam o investimento. Como investiram em transporte menos poluente, melhoraram as emissões tanto pela tecnologia desenvolvida como pela redução do uso de automóveis. Menos poluição nas cidades significa menos doenças de diversos tipos, e economias na área da saúde. A redução do tempo perdido nos engarrafamentos permite menor desgaste da população, mais tempo com lazer, melhor produtividade no trabalho. O exemplo tende a ilustrar apenas o óbvio: os recursos têm de ser investidos em projetos e programas que geram efeitos multiplicadores em termos de dinamização econômica, de proteção do meio ambiente e de melhoria do bem-estar das famílias. Tanta inteligência que se gasta para encontrar a aplicação financeira que mais rende, poderia ser utilizada para elaborar os projetos mais úteis. E enriquecer a sociedade.

O fluxo financeiro integrado

Como isso funciona no Brasil? As contas não são difíceis de explicar. A economia funciona quando se coloca o dinheiro onde vai ter efeitos multiplicadores. Se eu compro uma máquina, aumento a minha produtividade e consequentemente os meus lucros em nível superior à taxa de juros que me cobram, posso pegar outro empréstimo e ir aumentando a produção, gerando emprego e renda. Mas se o custo do crédito, a taxa de juros cobrada, é superior aos rendimentos que a máquina me permite obter, eu me verei enforcado em dívidas sobre dívidas, terminando por trabalhar para pagar o banco. Como escreve Zygmunt Bauman, os banqueiros detestam o bom pagador. Essa deformação fundamental, dos principais agentes econômicos no Brasil – as famílias, as empresas e o Estado – se verem enforcados com o sistema financeiro, é que está na raiz da nossa recessão econômica e do caos político que vivemos. E ainda nos convencem que a solução está em colocar mais banqueiros na direção da política.
Faça as contas. No Brasil as famílias e as empresas pagam anualmente, só em juros, portanto sem reduzir a dívida, 1 trilhão de reais. Como o nosso PIB é de 6,3 trilhões, estamos aqui falando em 16% do PIB. Este montante surrealista se deve simplesmente às taxas de juros praticadas, que constituem agiotagem. Em fevereiro de 2018, por exemplo, os juros bancários para pessoa física estavam na faixa de 137% ao ano, quando na França são inferiores a 5%, também, evidentemente, ao ano. Assim o sistema financeiro drenou a capacidade de compra das famílias e a capacidade de investimento das empresas.
O dinheiro dos nossos depósitos e o fluxo de juros que os bancos extorquem das famílias e das empresas são em grande parte aplicados em títulos da dívida pública. O governo pagou aos bancos e aos ricos que têm aplicações deste tipo 341 bilhões de reais em 2017, cerca de 6% do PIB. Muitos países têm dívidas públicas maiores que as nossas, proporcionalmente ao PIB, mas nenhum paga juros tão elevados. Para o governo pagar esses 341 bilhões (apenas juros, sem reduzir a dívida) aos aplicadores financeiros, ele precisa cobrar os impostos correspondentes. Assim, os nossos impostos, em vez de financiarem políticas sociais e infraestruturas, vão parar nos bolsos dos especuladores financeiros, de gente que não produz nada, pelo contrário, desviam os recursos dos seus usos produtivos.
A conta não é complicada. Somando os 16% que tiram das famílias e das empresas, e os 6% que tiram dos nossos impostos, vamos a 22% do PIB. Mas isso é agravado pelo sistema tributário. Enquanto na Europa se corrige em boa parte a deformação taxando o capital financeiro, as grandes fortunas, as heranças, e as rendas mais elevadas, no Brasil os ricos pagam proporcionalmente menos que os pobres, e desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos são isentos de impostos. E tem mais. A evasão fiscal é calculada no Brasil em 570 bilhões de reais por ano, o que representa 9% do PIB. Quem evade, naturalmente, é o rico, o banco, a corporação: o assalariado tem o seu imposto descontado na folha. Boa parte da evasão é assessorada por bancos, que têm para isso departamentos que qualificam de “otimização fiscal”. Os nomes utilizados nas finanças são muito bons, como justamente chamar aplicação financeira de investimento.
