terça-feira, 22 de setembro de 2015

Bob Fernandes: Gilmar Mendes, de grandes pré-julgamentos - e grandes silêncios - se porta como "Deus"




Segue, para reflexão, vídeo e sua transcrição textual do comentarista político Bob Fernandes, da TV Gazeta, sobre a arrogância, desmandos e história nada limpa de Gilmar Mendes:





Quinze anos de prisão para Vaccari, ex-tesoureiro do PT. Já são 41 os condenados pelo Lavar a Jato.
Quanto a esse escândalo, a justiça funciona. Há escassez em relação a outros atores.
E há notórios excessos; Gilmar Mendes, ministro do Supremo, segue pré-julgando.
Acusa inclusive a OAB de "conspirar" em favor do PT. Como resposta levou bordoada da Ordem dos Advogados do Brasil nos seguintes termos:
-"Comportamento incompatível" com cargo... "intolerante"..."postura grosseira e arbitrária"... "ato grotesco"... "magistrado que não se fez digno do ofício...".
É conhecida a excelente formação jurídica do ministro. Assim como sua compulsão para antes de julgamentos, e publicamente, condenar adversários.
Gilmar condenou antes do julgamento do "mensalão"; o do PT: "quadrilha", "gansgters", "bandidos".
Agora pré-julga a "cleptocracia", trata a OAB como "aparelho de partido" e ataca quem ouse discordar dos seus pré-julgamentos.
Mas perceba-se: às vezes a crítica de Gilmar Mendes é branda, ou desconhecida, quando não inexistente.
Gilmar foi subsecretario geral da Presidência e Consultor Jurídico no governo...Collor.
A investigação da Era Collor/PC levou mais de 400 empresas e 100 grandes empresários a serem indiciados pela Polícia Federal, num inquérito-mãe de 100 mil páginas.
Monumental a roubalheira. Além de PC Frias, detido por sonegação, nem um único condenado e preso.
O que diz o ministro Gilmar sobre aquele governo?... "Difícil comparar...tempos diferentes... hoje é mais grave".
Hoje, ao contrário de então, ao menos um dos bandos está condenado e preso.
Gilmar Mendes foi Subchefe na Casa Civil e Advogado Geral da União no governo Fernando Henrique...
Tempos da compra de votos para a emenda da reeleição....da Privatização da Telebras, de célebres diálogos nos grampos do BNDES:
-...vamos agir no limite da irresponsabilidade...consórcios borocoxôs...levanta e depois dá a rasteira...fazer os italianos na marra...usar a bomba atômica...
Negócio de R$ 22 bilhões, aquele. A "Bomba Atômica" era o presidente Fernando Henrique.... Sem CPI. E nem um preso.
Se conhece opinião de Gilmar Mendes sobre peripécias bilionárias daquele governo, hoje oposição?
Por 17 meses, até a semana passada, Gilmar segurou o julgamento das doações empresarias para campanhas eleitorais. Derrotado no Supremo disse: seu ato teve "a mão de Deus".
Alguém precisa informar a Gilmar Mendes: ministro do Supremo é poderosíssimo, mas não é O Ser Supremo. Não é Deus.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Consciência ambiental é ter consciência de todo o mal do capital

Neste dia da Árvore, uma reflexão ambiental:


O corajoso Papa que dá à crise o seu verdadeiro nome

Francisco afirma que o mundo vive uma terceira guerra mundial, e resume o que entende por paz: 'nenhuma família sem teto, nenhum ser humano sem pão'.



O Papa que dá à crise o seu nome


por: Saul Leblon  - Extraído da Carta Capital

Wikipedia
Uma das características que impressionam no Papa, pelo ineditismo em relação à norma dominante, é a sensação de que ele está sempre chegando.  
 
Francisco é o dado novo na mesa rasa, previsível, da policrise do nosso tempo, ao mesmo tempo uma crise do capitalismo e da civilização, cujo vórtice ambiental ameaça a própria sobrevivência da humanidade.
 
É disso que ele trata em sua primeira encíclica ‘Laudato si’. 
 
E o faz de forma desabrida, como nas suas primeiras declarações ao chegar em Cuba, neste sábado (leia a cobertura de Carta Maior nesta pág; direto de Havana). 
 
Poucos minutos depois de seu desembarque, como o terceiro papa a pisar em solo cubano, mas o primeiro a abraçar a luta pelo fim do embargo norte-americano, disparou: ‘O mundo vive uma terceira guerra mundial por etapas. Precisamos de conciliação’.
 
A conciliação que ele tem pleiteado é aquela baseada na maior igualdade, na menor obsessão consumista, no fim do fetiche do dinheiro, no resgate dos excluídos, na repartição da riqueza, na reconciliação entre as formas de viver e de produzir e a natureza.
 
O nome da crise é capitalismo turbinado, diz o idioma religioso de Francisco.
 
Em outubro de 2014, ele promoveu um Encontro Mundial de Movimentos Populares nas dependências do Vaticano.
 
O desassombro não ficou na forma. 
 
Ao falar aos participantes, entre eles o líder do MST, João Pedro Stédile, que saiu convencido de que o Papa estava à esquerda dos presentes, resumiu o que entende por conciliação e reconciliação: ‘Nenhuma família sem teto; nenhum agricultor sem terra; nenhum ser humano sem pão’. 
 
Mas foi além.
 
Como se fora uma espécie de Polanyi de batina, criticou o comércio dos recursos essenciais: o solo e a água, por exemplo,
 
O filósofo e economista húngaro Karl Polanyi (1886/1964) autor de ‘A grande transformação’, advertiu pioneiramente para esse risco.
 
Elementos essenciais ao equilíbrio da vida e à construção do bem comum, como o trabalho, a terra --e também o dinheiro, disse Polanyi, filho de húngaros, nascido em Viena, não deveriam ser submetidos a um liberalismo subordinado à cobiça do interesse privado. 
 
As evidências do nosso tempo mostram que ele tinha razão.
 
Nesse mundo onde tudo o que é rentável deve ser desregulado, para a livre mastigação dos mercados, os recursos que formam as bases da vida na terra, e o ‘recurso’ humano, encontram-se ameaçados pela inconciliável relação entre o capitalismo, a temperança e o equilíbrio ambiental. 
 
Há dois anos e meio do seu Papado, iniciado em março de 2013, Francisco parece que acabou de entrar na sala.
 
É a visita que a qualquer momento pode trazer novidades.
 
Não é truque, nem miragem.
 
Ao contrário daquilo que se ouve da maioria dos líderes convencionais, seu discurso escapa à circularidade dos interesses e reiterações paralisantes.
 
A renovação que expressa ganha interesse ecumênico, para além das fronteiras dos vaticanistas, na medida em que envolveu uma superação dos limites e ambiguidades do próprio Cardeal Jorge Mario Bergoglio. 
 
