"Se na “sociedade do espetáculo” (pegando carona na expressão de Guy Debord), o processo judicial também se torna um, sai o compromisso com a verdade e entra o afago ao “respeitável público” espectador, sem espaço para falibilidade ou falseabilidade das hipóteses iniciais. E a grande vítima é a verdade!" Prof. Bruno Galindo
Do site Justificando:
Sexta-feira, 19 de Janeiro de 2018
“Culpado por suspeita”: Popper, Macarthismo e Processos Espetáculo
Foto: Filme Culpado por Suspeita/Reprodução
“Culpado por suspeita” (Guilty for suspicion)
Tenho por hábito sempre quando posso utilizar o cinema como ferramenta pedagógica. Às vezes pensando em meus alunos, às vezes em mim mesmo, confesso. Nesses dias, passando pelos gêneros da Netflix, vi quase casualmente que estava disponível o filme “Culpado por suspeita” (Guilty for suspicion), estrelado pelo ótimo Robert De Niro nos anos 90 do século passado. Já havia visto o filme há muito tempo, mas por sua temática central – o macarthismo – em tempos de processos-espetáculo, achei que valeria a pena revê-lo, pois pouco lembrava dele. E valeu a pena por ter gerado as reflexões que se seguem.
Misturando ficção e realidade, o filme é centrado em David Merrill (Roberto De Niro), diretor de cinema nos anos 50 do século XX, que passa a integrar uma “lista negra” de supostos comunistas e simpatizantes em Hollywood e sofrer, juntamente com outros colegas de profissão, seguidas negativas de oportunidades profissionais por pairarem contra si a suspeição de “atividades antiamericanas”. No caso de Merrill, tinha participado antes da 2ª Guerra, de duas reuniões do Partido Comunista. Durante a trama, é perseguido em sua liberdade profissional, tem sua vida devassada por investigadores do FBI e as recomendações a ele feitas por um dos grandes advogados do ramo são de que confesse as ditas atividades e delate nomes do cinema ao Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso dos EUA, fazendo o que chamamos hoje de “delação premiada”. Outros têm destinos piores, como a prisão e até a pena de morte, caso do casal Rosenberg, mostrado na TV quando o filho de Merrill pergunta ao pai se ele teria o mesmo destino. David decide finalmente depor no Comitê contando toda a verdade sobre si, mas se recusa a dar os nomes tão insistentemente requeridos pelos integrantes do Comitê, tendo áspera discussão com os membros deste último, atingindo um clímax cinematográfico na sessão de depoimento.
Uma curiosidade que pude confirmar com algumas leituras: o fanatismo dos membros do Comitê mostrado no filme parece ter algo próprio à indústria do entretenimento norte-americana. O depoimento de David Merrill é realizado em sessão pública em um grande auditório, cercada de câmeras, jornalistas e acesso ao público acomodado em suas dependências. Os discursos inflamados dos ditos membros, gritando e intimidando o depoente, tentando forçá-lo a delatar pessoas, dá o tom da preocupação deles com o espetáculo para seu público, afagando este último com a ideia de que são americanos de bem e decentes limpando a América da “praga comunista”.
Situando o macarthismo: a histeria anticomunista e as narrativas não-falseáveis
Apesar de ser muito particularizado na vida de um fictício diretor de cinema perseguido pelo macarthismo, o filme dá uma mostra interessante de como a histeria coletiva leva a comportamentos espetaculosos por parte das instituições, mais preocupadas em dar satisfação a uma suposta “opinião pública” do que em buscar verdades. Nem o Estado democrático escapa de tentáculos totalitários que pervertem a justiça, substituindo a verdade pelo espetáculo social.
Nos EUA, o início da Guerra Fria gerou uma grande histeria anticomunista. Em 1947, foi reativado o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas no Congresso. A ação deste Comitê precisava de legitimação jurídica. Nada mais propício que um ex-juiz de direito do Estado de Wisconsin, recém-eleito pelo Partido Republicano para o Senado, se torne seu grande líder e rapidamente uma celebridade nacional. Seu nome: Joseph McCarthy.[i] De seu nome, vem o termo “macarthismo”.