Tem mais, naturalmente. Boa parte da evasão se dá por meio de paraísos fiscais, com grandes empresas de gestão discreta de fortunas que se situam em países onde não há controle, por exemplo no Panamá, ou nas Ilhas Cayman, ou ainda no Estado de Delaware nos Estados Unidos, sem falar evidentemente da Suíça que, como escreveu Jean Ziegler, “lava mais branco”. Não se trata de roupa, evidentemente. O fato é que o estoque de recursos financeiros improdutivos nos paraísos fiscais é estimado em 20 trilhões de dólares pelo Economist, equivalente a quase um terço do PIB mundial. O Brasil participa com 520 bilhões de dólares (dados de 2012), o que representa cerca de 2 trilhões de reais, equivalente a cerca de um terço do nosso PIB. Não só não investem, como sequer pagam impostos.
Vimos aqui os imensos drenos que sangram a nossa economia, que vaza por todo lado. E há evidentemente uma série de drenos menores, como o sistema de pensão complementar (ativos da ordem de 1 trilhão que poderiam ser investidos e fomentar a economia em vez de alimentarem o sistema financeiro), bem como as seguradoras, com ativos também da ordem de 1 trilhão, e também ‘aplicados’ e não investidos, além do rentismo mais disfarçado dos planos de saúde, das telefônicas e outros drenos.
A nossa Constituição é clara: “O sistema financeiro nacional [será] estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade.” Hoje, o SFN (Sistema Financeiro Nacional) serve essencialmente para alimentar improdutivos, sejam eles banqueiros, grupos nacionais ou internacionais, e em particular a classe média alta que com tanto entusiasmo ocupa a avenida Paulista. A realidade é que os bancos criaram um sistema em que os nossos impostos são desviados em grande parte para os seus cofres e para os rentistas que participam da festa, essencialmente os mais afortunados. Os banqueiros manejam o Estado, drenam os seus recursos, e explicam que a culpa é do Estado, dos impostos elevados, e dos “gastos” com os mais pobres.
O absurdo de tudo isso? É que seria incomparavelmente mais produtivo para todos, inclusive para os bancos, fomentarem a economia em vez de drená-la. A China tem esse ritmo de desenvolvimento porque canaliza os recursos financeiros “de forma a promover o desenvolvimento”. No nosso caso, trata-se de visões de curto prazo, mesquinhas, satisfazendo quem olha a sua conta bancária ou seu dinheiro no exterior engordar, e esquece que gerar o caos e travar o desenvolvimento não resolve o futuro de ninguém.

O absurdo da desigualdade

Manter a desigualdade é particularmente absurdo, mas está no centro das propostas do poder. Afinal, os ricos que nos regem defendem os seus próprios interesses, e é raríssimo ter alguém no poder que não seja rico, branco, homem, e centrado em aumentar as suas próprias vantagens. A questão, evidentemente, é que a partir de um certo nível de desigualdade e de repartição do acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade divorciada dos aportes, e portanto do merecimento, o sistema se torna disfuncional, inclusive para os donos do poder. Jogaram a economia na recessão, no desemprego, e no caos político.
Mas funciona pelo menos para os ricos? Criar as suas famílias em absurdos condomínios cercados e eletrificados, ou em mansões em que precisam conviver com equipes de segurança, dotando-se de veículos blindados, escondendo as suas fortunas em paraísos fiscais, administrando esquemas de evasão fiscal, buscando relaxamento em viagens aos países desenvolvidos – enfim a civilização – tudo isso tem pouco a ver com uma sociedade onde se respira livremente. Inúmeros estudos comparados internacionais sobre a percepção de qualidade de vida apontam para uma radical melhoria quando um pobre tem acesso a uma renda mais decente, mas quase nenhuma melhoria quando um milionário avança para mais milhões. Este sistema nem para eles funciona. Se é para aumentar a felicidade geral da nação, a tal da Felicidade Interna Bruta (FIB), não há dúvida que uma política de inclusão funciona melhor para todos. Quanto mais na base chega o dinheiro na pirâmide social, maior é o multiplicador de felicidade, e também do dinamismo econômico. A redução da desigualdade é fundamental em termos éticos, políticos e econômicos.