Longe de ser retórica, reflete a circunstância histórica de quem soube captar toda a extensão da suas responsabilidades e a emergência dos dias que correm. 
 
Um ciclo está se fechando na sociedade capitalista como a conhecemos no século XXI.
 
A supremacia insaciável da lógica financeira perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
 
O dinheiro celibatário, que se reproduz à margem da produção e do bem comum, coroou esse esgotamento em uma crise capitalista de superprodução de capital fictício.
 
O impasse coloca uma disjuntiva extremada: ou uma desvalorização épica da riqueza financeira predadora, ou a imposição, ao seu redor, de uma desigualdade exacerbada, vendida como  o novo normal da humanidade.
 
Diante do dilúvio, Bento VI,  seu antecessor, resignou-se ao encolhimento da fronteira cristã, atrás de um muro alto de expurgo e purificação doutrinária.
 
Renunciou.
 
Francisco entendeu a dimensão terminal da encruzilhada entre a entropia da finança desregulada e a ‘salvação’ que não prescinde do chão firme na terra.
 
Foi à luta. Que é ao mesmo tempo, por igualdade e libertação do garrote ideológico.
 
Por isso dá às coisas protegidas pela dissimulação midiática e plutocrática o seu nome.
 
O problema não é apenas que instituições internacionais,  partidos e lideranças passaram a incorporar políticas inadequadas, como a desregulamentação  indiscriminada e a abertura das contas de capitais a qualquer custo em vidas humanas e dilapidação ambiental.
 
O problema principal é a falta de capacidade política par refletir sobre o colapso correspondente fora da ‘caixinha’, isto é, fora do consenso conservador ancorado em arrocho e desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.
 
Em 2011, em plena curva ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e inglês) analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados pelo FMI nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial. 
 
Praticamente todos afiançavam as boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para espatifar a ordem neoliberal.
 
Pior: 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão. 
 
Dados de então mostravam que 60% dos cargos de chefia no FMI eram ocupados por profissionais de países anglo-saxões. Nada menos que 63% dos economistas haviam obtido seu doutorado em universidades americanas.  
 
Não por acaso, representantes das economias em desenvolvimento consideravam que esses trabalhos e seus autores apenas reiteram um conjunto prevalecente de ideias e receitas, sem espaço para visões alternativas. 
 
A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise é parte constitutiva da encruzilhada atual.
 
Por isso Francisco estremece o chão como um touro selvagem quando dá às coisas o seu nome. Por isso também políticos e governantes lhanos afundam na areia movediça quando recitam a bula do veneno para tratar dos seus efeitos.
 
O que chamamos de crise, hoje, é a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda mundial, e sobretudo da social-democracia europeia, pelo cânone neoliberal.
 
Como isso se transforma no interdito político que faz do pensamento livre do Papa Francisco uma usina  transgressora carregada de frescor?
 
O economista Robert Kuttner explica assim a asfixia do esclarecimento e da razão diante de uma crise que empurra a humanidade para o impasse: ‘É uma questão do poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos". 
 
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização dessa bases, redundou no paradoxo de uma crise sistêmica do capitalismo que não gera forças de ruptura capaz de supera-la.
 
O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.
 
Ou não é essa transferência leonina que se assiste hoje no Brasil, mas também na Grécia, Espanha, Itália, Portugal, França etc etc
 
O déficit de democracia emerge, assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em contraposição à hegemonia capilar, estrutural, midiática e institucional acumulada pelo capital financeiro.
 
É nesse ambiente de ar quase irrespirável que ganha singularidade faiscante a figura de um Papa que não desvia o olhar diante do que vê e manifesta a sua repulsa diante do espetáculo.
 
Apenas um governo parece ter assumido coerência equivalente.
 
Ao devolver ao poder plebiscitário da sociedade a decisão quanto ao passo seguinte da crise que levara a Islândia à bancarrota, em 2009, seu presidente, Ólafur Grímsson, declarou, à moda Francisco: ‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’. 
 
Ser uma democracia, não um anexo do sistema financeiro é o que pode ainda devolver aos cidadãos a responsabilidade compartilhada pelas escolhas do seu destino e o comando do desenvolvimento em nosso tempo. 
 
A blindagem ideológica do neoliberalismo –e o evidente esgotamento do seu arranjo-- ainda não foram suficientes para  alterar a condução da crise justamente pela tímida delegação das decisões ao povo e a falta de uma contrapartida de coordenação internacional desse enfrentamento. 
 
O que se assiste por enquanto é a degradante marcha em sentido contrário. 
 
O fatalismo construído ao longo de décadas de recuos, e o correspondente desarmamento organizativo que se seguiu, explicam a sobrevida de uma  hegemonia cuja base objetiva esfarelou.
 
O esgotamento da margem de manobra na economia não dispõe de um contrapeso à altura no ambiente político.
 
O desenlace permanece em aberto em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda o protagonista capaz de virar a página do calendário.
 
O Brasil faz parte desse salto parado no ar.
 
E é pelo menos arriscado apostar que o terceiro turno em curso, marcado pelo passo de ganso golpista, cederá a uma negociação branda entre concessão e indulgência.
 
A busca do impossível – arrochar para crescer, a contração expansionista—  faz água em todas as latitudes.
 
Oximoros -- contradições em seus próprios termos--  refletem o esgotamento de uma agenda, que só tem a oferecer a estabilidade inspirada na paz dos cemitérios.
 
Nesse novo  normal –para sempre ou por um prazo sem fim--  nada se move, exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento  do capital fictício e a incerteza diuturna sobre tudo em todos os lugares.
 
Mais que isso.
 
Um conjunto bíblico de sobras  humanas passa a ser expelido pelo sistema cujo êxito gera a própria danação. 
 
Trata-se de uma entropia estrutural à engrenagem capitalista, cada vez mais clara na crise iniciada em 2008.
 
A eficiência acumulativa deprecia o valor adicionado ao promover o descarte do componente humano que impulsiona a riqueza e gera a sua própria obsolescência, ao mesmo tempo e com igual intensidade.
 
Sobra o ponto de fuga do capital fictício que se empanturra de bolhas à margem da produção e às expensas das dívidas públicas e dos direitos sociais, decepados para deslocar recursos ao rentismo.
 
Não há escolha fácil nesse ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
 
Mas a história não é fatalidade.
 
O que importa perguntar aqui é o que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade do seu cardinalato na Argentina?
 
Certamente seria uma figura de baixo relevo na desordem mundial; um pequeno conservador na cena de um mundo extremado, que busca de uma nova identidade para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
 
Seriam, enfim, tudo o que o cristão que agora reza missa em Cuba de olho no fim do embargo americano, decidiu não ser e não é.
 
A mutação processada na travessia de Bergoglio para Francisco oferece uma lição da inexcedível pertinência à encruzilhada brasileira nos dias que correm.
 