Em 1950, McCarthy dá a largada para a “caça às bruxas”, apresentando em 9 de fevereiro daquele ano uma lista com 205 pessoas que seriam, segundo ele, militantes e/ou simpatizantes do Partido Comunista. Perseguindo inicialmente artistas e intelectuais, desencadeou posteriormente a esses e todos os que fossem suspeitos de “atividades antiamericanas”, perseguições profissionais e econômicas, delações incentivadas, prisões sem provas e até condenações à morte. Com as “listas negras” macarthistas, inverteu-se, na prática, o princípio constitucional da presunção de inocência e as sessões parlamentares e judiciais viraram palco de espetáculos farsescos e condenações pré-estabelecidas.[ii]
A título de exemplo, a “América Livre” promoveu um festival de delações premiadas, fomentando a criação de histórias mais ou menos verossímeis a partir de fragmentos e narrativas pré-estabelecidas supostamente provando culpas e conspirações.[iii]
Saindo da mera perseguição profissional e esgarçamento moral e financeiro dos que eram delatados ou se recusavam a colaborar, o macarthismo propiciou longas prisões cautelares, como a de Alger Hiss (quase 4 anos), um ex-integrante do Governo Franklin Delano Roosevelt, acusado de pertencer ao Partido Comunista e de ter se apropriado de documentos secretos do Departamento de Estado com finalidades subversivas, acusações cuja falsidade foi posteriormente atestada.
Mais dramaticamente, a histeria macarthista levou à condenação à morte do casal Rosenberg (Julius e Ethel), físicos nucleares acusados de terem passado o segredo da bomba atômica aos soviéticos. Foram delatados pelo irmão de Ethel, David Greenglass (mecânico no projeto “Los Alamos”), e sua esposa Ruth, sendo a dita denúncia base para a construção de uma narrativa culpabilizadora do casal Rosenberg pelo Judiciário dos EUA.[iv]
Na presidência do julgamento pelo júri, o juiz Irving Kaufman já antecipara disposição a aplicar a pena de morte em caso de decisão condenatória dos jurados. Adiantou, portanto, seu próprio juízo sobre o caso e certamente influenciou os jurados, já alimentado pela “opinião pública”. E a condenação ocorreu em 5 de abril de 1951. Embora comprovadamente comunista, o casal negou as acusações de espionagem até o final e as provas documentais foram extremamente frágeis quanto a essas últimas acusações. Ocorreu grande mobilização internacional contra a condenação, com pedidos de clemência feitos por várias celebridades internacionais, de Albert Einstein ao Papa Pio XII, pedidos inócuos ao final, já que terminaram condenados à pena capital e executados em 19 de junho de 1953, após 7 recursos improvidos pela Suprema Corte e pelo menos 16 pelas Cortes intermediárias.[v] Ainda hoje pairam controvérsias sobre se foram realmente espiões da União Soviética, diante das revelações por ex-agentes da KGB após a queda desta última de que Julius teria sido de fato um espião, sendo menos conclusiva e mais controversa a situação de Ethel.[vi]
Popper e os bloqueios da falseabilidade nas narrativas jurídicas de processos-espetáculo: do macarthismo para o mundo?
Voltando ao filme, chama-me a atenção a cena final do depoimento de David Merrill, quando a versão dos fatos já vem pré-estabelecida pelo Comitê, querendo seus membros basicamente a confirmação destas e eventuais detalhamentos, não havendo uma real e percuciente busca pela verdade. Isso me conduz à seguinte reflexão
Sem entrar no mérito do absurdo que é a própria perseguição ideológica do macarthismo aos comunistas e/ou simpatizantes, é verdade que, mesmo em um Estado democrático de direito, toda investigação traça inicialmente uma versão dos fatos que pode ou não se confirmar ao final. Não tive como não lembrar do filósofo austríaco, naturalizado britânico, Karl Popper (o qual estudei a fundo em meu doutorado) e suas teses sobre o falibilismo científico e a falseabilidade das hipóteses iniciais.
Popper estabelece seu método científico, chamado de hipotético-dedutivo, em 4 fases: 1) o problema; 2) a formulação de tentativas de teoria a respeito; 3) as tentativas de eliminação de hipóteses teóricas errôneas, através de discussões críticas e testes experimentais (o que podemos chamar de testes de falseabilidade das hipóteses); 4) os novos problemas e concepções construídas a partir da evolução científica, que aponta a um racionalismo crítico que, segundo ele, “é uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender da experiência. É fundamentalmente uma atitude de admitir que eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade”.[vii]
Uma investigação policial e um processo penal não deveria ser diferente disso. Embora investigadores, promotores e juízes possam trabalhar com hipóteses prévias, é necessário que estas estejam plenamente abertas aos testes popperianos de falseabilidade, que podem contrariar suas hipóteses iniciais. O compromisso desses com o seu “público” é a busca da verdade real e não a confirmação de narrativas pré-estabelecidas. A ausência de falseabilidade das teses investigatórias transforma o processo em um “jogo de cartas marcadas”, pois se as teses já são aquelas concebidas pret-a-porter, dispensa-se o trabalho de se investigar a fundo e o processo deixa de ser due process of law para se transformar em mera reprodução de ritos legitimadores de decisões inalteráveis pela marcha investigatória e processual.