Em termos de ética, fica difícil encontrar palavras suficientemente fortes. Em nenhuma sociedade civilizada pode uma pessoa ficar sem atendimento médico ou acesso a um medicamento, uma criança ou um adulto ficarem sem poder comer, famílias viverem desabrigadas, ou ainda passarem anos em campos de refugiados. Morrem de fome ou de falta de acesso à água segura cerca de 6 milhões de crianças por ano, 850 milhões pessoas passam fome no mundo, quando produzimos, só de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia, quando desperdiçamos um terço dos alimentos produzidos por mal manejo. Todos esses ricaços irresponsáveis que esbanjam os seus recursos com consumo espalhafatoso ou especulação financeira, em vez de ajudar na implementação de políticas que funcionam para o conjunto da sociedade, todas essas corporações que geram tragédias sociais e ambientais, navegam em valores de primatas, na ética de que o sucesso consiste em arrancar o pedaço maior, que se dane o sofrimento, que se dane o planeta. Aqui temos inteligência impressionante para gerar novos meios, mas uma burrice impressionante em termos de definir os fins. Vamos construir mais muros, abrir mais condomínios, mais casulos de riqueza, sistemas de repressão mais violentos?
Essa desigualdade é evidentemente disfuncional também em termos sociais e políticos. A partir de um determinado nível de desigualdade, não há solidariedade social nem convívio democrático que sobrevivam. A violência se torna latente em todas as esferas. Nos Estados Unidos as pessoas compram mais armas, no Brasil o exército invade favelas, nas Filipinas se fuzila à vontade, a Europa não sabe mais o que fazer para se proteger da maré de miseráveis que fogem das colônias que a Europa tanto explorou e desarticulou. Não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim uma situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. A realidade é muito simples: pessoas reduzidas ao desespero reagem de maneira desesperada, há limites no bom senso de milhões de pessoas que encontram todas as portas fechadas. Temos os recursos, temos as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É exagero falar de ignorância?
E a desigualdade constitui em particular uma burrice no plano econômico. Porque funcionaram o New Deal de Roosevelt, o Welfare State dos países hoje desenvolvidos, o milagre da Coréia do Sul, o impressionante ritmo de desenvolvimento da China, a “década dourada” do Brasil? Todos tiveram em comum a expansão da capacidade de compra da base da população, e o acesso a políticas sociais públicas e universais, que permitiram ampliar a escala de produção e o emprego. O que a empresa mais quer é ter mercado. Os mecanismos econômicos são conhecidos já há quase um século, a partir de Kalecki e de Keynes. Investir no bem-estar das populações gera demanda, o que por sua vez amplia a produção, e assegura mais empregos, o que aumenta mais ainda a demanda. O consumo das famílias e a produção empresarial geram por sua vez impostos que aumentam as receitas do Estado, fechando a conta. Isso permite o financiamento das políticas sociais: uma população com mais saúde e educação é mais produtiva. Aqui não são necessários ideologias e ódios, e sim um simples olhar para o que funciona. E o que funciona é quando a economia é orientada segundo as prioridades e o bem-estar das famílias. A desigualdade, em termos econômicos, apenas mantém uma atividade de base estreita e de baixa produtividade.