Só a determinação política de superar as amarras das circunstâncias pode alterar a circularidade de um processo em que a rendição da vítima é o lubrificante dopoder opressor.
 
O espaço estreito e perigoso das escolhas na história é a variável autônoma que restou nesse redil paralisante.
 
Parece pouco? 
 
Francisco, o Papa que parece que acabou de chegar, mostra o quanto existe de potência nessa condição.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Maria Lúcia Fattorelli: "A dívida pública é um mega esquema de corrupção generalizado" que só beneficia o mercado financeiro e a Casa Grande


  Para ex-auditora da Receita, convidada pelo Syriza para analisar a dívida grega, sistema atual provoca desvio de recursos públicos para o mercado financeiro.

Veja o vídeo e leia a entrevista com Maria Lucia Fattorelli:




Entrevista - Maria Lucia Fattorelli

“A dívida pública é um mega esquema de corrupção institucionalizado”


por Renan Truffi — publicado 09/06/2015 publicado pela Carta Capital


Nilson Bastian / Câmara dos Deputados
Dois meses antes de o governo Dilma Rousseff anunciar oficialmente o corte de 70 bilhões de reais do Orçamento por conta do ajuste fiscal, uma brasileira foi convidada pelo Syriza, partido grego de esquerda que venceu as últimas eleições,para compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega com outros 30 especialistas internacionais. A brasileira em questão é Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil. Mas o que o ajuste tem a ver com a recuperação da economia na Grécia? Tudo, diz Fattorelli. “A dívida pública é a espinha dorsal”.
Enquanto o Brasil caminha em direção à austeridade, a estudiosa participa da comissão que vai investigar os acordos, esquemas e fraudes na dívida pública que levaram a Grécia, segundo o Syriza, à crise econômica e social. “Existe um ‘sistema da dívida’. É a utilização desse instrumento [dívida pública] como veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro”, complementa Fattorelli.
Esta não é a primeira vez que a auditora é acionada para esse tipo de missão. Em 2007, Fattorelli foi convidada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para ajudar na identificação e comprovação de diversas ilegalidades na dívida do país. O trabalho reduziu em 70% o estoque da dívida pública equatoriana.
Em entrevista a CartaCapital, direto da Grécia, Fattorelli falou sobre como o “esquema”, controlado por bancos e grandes empresas, também se repete no pagamento dos juros da dívida brasileira, atualmente em 334,6 bilhões de reais, e provoca a necessidade do tal ajuste.
Leia a entrevista:

CartaCapital:
 O que é a dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli: A dívida pública, de forma técnica, como aprendemos nos livros de Economia, é uma forma de complementar o financiamento do Estado. Em princípio, não há nada errado no fato de um país, de um estado ou de um município se endividar, porque o que está acima de tudo é o atendimento do interesse público. Se o Estado não arrecada o suficiente, em princípio, ele poderia se endividar para o ingresso de recursos para financiar todo o conjunto de obrigações que o Estado tem. Teoricamente, a dívida é isso. É para complementar os recursos necessários para o Estado cumprir com as suas obrigações. Isso em principio.
CC: E onde começa o problema?

MLF: O problema começa quando nós começamos a auditar a dívida e não encontramos contrapartida real. Que dívida é essa que não para de crescer e que leva quase a metade do Orçamento? Qual é a contrapartida dessa dívida? Onde é aplicado esse dinheiro? E esse é o problema. Depois de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.
CC: E quem, normalmente, são os beneficiados por esse esquema? Em 2014, por exemplo, os juros da dívida subiram de 251,1 bilhões de reais para 334,6 bilhões de reais no Brasil. Para onde está indo esse dinheiro de fato?MLF: Nós sabemos quem compra esses títulos da dívida porque essa compra direta é feita por meio dos leilões. O processo é o seguinte: o Tesouro Nacional lança os títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Como o Banco Central vende? Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12 instituições credenciadas. São os chamados dealers. A lista dos dealers nós temos. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes, essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú, HSBC...é por isso que a gente fala que, hoje em dia, falar em dívida externa e interna não faz nem mais sentido. Os bancos estrangeiros estão aí comprando diretamente da boca do caixa. Nós sabemos quem compra e, muito provavelmente, eles são os credores porque não tem nenhuma aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida brasileira. É a aplicação mais rentável do mundo. E só eles compram diretamente. Então, muito provavelmente, eles são os credores.
CC: Por quê provavelmente?
MLF: Por que nem mesmo na CPI da Dívida Pública, entre 2009 e 2010, e olha que a CPI tem poder de intimação judicial, o Banco Central informou quem são os detentores da dívida brasileira. Eles chegaram a responder que não sabiam porque esses títulos são vendidos nos leilões. O que a gente sabe que é mentira. Porque, se eles não sabem quem são os detentores dos títulos, para quem eles estão pagando os juros? Claro que eles sabem. Se você tem uma dívida e não sabe quem é o credor, para quem você vai pagar? Em outro momento chegaram a falar que essa informação era sigilosa. Seria uma questão de sigilo bancário. O que é uma mentira também. A dívida é pública, a sociedade é que está pagando. O salário do servidor público não está na internet? Por que os detentores da dívida não estão? Nós temos que criar uma campanha nacional para saber quem é que está levando vantagem em cima do Brasil e provocando tudo isso.
CC: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal, em curso hoje no Brasil?
MLF: Todo mundo fala no corte, no ajuste, na austeridade e tal. Desde o Plano Real, o Brasil produz superávit primário todo ano. Tem ano que produz mais alto, tem ano que produz mais baixo. Mas todo ano tem superávit primário. O que quer dizer isso, superávit primário? Que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias. Gasto primários são todos os gastos, com exceção da dívida. É o que o Brasil gasta: saúde, educação...exceto juros. Tudo isso são gastos primários. Se você olhar a receita, o que alimenta o orçamento? Basicamente a receita de tributos. Então superávit primário significa que o que nós estamos arrecadando com tributos está acima do que estamos gastando, estão está sobrando uma parte.
CC: E esse dinheiro que sobra é para pagar os juros dívida pública?