Do macarthismo para o mundo? Eu responderia negativamente a essa pergunta. A negação da falseabilidade de tais narrativas político-jurídicas ocorre na maioria das vezes em regimes autoritários e totalitários, tendo sido o Volksgericht nazista alemão e os “processos de Moscou” na União Soviética stalinista célebres nesses bloqueios de falseabilidade das narrativas politicamente “adequadas”, inclusive com farta utilização de mecanismos como a delação premiada induzida a implicar os que os juízes e procuradores do regime queriam que fossem implicados, e do apelo à mídia e à “opinião pública” como artifício legitimador de decisões. Minha escolha pelo macarthismo norte-americano foi apenas a percepção que mesmo em democracias como os EUA (no caso, um Estado democrático quase bicentenário na ocasião) os tentáculos totalitários podem se sobressair e atacarem de modo voraz as bases constitucionais deste mesmo Estado democrático de direito, utilizando dos mesmos expedientes totalitários acima referidos.
Se na “sociedade do espetáculo” (pegando carona na expressão de Guy Debord[viii]), o processo judicial também se torna um, sai o compromisso com a verdade e entra o afago ao “respeitável público” espectador, sem espaço para falibilidade ou falseabilidade das hipóteses iniciais.
E a grande vítima é a verdade!
Bruno Galindo é Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco; Doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Conselheiro Estadual da OAB/PE.
[i] MONDAINI, Marco. Macartismo: intolerância e perseguição no anticomunismo norte-americano. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, pp. 195-196, 2004.
[ii] COLE, David. The new McCarthyism: repeating history in the war on terrorism. In: Harvard Civil Rights – Civil Liberties Law Review, vol. 38, n. 1. Cambridge/Massachussets: Harvard Law School, pp. 20-22, 2003.
[iii] No mundo do cinema, há casos, aliás, de atores e cineastas que se tornaram célebres como delatores a destruir a vida profissional de colegas, com destaque para John Wayne, Ronald Reagan (quando era ator e ainda não entrara para a política), Walt Disney, Robert Taylor, Gary Cooper e o diretor Elia Kazan, que se celebrizou pelo calculismo de suas delações e até pela glamourização da figura do delator, com o filme “Sindicato de ladrões” (On the waterfront), estrelado por Marlon Brando. Do outro lado, dentre os célebres delatados, estiveram Orson Welles, Charles Chaplin, Arthur Miller (dramaturgo), Dashiell Hammett (escritor), Paul Robeson (músico), Aaron Copland (compositor), James Reston (jornalista), Langston Hughes (poeta) e Lillian Helmann (dramaturga), dentre outros. As acusações chegavam às raias do inacreditável, como quando da delação de Robert Taylor envolvendo o elenco do filme “Canção da Rússia” (Song of Russia), de 1944, quando a comissão formada por Ayn Rand, Richard Nixon (futuro presidente dos EUA envolvido no escândalo Watergate) e Parnell Thomas, entendeu que mostrar russos sorrindo e cumprimentando as pessoas seria, segundo Rand, um “golpe padrão da propaganda comunista”. Cf. MONDAINI, Marco. Macartismo: intolerância e perseguição no anticomunismo norte-americano. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, pp. 196-197, 2004.
[iv] Como recompensa pela delação, David Greenglass passou longe do “corredor da morte”, sendo condenado a 15 anos de reclusão e obtendo liberdade condicional após 9 anos e meio; Ruth Greenglass, por sua vez, não sofreu qualquer ação penal. Cf.https://www.nytimes.com/2014/10/15/us/david-greenglass-spy-who-helped-seal-the-rosenbergs-doom-dies-at-92.html, acesso:15/01/2018.
[vi] http://www.nydailynews.com/news/crime/story-behind-execution-julius-ethel-rosenberg-article-1.2954520, acesso: 15/01/2018; http://www.foxnews.com/us/2016/12/21/legal-scholars-claim-new-evidence-shows-ethel-rosenberg-was-innocent-in-infamous-spy-case.html,acesso:15/01/2018.
[vii] POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos (tomo II). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, pp. 232; 238-239, 1987; tb. GALINDO, Bruno. Teoria intercultural da constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, pp. 135-137, 2006; POPPER, Karl. A vida é aprendizagem (epistemologia evolutiva e sociedade aberta). Lisboa: Edições 70, p. 30, 2001; POPPER, Karl. After the open society. London/New York: Routledge, pp. 329ss., 2012.
[viii] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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