Manter e reproduzir a desigualdade, quando desarticula as nossas sociedades acumulando absurdos éticos, políticos e econômicos, francamente, é espantoso. Aprofundá-la é patológico. Todos os exemplos positivos que temos, do Canadá à Coreia do Sul, passando pela Alemanha e os países nórdicos, e evidentemente a China, se basearam em expandir o mercado interno e as políticas sociais, em de vez de privilegiar minorias.

Estado, empresa e sociedade civil organizada

No centro dos desafios está a necessidade de termos instituições que permitam que se implementem políticas que façam sentido. O embate sobre a política tem se resumido basicamente à guerra entre os que querem estatizar e os que querem privatizar. A realidade é que somos hoje sociedades demasiado complexas para soluções ideológicas simplificadoras deste tipo. Onde funcionam, as políticas se apoiam numa articulação razoavelmente equilibrada de Estado, empresas e organizações da sociedade civil. As corporações sem controle do interesse público viram máfia, o Estado sem controle público vira ditadura, o interesse público sem organizações da sociedade civil para enfrentar de maneira articulada os desmandos é simplesmente desconsiderado.
E não é complicado. O objetivo é o desenvolvimento sustentável, equilibrando os interesses econômicos, sociais e ambientais. Hoje os 17 objetivos e 169 metas da Agenda 2030 descrevem de maneira clara os rumos: assegurar uma vida decente para todos, sem prejudicar as gerações futuras. Sabemos o que funciona: é o ciclo econômico completo centrado no bem-estar das famílias. O bem-estar das famílias, objetivo último do desenvolvimento econômico e social, depende sem dúvida da renda auferida, que permite fazer as compras, pagar as contas. Assegurar um razoável fluxo de renda para a massa dos consumidores é o que por sua vez vai gerar o mercado para o desenvolvimento das atividades produtivas. Tanto o consumo direto (out-of-pocket dizem os americanos) como a atividade empresarial geram receitas para o Estado.
Este, por sua vez, poderá utilizar os recursos para o chamado salário indireto, o que assegura o consumo coletivo de serviços como saúde, educação, cultura, segurança, o rio limpo, os parques na cidade, infraestruturas de energia e transporte e semelhantes. O acesso ao consumo coletivo é fundamental, pois sai muito mais barato e se torna muito mais eficiente ter um serviço público gratuito universal de saúde como no Canadá, do que o sistema privatizado norte-americano. Os números são clamorosos: o americano gasta 9.400 dólares por ano com doenças; o canadense 3.400 dólares por ano com saúde, com resultados incomparavelmente superiores. O sistema público, gratuito e universal de acesso aos bens coletivos é simplesmente mais eficiente. É ridículo no Brasil se chamar os investimentos públicos de “gastos”, quando se trata da forma mais eficiente de assegurar o acesso a bens de consumo coletivo essenciais. Curiosamente, os bancos chamam os diversos papéis que nos empurram de “produtos”.
A burrice aqui consiste em se desenvolver uma guerra ideológica pro- ou anti-Estado, quando é natural que bens de consumo individual estejam no âmbito empresarial, políticas sociais e infraestruturas no âmbito do Estado, e o ajuste das políticas tanto empresariais como públicas seja assegurado de forma articulada por organizações da sociedade civil. Nada como olhar o que funciona, e de que maneira, pelo planeta afora, e se inspirar. O melhor antídoto à burrice é a aprendizagem, rende muito mais do que bater panelas.

A sociedade desinformada

Dizia Jung que pensar é trabalhoso, então as pessoas preferem ter opiniões. Você pode ter direito às suas opiniões, mas não aos seus fatos. O espantoso é termos uma sociedade tão desinformada numa época em que estamos cercados de meios de comunicação, na sala, na rua, no consultório médico, no próprio bolso. Em boa parte, essa desinformação se deve ao fato de que entre os fatos que chegam à cabeça e as opiniões que mobilizam o nosso fígado, preferimos claramente tranquilizar o fígado: vamos selecionar os fatos, ou deformá-los, para justificar o que queremos acreditar. Os demagogos do mundo há tempos aprenderam que mobilizar as pessoas pelo ódio rende muito mais do que tentar explicar-lhes a realidade. Encontrar um culpado que possamos odiar juntos gera uma catarse popular poderosa, uma imensa excitação de sermos uma patota solidária na mobilização punitiva: os judeus na Alemanha de Hitler, os palestinos no Israel de hoje, os mexicanos nos Estados Unidos (já que não temos mais os soviéticos nem Saddam Hussein), os imigrantes na Europa. No Brasil até reinventaram o comunismo para poder justificar o ódio ao Lula e aos pobres em geral.