MLF: Isso, e essa parte do superávit paga uma pequena parte dos juros porque, no Brasil, nós estamos emitindo nova dívida para pagar grande parte dos juros. Isso é escândalo, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe o que se chama de anatocismo. Quando você contrata dívida para pagar juros, o que você está fazendo? Você está transformando juros em uma nova divida sobre a qual vai incidir juros. É o tal de juros sobre juros. Isso cria uma bola de neve que gera uma despesa em uma escala exponencial, sem contrapartida, e o Estado não pode fazer isso. Quando nós investigamos qual é a contrapartida da dívida interna, percebemos que é uma dívida de juros sobre juros. A divida brasileira assumiu um ciclo automático. Ela tem vida própria e se retroalimenta. Quando isso acontece, aquele juros vai virar capital.  E, sobre aquele capital, vai incidir novos juros. E os juros seguintes, de novo vão se transformados em capital. É, por isso, que quando você olha a curva da dívida pública, a reta resultante é exponencial. Está crescendo e está quase na vertical. O problema é que vai explodir a qualquer momento.
CC: Explodir por quê?
MLF: Por que o mercado – quando eu falo em mercado, estou me referindo aos dealers – está aceitando novos títulos da dívida como pagamento em vez de receber dinheiro moeda? Eles não querem receber dinheiro moeda, eles querem novos títulos, por dois motivos. Por um lado, o mercado sabe que o juros vão virar novo título e ele vai ter um volume cada vez maior de dívidas para receber. Segundo: dívida elevada tem justificado um continuo processo de privatização. Como tem sido esse processo? Entrega de patrimônio cada vez mais estratégico, cada vez mais lucrativo. Nós vimos há pouco tempo a privatização de aeroportos. Não é pouca coisa os aeroportos de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro estarem em mãos privadas. O que no fundo esse poder econômico mundial deseja é patrimônio e controle. A estratégia do sistema da dívida é a seguinte: você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai entregar patrimônio atrás de patrimônio. Assim nós já perdemos as telefônicas, as empresas de energia elétrica, as hidrelétricas, as siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder econômico mundial. E como é que eles [dealers] conseguem esse poder todo? Aí entra o financiamento privado de campanha. É só você entrar no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e dar uma olhada em quem financiou a campanha desses caras. Ou foi grande empresa ou foi banco. O nosso ataque em relação à dívida é porque a dívida é o ponto central, é a espinha dorsal do esquema.
CC: Como funcionaria a auditoria da dívida na prática? Como diferenciar o que é dívida legítima e o que não é?
MLF: A auditoria é para identificar o esquema de geração de dívida sem contrapartida. Por exemplo, só deveria ser paga aquela dívida que preenche o requisito da definição de dívida. O que é uma dívida? Se eu disser para você: ‘Me paga os 100 reais que você me deve’. Você vai falar: “Que dia você me entregou esses 100 reais?’ Só existe dívida se há uma entrega. Aconteceu isso aqui na Grécia. Mecanismos financeiros, coisas que não tinham nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap - espécie de seguro contra calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista 'financeirizado'. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro, utilizando um instrumento de endividamento público para desviar recursos e submeter o País ao poder financeiro, impedindo o desenvolvimento socioeconômico equilibrado. Junto com esses bancos estão as grandes corporações e eles não têm escrúpulos. Nós temos que dar um basta nessa situação. E esse basta virá da cidadania. Esse basta não virá da classe politica porque eles são financiados por esse setor. Da elite, muito menos porque eles estão usufruindo desse mecanismo. A solução só virá a partir de uma consciência generalizada da sociedade, da maioria. É a maioria, os 99%, que está pagando essa conta. O Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central] disse isso em depoimento na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida, em 2009, quando perguntado sobre a influência das decisões do Banco Central na vida do povo. Ele respondeu: “Olha, o Brasil foi desenhado para isso”. 
CC: Quanto aproximadamente da dívida pública está na mão dos bancos e de grandes empresas? O Tesouro Direto, que todos os brasileiros podem ter acesso, corresponde a que parcela do montante?

MLF: Essa história do Tesouro Direto é para criar a impressão que a dívida pública é um negócio correto, que qualquer um pode entrar lá e comprar. E, realmente, se eu ou você comprarmos é uma parte legítima. Agora, se a gente entrar lá e comprar, não é direto. É só para criar essa ilusão. Tenta entrar lá para comprar um título que seja. Você vai chegar numa tela em que vai ter que escolher uma instituição financeira. E essa instituição financeira vai te cobrar uma comissão que não é barata. Ela não vai te pagar o juros todo do título, ela vai ficar com um pedaço. O banco, o dealer, que compra o título da dívida é quem estabelece os juros. Ele estabelece os juros que ele quer porque o governo lança o título e faz uma proposta de juros. Se, na hora do leilão, o dealer não está contente com aquele patamar de juros, ele não compra. Ele só compra quando o juros chega no patamar que ele quer. Invariavelmente, os títulos vêm sendo vendidos muito acima da Selic [taxa básica de juros]. Em 2012, quando a Selic deu uma abaixada e chegou a 7,25%, nós estávamos acompanhando e os títulos estavam sendo vendidos a mais de 10% de juros. E eles sempre compram com deságio. Se o título vale 1000 reais, ele compra por 960 reais ou 970 reais, depende da pressão que ele quer impor no governo aquele dia. Olha a diferença. Se você compra no Tesouro Direto, você não vai ter desconto. Pelo contrário, você vai ter que pagar uma comissão. E você também não vai mandar nos juros. É uma operação totalmente distinta da operação direta de verdade que acontece lá no leilão.
CC: Por que é tão difícil colocar a auditoria em prática? Como o mercado financeiro costuma reagir a uma auditoria?
MLF: O mercado late muito, mas na hora ele é covarde. Lá no Equador, quando estávamos na reta final e vários relatórios preliminares já tinham sido divulgados, eles sabiam que tínhamos descoberto o mecanismo de geração de dívida, várias fraudes. Eles fizeram uma proposta para o governo de renegociação. Só que o Rafael Correa [atual presidente do Equador] não queria negociar. Ele queria recomprar e botar um ponto final. Porque quando você negocia, você dá uma vida nova para a dívida. Você dá uma repaginada na dívida. Ele não queria isso. Ele queria que o governo dele fosse um governo que marcasse a história do Equador. Ele sabia que, se aceitasse, ficaria subjugado à dívida. Ele foi até o fim, fez uma proposta e o que os bancos fizeram? 95% dos detentores dos títulos entregaram. Aceitaram a oferta de recompra de no máximo 30% e o Equador eliminou 70% de sua dívida externa em títulos. No Brasil, durante os dez meses da CPI da Dívida, a Selic não subiu. Foi incrível esse movimento. Nós estamos diante de um monstro mundial que controla o poder financeiro e o poder político com esquemas fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um mega esquema de corrupção institucionalizado.
CC: O mercado financeiro e parte da imprensa costumam classificar a auditoria da dívida de calote. Por que a auditoria da dívida não é calote?
MLF: A auditoria vai investigar e não tem poder de decisão do que vai ser feito. A auditoria só vai mostrar. No Equador, a auditoria só investigou e mostrou as fraudes, mecanismos que não eram dívidas, renúncias à prescrição de dívidas. O que é isso? É um ato nulo. Dívidas que já estavam prescritas. Uma dívida prescrita é morta. E isso aconteceu no Brasil também na época do Plano Brady, que transformou dívidas vencidas em títulos da dívida externa. Depois, esses títulos da dívida externa foram usados para comprar nossas empresas que foram privatizadas na década de 1990: Vale, Usiminas...tudo comprado com título da dívida em grande parte. Você está vendo como recicla? Aqui, na Grécia, o país está sendo pressionado para pagar uma dívida ilegítima. E qual foi a renegociação feita pelo [Geórgios] Papandréu [ex-primeiro-ministro da Grécia]? Ele conseguiu um adiamento em troca de um processo de privatização de 50 bilhões de euros. Esse é o esquema. Deixar de pagar esse tipo de dívida é calote? A gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é nula, que é fraude. No dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial.
CC: Em comparação com o ajuste fiscal, que vai cortar 70 bilhões de reais de gastos, tem alguma estimativa de quanto a auditoria da dívida pública poderia economizar de despesas para o Brasil?