Kurt Andersen escreve que os Estados Unidos sofreram uma mutação que os tornou uma ilha da fantasia, Fantasyland: “No bilhão de sites da internet, pessoas que acreditam em tudo e qualquer coisa podem encontrar milhares de companheiros de fantasia que compartilham as suas crenças, com colagens de fatos e com “fatos” para confirmá-las. Antes da internet, os de cabeça confusa (crackpots) ficavam essencialmente isolados e seguramente tinham mais dificuldade para continuar convencidos das suas realidades alternativas. Hoje as suas devotamente seguidas opiniões estão no ar e na Web, da mesma maneira como notícias efetivas. Agora todas as fantasias parecem verdadeiras.”
Demagogos políticos com os seus discursos de ódio ou de grandiosidade, corporações que nos convencem que somos mais importantes ao pagar 1200 reais por uma caneta Montblanc que escreve, Think Tanks que se multiplicaram como cogumelos – desde os gigantes financiados pela família Koch até o nosso Milenium tão brasileiro – gigantes do carvão e do petróleo que financiam campanhas mundiais para dizer que a mudança climática é uma invenção acadêmica, tudo isso aponta não só para o fato que somos muito frágeis em termos de usar a nossa razão, mas que temos uma gigantesca indústria planetária que disso se aproveita. O cérebro passa a existir para inventar razões para acreditar no que não tem nenhuma base racional. Ter uma sociedade tão desinformada, e ao mesmo tempo sobrecarregada de informação, aponta para uma forma particularmente idiota de organizarmos o acesso ao conhecimento. E exemplos positivos não faltam, como a BBC para o mundo que entende inglês, a TV5Monde para o mundo francófono, redes de informação científica como a PBS americana e assim por diante. Já pensaram a TV utilizada para informação em vez de fakereality?

O paradoxo das tecnologias

É muito impressionante a nossa preocupação com as tecnologias. Afinal, fazer mais coisas com menos esforço deveria nos deixar contentes, aumenta a produtividade social. Mas os avanços tecnológicos explosivos que vivemos exigem formas inovadoras de organização social. No mundo do vale-tudo que chamamos educadamente de liberalismo, ou de neoliberalismo, as novas tecnologias permitem liquidar a vida nos mares, encher os nossos alimentos de agrotóxicos e de antibióticos, contaminar a água, o ar e o solo, transformar o clima, liquidar as florestas, destruir a biodiversidade herdada – tudo em escala sem precedentes, justamente pelo poder das tecnologias. Entre a criatividade que permite esse avanço das tecnologias, e a nossa patológica dificuldade de pensar de maneira sistêmica (como se articulam essas diversas transformações) e no longo prazo (mudança climática, acidificação dos oceanos etc.), o resultado é o que tem se chamado de catástrofe em câmara lenta.
Como se preocupar tanto com o desemprego tecnológico quando a produtividade maior significa que podemos trabalhar menos, e dedicar uma parte maior das nossas vidas à cultura, lazer, convívio e semelhantes? Obviamente, é só distribuir melhor a jornada de trabalho, deixar a economia se expandir nas áreas que nos permitam aproveitar melhor a vida, e assegurar a renda básica para permitir que na transição ninguém fique em situação desesperadora. Mas também precisamos nos dotar de instrumentos de regulação que evitem a destruição do planeta. Ou seja, quem maneja a tecnologias tem de assumir a responsabilidade de não ser apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. O vale-tudo organizacional do século XX mas com as tecnologias do século XXI não tem como funcionar. Utilizar tanta tecnologia e conhecimento sofisticado para aprofundar a crise ambiental e o desastre social, francamente, constitui burrice sistêmica.

Competição ou colaboração

Sabemos que os processos colaborativos funcionam. No entanto privilegiamos a guerra de todos contra todos, entre grupos sociais, entre religiões, entre países, entre empresas, entre vizinhos. Em grande parte, sem dúvida, trata-se da nossa natureza. Mas o essencial é que constatamos, em tantos exemplos pelo mundo, que se trata também de dimensões institucionais. Não estava na natureza dos alemães matar pessoas em campos de concentração, nem está na dos guardas de fronteira americanos arrancar filhos de junto das suas mães. E podemos olhar como sociedades muito mais centradas na colaboração, como o Canadá ou os países nórdicos, prosperam não só em termos de qualidade de vida como inclusive de produtividade econômica. As pessoas esquecem, ao constatarem a impressionante dinâmica da China, do Vietnã e de outros “tigres”, a que ponto está ancorada nas suas tradições a dinâmica colaborativa do cultivo de arroz, em que o dique de um é também o dique de outro, em que a repicagem do arroz se faz de maneira coletiva.
O que vale no curso da nossa curta vida não são só os resultados, mas também os processos. Transformar a vida num inferno e depois mostrar que aumentou a produção nos deve levar a pensar, afinal, o que queremos? A vida é o próprio caminhar, e tornar o caminho menos espinhoso pode ser mais importante do que chegar mais rápido. As pessoas estão redescobrindo os bens comuns, como conhecimento, meio ambiente, infraestruturas que geram mais conforto e articulação entre as diversas atividades. Com a urbanização mundial, inúmeras cidades estão assumindo as rédeas de um desenvolvimento mais equilibrado, organizando a colaboração dos diversos atores sociais e econômicos. Com a evolução para a sociedade do conhecimento, redescobrem a evidência de que as ideias podem ser generalizadas sem custos adicionais, no quadro da sociedade de custo marginal zero tão bem descrita por Jeremy Rifkin. Com a conectividade planetária abrem-se espaços imensos de economia colaborativa.
Já é tempo de começarmos a nos civilizar. Um versinho de repentistas pernambucanos é cheio de sabedoria: “Para que tanta ganância e correria, se ninguém veio aqui para ficar?” Francamente, os super-homens de plantão, sejam políticos, empresariais ou eclesiásticos, me enchem o saco, eu quero a tranquilidade do cotidiano, a riqueza das trocas, as alegrias do convívio. E temos toda a ciência e riqueza necessárias para assegurar o bem-estar de todos sem tanta ideologia do sucesso individual. Realização, sem dúvida, mas não sobre as costas dos outros, e muito menos sobre os seus cadáveres, absurdo que por desgraça continua em tantas regiões do mundo. Quando as regras se tornam fluidas e as leis ajustáveis, impera o arbítrio dos mais fortes. Até quando aceitaremos a estupidez de armar mais pessoas para gerar mais segurança? De mandar tropas para as favelas em vez de enfrentar o absurdo da sua existência? Será demais exigir da inteligência que entenda que é mais produtivo agir sobre as causas do que sobre as consequências?

A lei como vetor de injustiça

A lei é fundamental. O conjunto das leis define as regras do jogo na sociedade. E a igualdade perante a lei é essencial, permitindo previsibilidade e segurança. Um problema central, naturalmente, é definir quem faz as leis. No mundo realmente existente, as leis são feitas por homens, não por acaso brancos e ricos. E são feitas, como se poderia esperar, no sentido de privilegiar homens, brancos e ricos. Houve um tempo em que era legal uma pessoa comprar ou vender pessoas como escravos. Lincoln, como presidente, conseguiu revogar esta lei recorrendo a uma série de ilegalidades, inclusive à corrupção: já se comentou que o maior avanço humanitário dos Estados Unidos foi conseguido por um homem profundamente ético que o conseguiu recorrendo aos procedimentos mais desonestos. No Brasil, a generalização do hábito de legislar em causa própria nos leva ao caos, ao se deslegitimar a própria lei e o próprio judiciário.