MLF: Essa estimativa é difícil de ser feita antes da auditoria, porém, pelo que já investigamos em termos de origem da dívida brasileira e desse impacto de juros sobre juros, você chega a estimativas assustadoras. Essa questão de juros sobre juros eu abordei no meu último livro. Nos últimos anos, metade do crescimento da divida é nulo. Eu só tive condição de fazer o cálculo de maneira aritmética. Ficou faltando fazer os cálculos de 1995 a 2005 porque o Banco Central não nos deu os dados. E mesmo assim, você chega a 50% de nulidade da dívida, metade dela. Consequentemente para os juros seria o mesmo [montante]. Essa foi a grande jogada do mercado financeiro no Plano Real porque eles conseguiram gerar uma dívida maluca. No início do Plano Real os juros brasileiros chegaram a mais de 40% ao ano. Imagina uma divida com juros de 40% ao ano? Você faz ela crescer quase 50% de um ano para o outro. E temos que considerar que esses juros são mensais. O juro mensal, no mês seguinte, o capital já corrige sobre o capital corrigido no mês anterior. Você inicia um processo exponencial que não tem limite, como aconteceu na explosão da dívida a partir do Plano Real. Quando o Plano Real começou, nossa dívida estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela está em mais de três trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros.
CC: E isso é algo que seria considerado ilegal na auditoria da dívida pública?
MLF: É mais do que ilegal, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe juros sobre juros para o setor público. Tem uma súmula do Supremo Tribunal Federal, súmula 121, que diz que ainda que tenha se estabelecido em contrato, não pode. É inconstitucional. Tudo isso é porque tem muita gente envolvida, favorecida e mal informada. Esses tabus, essa questão do calote, muita gente fala isso. Eles tentam desqualificar. Falamos em auditoria e eles falam em calote. Mas estou falando em investigar. Se você não tem o que temer, vamos abrir os livros. Vamos mostrar tudo. Se a dívida é tão honrada, vamos olhar a origem dessa dívida, a contrapartida dela.
CC: Ao longo da entrevista, a senhora citou diversos momentos da história recente do Brasil, o que mostra que esse problema vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e passou pelas gestões Lula e Dilma. Mas como a questão da dívida se agravou nos últimos anos? A dívida externa dos anos 1990 se transformou nessa dívida interna de hoje?
MLF: Houve essa transformação várias vezes na nossa história. Esses movimentos foram feitos de acordo com o interesse do mercado. Tanto de interna para externa, como de externa para interna, de acordo com o valor do dólar. Esses movimentos são feitos pelo Banco Central do Brasil em favor do mercado financeiro, invariavelmente. Quando o dólar está baixo, e seria interessante o Brasil quitar a dívida externa, por precisar de menos reais, se faz o contrário. Ele contrai mais dívida em dólar. Esses movimentos são sempre feitos contra nós e a favor do mercado financeiro.
CC: E o pagamento da dívida externa, em 2005?
MLF: O que a gente critica no governo Lula é que, para pagar a dívida externa em 2005, na época de 15 bilhões de dólares, ele emitiu reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida com o FMI [Fundo Monetário Internacional] era 4% ao ano de juros. A dívida interna que foi emitida na época estava em média 19,13% de juros ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para uma de 19% ao ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao País. E a nossa dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada, correspondia a menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma dívida externa para o FMI que tinha juros baixo? Porque, no inconsciente coletivo, divida externa é com o FMI. Todo mundo acha que o FMI é o grande credor. Isso, realmente, gerou um ganho político para o Lula e uma tranquilidade para o mercado. Quantos debates a gente chama sobre a dívida e as pessoas falam: “Esse debate já não está resolvido? Já não pagamos a dívida toda?’. Não são poucas as pessoas que falam isso por conta dessa propaganda feita de que o Lula resolveu o problema da dívida. E o mercado ajuda a criar essas coisas. Eu falo o mercado porque, na época, eles também exigiram que a Argentina pagasse o FMI. E eles também pagaram de forma antecipada. Você vê as coisas aconteceram em vários lugares, de forma simultânea. Tudo bem armado, de fora para dentro, na mesma época.
CC: O que a experiência grega de auditoria da dívida poderia ensinar ao Brasil, na sua opinião?
MLF: São muitas lições. A primeira é a que ponto pode chegar esse plano de austeridade fiscal. Os casos aqui da Grécia são alarmantes. Em termos de desemprego, mais de 100 mil jovens formados deixaram o país nos últimos anos porque não têm emprego. Foram para o Canadá, Alemanha, vários outros países. A queda salarial, em média, é de 50%. E quem está trabalhando está feliz porque normalmente não tem emprego. Jornalista, por exemplo, não tem emprego. Tem até um jornalista que está colaborando com a nossa comissão e disse que só não está passando fome por conta da ajuda da família. A maioria dos empregos foram flexibilizados, as pessoas não têm direitos. Serviços de saúde fechados, escolas fechadas, não tem vacina em posto de saúde. Uma calamidade terrível. Trabalhadores virando mendigos de um dia para o outro. Tem ruas aqui em que todas as lojas estão fechadas. Todos esses pequenos comerciantes ou se tornaram dependentes da família ou foram para a rua ou, pior, se suicidaram. O número de suicídios aqui, reconhecidamente por esse problema econômico, passa de 5 mil. Tem vários casos de suicídio em praça pública para denunciar. Nesses dias em que estou aqui, houve uma homenagem em frente ao Parlamento para um homem que se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que estava entregando a vida para que esse plano de austeridade fosse denunciado.