As nossas heranças recentes são significativas. Podemos dizer que a Constituição de 1988, pelo modo como foi elaborada, era legítima. Mas mesmo dentro desse marco jurídico, foi se desenhando um Frankenstein. Sigam o processo. Em 1988, nós aprovamos a Constituição, resgatando um mínimo de governabilidade. Em 1995, o governo aprova uma lei que define as modalidades do endividamento público: a partir de julho de 1996, os bancos podiam aplicar o nosso dinheiro em títulos públicos que rendiam 25%, já com inflação baixa. O normal no mundo é um rendimento entre 0,5% e 2% ao ano. A taxa Selic foi e continua sendo um imenso presente para os banqueiros. Apropriação privada legalizada de recursos públicos. Bem, a lei é igual para todos, os pobres, se têm dinheiro sobrando, também podem aplicar. As fortunas que o endividamento público representou para a nata da sociedade não seriam oneradas pelo imposto: no presente de natal aprovado em 26 de dezembro de 1995, os lucros e dividendos distribuídos passaram a ser isentos de imposto. Os funcionários do banco são descontados na folha, mas os milhões que entram nos bolsos dos banqueiros são isentos. Isso no Brasil, mais uma particularidade nossa.
Tem mais, em 1997, o governo aprovou uma lei autorizando as pessoas jurídicas a financiarem as campanhas eleitorais. A política passou a representar os ruralistas, os bancos, a grande mídia, cada grupo de grandes corporações passou a ter a sua bancada. Levou 18 anos para o STF, guardião da nossa Constituição, se dar conta de que o artigo 1º, que reza que todo poder emana do povo, não das corporações e pessoas jurídicas, mas de pessoas de verdade, tinha sido violado. O Congresso eleito desta maneira aceitou em 1999 a PEC que liquidava o artigo 192º da nossa Constituição, transformada em Emenda Constitucional em 2003. A limitação de juros (era de 12% ao ano mais inflação) desaparece. Liquidaram a regulação financeira.
Lula estava plenamente consciente das relações de força do país e leu, em junho 2002, a Carta aos Brasileiros, que mais poderia se chamar de carta aos banqueiros: não mexeria com os seus interesses. Aliás, com a liquidação do artigo 192º, teria inclusive pouca base legal para fazê-lo. Apesar da sangria dos juros, foi possível, como vimos, realizar milagres. Mas em 2012, com mais de 50 milhões de adultos enforcados na dívida, e o governo esterilizado pelo dreno da dívida pública, Dilma resolve baixar os juros. Não teve força política correspondente ao desafio. O resto sabemos: é o golpe, e a lei do teto de gastos que garante os juros para os banqueiros e os rentistas, mas onera a massa da população, iniciativas do aparato jurídico que têm como denominador comum o aumento dos privilégios.
Moral da história: falar em legalidade tornou-se um faz-de-conta. Em pequeno livro de 2015, Os estranhos caminhos do nosso dinheiro, descrevo como a grande corrupção gera a sua própria legalidade. Uma empresa dar dinheiro a um político para que se aprove uma lei que lhe favorece constitui corrupção. Mas entre 2007 e 2015, financiar a eleição do político que se deseja e, portanto, ter os seus votos assegurados durante quatro anos, era legal. Comprar políticos só seria ilegal no varejo.
Temos uma referência básica, a Constituição. E um guardião do seu cumprimento que é o Supremo Tribunal Federal. Ao se bandear com armas e bagagens para os golpistas e para os grupos mais corruptos da política, ao acobertar o golpe, o judiciário conseguiu sem dúvida favorecer uma guinada radical para a direita, e reduzir radicalmente os espaços democráticos no país. Alguém acredita hoje neste judiciário? O que conseguiram, foi uma desmoralização profunda, e a perda de confiança na justiça representa um imenso recuo para o país. Em pleno final de 2018, depois de tanto justificar a perda de direitos da massa da população com o pretexto do desequilíbrio das contas públicas, o STF obteve do Congresso agradecido um aumento dos já impressionantes salários. É o absurdo do judiciário desmoralizando a justiça. Os custos para o país serão imensos, e muito mais do que financeiros.
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Voltamos aqui ao problema básico, a nossa imensa dificuldade de nos governarmos com um mínimo de bom senso. As opções políticas seguem sendo definidas muito mais pelo fígado do que pela cabeça, pelo ódio do que pela solidariedade e compaixão. Em particular, a truculência de grupos ou classes sociais que por alguma razão se tornaram mais fortes, constitui uma permanência na história, com o exercício sistemático e recorrente de formas extremas de discriminação e de violência. Qualquer pretexto é suficiente, seja a cor da pele, o gênero, a opção sexual, a religião, a diferença de renda, e frequentemente até a idade. Por vezes o tamanho do cabelo, o porte de barba, ou um véu na cabeça bastam para alimentar a besta latente dentro de nós. E quando a bestialidade encontra a sua dimensão coletiva, sai de baixo.
Hoje os meios de comunicação permitem que o nosso consciente seja invadido pelas narrativas mais absurdas, mas sempre favoráveis aos grupos dominantes. A penetração na nossa intimidade é hoje individualizada através dos sistemas eletrônicos, e o controle do que vemos e entendemos permite a gestão por algoritmos de uma opinião pública que passa a ser uma construção em escala industrial. Os sistemas financeiros complexos permitem que sejamos expropriados do controle das atividades econômicas, gerando uma desigualdade aberrante em favor de rentistas improdutivos. Gigantes corporativos exercem um poder distribuído pelo planeta, por parte de grupos que ninguém elegeu, e que nenhum governo mundial limita. E estamos avançando rapidamente, em termos históricos de maneira extremamente acelerada, para o comprometimento da vida no planeta.
Visões estratégicas existem, e são razoavelmente óbvias: o resgate da dimensão pública do Estado, a taxação dos capitais improdutivos que nos governam, a reforma do nosso sistema tributário aberrante, a obrigação de transparência dos fluxos financeiros, uma renda básica de cidadania, a redução da jornada de trabalho à medida que avança a produtividade, o resgate do papel das cidades como unidades básicas de governança, a constituição de um mínimo de governança nos caos internacional que se constata. É viável? A questão não é ser ou não viável, mas sim, em primeiro lugar, entender a dimensão essencialmente política dos desafios, a centralidade da questão do poder. Em segundo lugar, entender que é uma questão de tempo, pois com a mudança climática, a destruição da biodiversidade, o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, a contaminação mundial da água e outros desafios que se avolumam, estamos apenas adiando as medidas, provavelmente até que uma catástrofe planetária gere a força política necessária.
A erosão do pouco de democracia que o Brasil tinha se dá como numa tragédia burlesca. Derrubamos as políticas que estavam dando certo, desfiguramos a Constituição que nos protegia dos absurdos, elegemos um charlatão cujo único compromisso é deixar a oligarquia livre para aprofundar os seus desmandos. Haverá um Brasil profundo, um bom senso latente na cabeça de milhões, permitindo retomar os avanços para uma sociedade decente? Paulo Freire declarou um dia que queria “uma sociedade menos malvada”. Os nossos desafios são imensos, e a nós que somos professores, ou comunicadores, ou organizadores sociais, ou simples cidadãos, cabe a tarefa de explicar o óbvio: uma sociedade que funcione tem de ser uma sociedade para todos. A burrice se enfrenta, de preferência, com inteligência.
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