Para ler em 2050 - texto de Boaventura de Sousa Santos


"A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para a publicitar. O insulto tornou-se o meio mais eficaz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio". - Boaventura de Sousa Santos

Boaventura: Para ler em 2050




“Por isso, aconteceu o que aconteceu. O quão terrível foi está inscrito no modo como tentamos curar as feridas da carne e do espirito ao mesmo tempo que reinventamos uma e outro”
Por Boaventura de Sousa Santos
Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução. Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra as agressões, os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências das suas decisões. Foi uma época de excessos vividos como carências; a velocidade foi sempre menor do que devia ser; a destruição foi sempre justificada pela urgência em construir. O ouro foi o fundamento de tudo, mas estava fundado numa nuvem. Todos foram empreendedores até prova em contrário, mas a prova em contrário foi proibida pelas provas a favor. Houve inadaptados, mas a inadaptação mal se distinguia da adaptação, tantos foram os campos de concentração da heterodoxia dispersos pela cidade, pelos bares, pelas discotecas, pela droga, pelo facebook.
A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para a publicitar. O insulto tornou-se o meio mais eficaz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio.
Desenvolveu-se o modo de as embalagens inventarem os seus próprios produtos e de não haver produtos para além delas. Por isso, as paisagens converteram-se em pacotes turísticos e as fontes e nascentes tomaram a forma de garrafa. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim, desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poder ser infinita. Também a Guernika passou a ser apenas um quadro de Picasso para não estorvar o futuro do eterno presente. Foi uma época que começou com uma catástrofe mas que em breve conseguiu transformar catástrofes em entretenimento. Quando uma catástrofe a sério sobreveio, parecia apenas uma nova série.
Todas as épocas vivem com tensões, mas esta época passou a funcionar em permanente desequilíbrio, quer ao nível coletivo, quer ao nível individual. As virtudes foram cultivadas como vícios e os vícios como virtudes. O enaltecimento das virtudes ou da qualidade moral de alguém deixou de residir em qualquer critério de mérito próprio para passar a ser o simples reflexo do aviltamento, da degradação ou da negação das qualidades ou virtudes de outrem. Acreditava-se que a escuridão iluminava a luz, e não o contrário.
Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários sub-poderes, religiosos, mediáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais. Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia-realmente-existente. Eram tão fortes que era difícil falar de qualquer deles sem incorrer na ira da censura, na diabolização da heterodoxia, na estigmatização da diferença. 
O capitalismo, que assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que assentava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceito como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadores antes de serem vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceito como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, homossexuais e transsexuais haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se nos seus limites.
Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivia em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as Constituições em nome delas.
O extremismo mais radical foi o imobilismo e a estagnação. A voracidade das imagens e dos sons criava turbilhões estáticos. Viveram obcecados pelo tempo e pela falta de tempo. Foi uma época que conheceu a esperança mas a certa altura achou-a muito exigente e cansativa. Preferiu, em geral, a resignação. Os inconformados com tal desistência tiveram de emigrar. Foram três os destinos que tomaram: iam para fora, onde a remuneração econômica da resignação era melhor e por isso se confundia com a esperança; iam para dentro, onde a esperança vivia nas ruas da indignação ou morria na violência doméstica, no crime comum, na raiva silenciada das casas, das salas de espera das urgências hospitalares, das prisões, e dos ansiolíticos e anti-depressivos; o terceiro grupo ficava entre dentro e fora, em espera, onde a esperança e a falta dela alternavam como as luzes nos semáforos. Pareceu estar tudo à beira da explosão, mas nunca explodiu porque foi explodindo, e quem sofria com a explosões ou estava morto, ou era pobre, subdesenvolvido, velho, atrasado, ignorante, preguiçoso, inútil, louco – em qualquer caso, descartável. Era a grande maioria, mas uma insidiosa ilusão de ótica tornava-a invisível. Foi tão grande o medo da esperança que a esperança acabou por ter medo de si própria e entregou os seus adeptos à confusão.
Com o tempo, o povo transformou-se no maior problema, pelo simples fato de haver gente a mais. A grande questão passou a ser o que fazer de tanta gente que em nada contribuía para o bem estar dos que o mereciam. A racionalidade foi tão levada a sério que se preparou meticulosamente uma solução final para os que menos produziam, por exemplo, os velhos. Para não violar os códigos ambientais, sempre que não foi possível eliminá-los, foram biodegradados. O êxito desta solução fez com que depois fosse aplicada a outras populações descartáveis, tais como os imigrantes, jovens das periferias, toxicodependentes, etc.
A simultaneidade dos deuses com os humanos foi uma das conquistas mais fáceis da época. Para tal bastou comercializá-los e vendê-los nos três mercados celestiais existentes, o do futuro para além da morte, o da caridade e o da guerra. Surgiram muitas religiões, cada uma delas parecida com os defeitos atribuídos às religiões rivais, mas todas coincidiam em serem o que mais diziam não ser: mercado de emoções. As religiões eram mercados e os mercados eram religiões.
É estranho que uma época que começou  como só tendo futuro (todas as catástrofes e atrocidades anteriores eram a prova da possibilidade de um novo futuro sem catástrofes nem atrocidades) tenha terminado como só tendo passado. Quando começou a ser excessivamente doloroso pensar o futuro, o único tempo disponível era tempo passado. Como nunca nenhum grande acontecimento histórico foi previsto, também esta época terminou de modo que colheu todos de surpresa. Apesar de ser geralmente aceito que o bem comum não podia deixar de assentar no luxuoso bem estar de poucos e no miserável mal-estar das grandes maiorias, havia quem não estivesse de acordo com tal normalidade e se rebelasse. 
Os inconformados dividiam-se em três estratégias: tentar melhorar o que havia, tentar romper com o que havia, tentar não depender do que havia. Visto hoje, a tanta distância, era obvio que as três estratégias deviam ser utilizadas articuladamente, ao modo da divisão de tarefas em qualquer trabalho complexo, uma espécie de divisão do trabalho do inconformismo e da rebeldia. Mas, na época, tal não foi possível, porque os rebeldes não viam que, sendo produto da sociedade contra a qual lutavam, teriam de começar por se rebelar contra si próprios, transformando-se eles próprios antes de quererem transformar a sociedade. A sua cegueira fazia-os dividir-se a respeito do que os deveria unir e unir-se a respeito do que os devia dividir. Por isso, aconteceu o que aconteceu. O quão terrível foi está bem inscrito no modo como vamos tentando curar as feridas da carne e do espirito ao mesmo tempo que reinventamos uma e outro.
Porque teimamos, depois de tudo? Porque estamos reaprendendo a alimentar-nos da erva daninha que a época passada mais radicalmente tentou erradicar, recorrendo para isso aos mais potentes e destrutivos herbicidas mentais – a utopia.

Em Outras Palavras: O que torna nossas metrópolis insustentáveis - o poder político e econômico das empreiteiras

Reportagem sobre uma praga brasileira. Empreiteiras financiam partidos, dirigem Orçamento das cidades e as moldam segundo seus próprios interesses

Que torna nossas metrópoles insustentáveis





Extraído do site Outras Palavras


Por Thales Schmidt e Vinicius Martins | Imagem: Chensiyuan

“A liberdade da cidade é muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações”. David Harvey no artigo “A Liberdade da Cidade” – publicado no livro Cidades Rebeldes – reflete que, além de usufruir de bens e serviços indispensáveis à vida, a população urbana deve ter o direito de decidir os rumos do desenvolvimento das cidades.

Desde 2001 algumas ações do governo federal têm apontado nessa direção: aplicação do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), criação do ministério das Cidades, obrigatoriedade da elaboração de Planos Diretores Participativos para municípios com mais de 20 mil habitantes – e a implantação do programa Minha Casa, Minha Vida.

O objetivo dessas iniciativas é definir a função social da cidade e da propriedade, além de buscar soluções para problemas crônicos causados pelo crescimento desordenado e excludente das áreas urbanas. Os principais atingidos desse quadro são as populações de baixa renda, afetadas, principalmente, pela falta de acesso aos equipamentos e serviços públicos essenciais como praças, escolas, hospitais, transporte e segurança.

Apesar da criação desses mecanismos de regulação, a direção do solo urbano ainda não pertence aos interesses da sociedade civil. O mercado imobiliário e as empreiteiras são os responsáveis por determinar a finalidade da cidade e por expor a crise prática da legislação de terras nos municípios.

A disputa pela cidade

“O que está comandando as cidades não é interesse público, não é interesse coletivo, não é justiça social, não é sustentabilidade. Tudo isso é discurso, todas as grandes cidades brasileiras têm ótimos planos diretores, a nossa legislação é muito avançada, conhecimento técnico nós temos, mas nós estamos perdendo na correlação de forças, estamos levando uma surra na disputa com aqueles que têm lucro com as cidades, com o crescimento das cidades”, analisa Ermínia Maricato, professora titular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e autora da proposta de criação do ministério das Cidades do Brasil.


Quase um quarto, 22%, ou 1,39 milhão dos 6,2 milhões habitantes do Rio de Janeiro moram em aglomerados subnormais, as chamadas favelas

O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra que 84% da população brasileira vivem em áreas urbanizadas. Estima-se que existam no país cerca de 6329 aglomerados subnormais – ou favelas -, de acordo com o último Censo do IBGE. O número engloba um total de 3.224.529 domicílios e 11.425.644 pessoas.

Segundo Juliano Costa Gonçalves, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Especulação imobiliária na formação de loteamentos urbanos: um estudo de caso, a prática acarreta em conflitos na organização espacial das cidades. “O processo de urbanização costuma ser bastante caro, como levar saneamento e energia a novos bairros, por exemplo. Quando essas áreas ficam presas no processo de especulação, aumenta-se a área urbana. Então, você obriga que algumas pessoas morem nas regiões mais periféricas da cidade, que muitas vezes não têm bons processos de urbanização nesses lotes”, ressalta Gonçalves.

O pesquisador lista outras consequências da especulação, como a falta de acesso à infraestrutura pública básica: iluminação, ruas asfaltadas, escolas e hospitais. No rol de problemas produzidos pelo mercado de terras estão os vazios urbanos e o alargamento do tecido urbano, a segregação sócio-espacial – provocada pela alta no preço dos aluguéis – e complicações na configuração do transporte público. Ou seja, os pobres não frequentam os mesmos parques, escolas e hospitais que os ricos.

Gislene Pereira, professora da Universidade Federal do Paraná, analisa que esse processo é cíclico dentro do sistema capitalista, portanto está presente em outros países do globo. “A cidade que temos é resultado da forma pela qual ela é produzida, ou seja, dentro das regras de produção de um sistema capitalista. Esse modelo de cidade, portanto, é o mesmo em todos os países capitalistas. E os problemas – segregação espacial, periferia, carência de infraestrutura, etc – estão presentes em todas as cidades capitalistas; não é, portanto, uma exclusividade do Brasil”, explica.

Para lidar com déficit de habitação no país, o governo federal criou em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Atualmente, o programa encontra-se em sua segunda fase e promete entregar mais 1,6 milhões de moradias até o fim do ano. No entanto, o projeto costuma receber críticas de especialistas em urbanismo. “O maior déficit habitacional no Brasil está na faixa de 0 a 3 salários mínimos, faixa que praticamente não é atendida pelo programa Minha Casa Minha Vida. Nessa situação, o deficit deve aumentar, como efetivamente está ocorrendo”, aponta Gislene Pereira.

Gislene complementa que: “o problema do deficit habitacional deveria ser enfrentado de modo articulado com a questão do uso da terra urbana. Não falta terra, o que falta, de fato, é terra urbanizada a preço acessível. Dessa forma, somente se pode pensar em atender às demandas por habitação se houver uma política de controle do uso do solo de forma a garantir a oferta de terra urbanizada a preços acessíveis para a população de menor renda”.



O aumento dos valores dos contratos de venda e aluguel em São Paulo costuma ser maior do que a inflação do mesmo período. Em 2010 – um ano após o lançamento do Minha Casa, Minha Vida – o valor do aluguel mais que dobrou em comparação com a inflação do período. Fonte: Índice Fipe Zap

Empreiteiros: os senhores da cidade
O Minha Casa, Minha Vida é um dos programas dos programas federais que vêm garantindo uma poderosa fonte de recursos para as empreiteiras nacionais – empresas responsáveis por empreendimentos vitais para a cidade como obras rodoviárias, túneis, pontes e até a construção dos edifícios e casas em que habitamos. Nesse setor, a unidade usada para calcular projetos, valores e lucros é a dos bilhões.
Boa parte do fluxo de dinheiro que alimenta o caixa dessas empresas vem do Estado brasileiro por obras dos governos federal e estaduais. Segundo levantamento da revista O Empreiteiro, referência do setor de engenharia, em 2013 a União foi responsável por investir R$ 12,416 bilhões em obras e serviços por meio de licitações públicas; todavia, o valor ainda é menor que o investido pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco no mesmo período: R$ 18,415 bilhões.
Os eventos esportivos sediados pelo Brasil – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro – têm garantido contratos gordos para o setor. De acordo com reportagem da Agência Pública, os dez maiores contratos dos dois eventos chegam a quase R$ 30 bilhões. Programas federais com grandes investimentos em obras de infraestrutura econômica e social, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – iniciado em 2007 e já na segunda edição – também fazem a festa das corporações.
O casamento entre poder público e empreiteiras, contudo, é de longa data. O historiador Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, analisou a formação das principais empreiteiras brasileiras durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) em sua tese de doutorado. “Os empreiteiros já eram importantes no país antes da ditadura, eles crescerem muito na década de 50, em especial nas obras de Juscelino Kubitischeck (1956-1961). Naquele período eles começam a se organizar em nível nacional, criaram organizações de empreiteiros e a partir dessas organizações passam a ter um papel político e uma atuação junto ao aparelho de Estado muito decisiva”.
Durante o regime ditatorial, a situação melhorou ainda mais para as empreiteiras nacionais. Por meio do decreto 64.345, o militar e então presidente Artur da Costa e Silva (1964-1966) determinou que obras de infraestrutura no Brasil só poderiam ser feitas por empresas nacionais. A medida ajudou o estabelecimento das empreiteiras brasileiras em áreas com forte concorrência internacional, como a construção de hidrelétricas, engenharia industrial, de petróleo e outras obras urbanas. A decisão fez com que as empreiteiras nacionais fossem as únicas beneficiadas pelos grandiosos projetos desenvolvimentistas dos militares. A restrição a empresas estrangeiras só foi revertida em 1991 pelo presidente Fernando Collor (1990-1992).
“Existia um cenário ideal para o desenvolvimento dessas empresas, tanto é que elas se desenvolveram de maneira bastante expressiva ao longo do regime. E no final da ditadura o que a gente tinha eram grandes conglomerados econômicos, aquelas empreiteiras que já eram grandes e importantes na ditadura no final eram multinacionais que atuavam em vários lugares do mundo”, aponta Pedro Campos.
Evolução da receita bruta das empreiteiras nacionais mostra consolidação da baiana Norberto Odebrecht como a principal empresa do setor, única a ultrapassar R$ 10 bilhões de receita bruta em 2013. Fonte: O Empreiteiro
As grandes empreiteiras nacionais são superlativas em todos os seus números. A maior delas, a construtora baiana Norberto Odebrecht, teve em 2013 uma receita bruta de R$ 10,149 bilhões e conta com mais de 125 mil funcionários. Segundo ranking das maiores empresas do setor realizado pela revista O Empreiteiro, 40% da receita no período se deve a contratos com o setor público.
Levantamento do Estadão Dados apontou que a mesma Odebrecht foi responsável por doar R$ 47,7 milhões para a campanha eleitoral de 2014. Outra gigante do setor, a Andrade Gutierrez doou R$ 93,6 para o mesmo pleito. Ainda assim, nenhuma doadora supera o grupo pecuarista JBS, com R$ 357,3 milhões aplicados. Na legislação atual, as empresas podem doar até 2% do faturamento bruto do ano anterior ao da eleição.
O fim das doações empresariais foi um dos pontos das mudanças políticas votadas pela Câmara dos Deputados. Embora a extinção das doações de empresas tenha sido aprovada em primeira votação, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) conseguiu reverter a decisão por meio de manobra regimental no dia seguinte; procedimento repetido durante a votação da redução maioridade penal. Os temas ainda serão votados novamente por Câmara e Senado.
“O grande problema urbano no Brasil hoje é o financiamento de campanha. Está tudo absolutamente comprometido com o financiamento de campanha. Nas nossas grandes cidades, e pequenas e médias também, grande parte da orientação do crescimento urbano é dada por interesses de proprietários de uma elite local, das grandes empreiteiras, do capital imobiliário e dos parlamentares e prefeitos de plantão. É assim que se dá a decisão, por exemplo, de ao invés de construir metrô, você construir viaduto, ponte, túnel, para transporte rodoviário e não transporte sobre trilho”, indica Erminia Maricato.
O historiador Campos também aponta o financiamento privado como um grande problema do sistema político atual: “Se uma empresa que presta serviços ao Estado pode (financiar campanhas), é obvio que isso vai dar problemas. Se uma empreiteira que faz obra pública para um governo pode financiar campanha, isso é realmente algo que vai gerar problemas, distorções e uma rede de propinas”. Para o historiador, as doações são uma espécie de “investimento” para conquistar “protagonismo e poder politico”.
Desde 2014, a Polícia Federal e Ministério Público Federal investigam uma rede de corrupção e distribuição de propinas na Petrobras, os investigadores acreditam que o esquema ocorra há pelo menos 10 anos. A chamada Operação Lava Jato apura o desvio de bilhões de reais de licitações e contratos da maior estatal brasileira, dinheiro usado para pagar altos funcionários corruptos e políticos. PT, PMDB, PP, PSDB e PSB abrigam 47 políticos alvos de investigação por participação no esquema. A lista de suspeitos inclui os presidentes da Câmara Federal e do Senado: Eduardo Cunha e Renan Calheiros – ambos do PMDB.
O processo se notabilizou por ir além das operações policiais mais costumeiras no Brasil ao prender não só agentes políticos e públicos corruptos, mas também os corruptores. Altos dirigentes de empreiteiras como OAS, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, UTC, Engevix, Iesa e Galvão Engenharia estão respondendo pelos desvios praticados. Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira nacional, e Otávio Marques de Azevedo, chefão da Andrade Gutierrez, estão em prisão preventiva.
Regulação urbana
Ainda que o Brasil tenha mecanismos de regulação do tecido urbano que são referências mundiais – como edificação compulsória, o IPTU progressivo, a Desapropriação para Fins de Reforma Urbana, o Direito de Preempção, a Outorga Onerosa e outras ferramentas – os interesses das empreiteiras costumam prevalecer na decisão da política urbana das cidades brasileiras. No meio do caminho da efetivação do direito à cidade estão a política e o jogo de correlação de forças que traça os rumos do desenvolvimento e emprego de verbas públicas.
A aplicação de tais instrumentos legais seria vital no atual contexto de forte especulação imobiliária das médias e grandes cidades brasileiras. Entretanto, há uma crise prática que impede o efeitos da legislação no espaço urbano. “O que você tem agora é uma politica que é regressiva do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, da justiça social e territorial, do direito à cidade. Atualmente, as nossas cidades, com raras exceções, estão em um caminho regressivo”, analisa Ermínia Maricato.
“O planejamento tem que atuar sobre a lógica de produção do solo urbano, o que significa utilizar os instrumentos legais existentes para interferir na lógica de produção urbana individual, priorizando a questão coletiva. O Brasil, apesar de avançado na legislação, ainda está engatinhando na aplicação desses instrumentos. Como referência, citaria as cidades de Bogotá e Medellin, na Colômbia, que têm obtido bons resultados nas políticas urbanas”, aponta Gislene Pereira.
As cidades de Bogotá e Medellin têm priorizado os cidadãos para guiar o desenvolvimento urbano. Em pouco mais de oito anos, os municípios investiram em mobilidade urbana planejada e sustentável, segurança cidadã com a remodelação das polícias e um novo ordenamento do espaço público. As melhorias colocam como foco as populações de baixa renda, dispondo para esses estratos sociais equipamentos públicos como escolas, bibliotecas, hospitais, praças e espaços de convivência, além de corredores para ônibus e ciclovias. Todas as obras fazem parte de uma política integrada de desenvolvimento urbano. Os resultados diminuíram os índices de violência urbana e colocaram as duas cidades entre as melhores indicadores de qualidade de vida da Colômbia.