"Um candidato social democrata se tornou a maior ameaça 'socialista' ao nada democrático sistema de governo dos EUA", diz o colunista
Do Brasil 247:
Explicar a trama da sexta temporada de Homeland é simples: uma presidente anti establishment e com propostas anti imperialistas vence de maneira improvável a eleição norte americana. A CIA, a mídia e outros setores militares e civis a enxergam como uma grande ameaça à segurança nacional e começam a conspirar para derrubá-la antes mesmo que ela assuma o seu cargo e comece uma espécie de revolução no modus operandi da geopolítica dos EUA. A partir daí a história se desenvolve por meio de conspirações que vão desde a encenação de um atentado terrorista falso executado pelos próprios generais do estado maior da nação até uma tentativa de assassinato contra a presidente feita com o consentimento de setores da CIA. Homeland, claro, é uma obra de ficção. Mas se tratando das fraudes, atrocidades, e mentiras - conhecidas e desconhecidas - que o establishment dos EUA já cometeram seja em nome da segurança nacional ou dos seus ditos “valores democráticos” seria muito paranóico enxergamos um cenário de sabotagem, mesmo que não tão radical quanto o da série (pelo menos por enquanto) a candidatura de Bernie Sanders por parte do establishment?
Evidentemente não houve nenhuma conspiração contra o possível candidato democrata à presidência - pelo menos não uma do tamanho e gravidade que a série apresenta. Mas alguns casos são no mínimo suspeitos começando por Iowa. Como se sabe, já a algum tempo que o caucus de Iowa dá início às prévias democratas. Para se ter uma ideia, dos últimos 8 candidatos democratas que venceram a corrida pela disputa presidencial 6 venceram em Iowa. Esse pequeno Estado localizado no centro-oeste estadunidense oferece de antemão as coordenadas que define, pelo menos na maioria das vezes, o vencedor das primárias democrata. E os números esse ano não deixavam dúvida: Bernie Sanders era o favorito em praticamente todas as pesquisas de intenção de voto que foram realizadas no local. Claro que reviravoltas sempre podem ocorrer, principalmente no que diz respeito a corrida democrata pela disputa presidencial. Mas a reviravolta que culminou com a derrota de Sanders desperta bastante curiosidade.
Em primeiro lugar, houve várias horas de atraso na divulgação parcial e final do resultado. O partido democrata afirmou que a demora aconteceu por conta de um problema com a precisão dos números e com certas inconsistências no resultado. O escândalo que essa confusão causou foi tão grande que levou Troy Price, líder do partido na região, a renunciar ao cargo. Pior ainda: houveram tantos erros e suspeitas que Tom Perez, presidente do Partido Democrata, chegou a pedir uma recontagem de votos. As suspeitas em torno do caos em Iowa não cessaram e provavelmente ainda irá render muita discussão nos próximos anos, mas o fato é que Sanders, apontado nas pesquisas como favorito a vencer acabou ficando em segundo numa contagem de votos suspeita, bastante polêmica e que rendeu uma renúncia, além, claro, de ter a credibilidade de seu resultado colocada em questão até mesmo pelo presidente do Partido.
Mesmo assim, Bernie Sanders despontava seu favoritismo como um forte candidato vencendo as primárias de New Hampshire e Nevada. A sua ascensão era explicada com um misto de inconformismo com a geopolítica imperialista do último século, assim como o desejo por um sistema político mais humano que se assemelharia a um modelo social-democrata. As pesquisas apontavam que cada vez mais a vitória de Sanders tomava corpo. Esse otimismo duraria pouco. Uma dúvida pairava no ar: o partido democrata (assim como os grandes empresas que financiaram o partido por tantas décadas) realmente ficaria de braços cruzados diante da ascensão de um candidato que tem como programa de governo tudo aquilo que vai de encontro aos interesses do grande empresariado e que sequer é filiado ao partido ser o seu representante nas eleições contra Donald Trump?
A resposta veio logo em seguida. Nas primárias da Carolina do Sul após uma enxurrada de propaganda tanto dentro do partido como nos veículos de mídia que teve como líder ninguém menos do que o ex presidente Barack Obama, Joe Biden, seu ex vice, venceu com uma margem confortável. Mesmo que a vitória de Sanders fosse improvável nesse estado, o recado havia sido dado. A ascensão de Bernie Sanders havia sido parada nas primárias da Carolina do Sul que são de extrema importância por anteceder a super terça, onde nada menos que 14 estados definem o maior número de delegados para a campanha de cada um.
A guerra estava declarada. Os democratas, a mídia tradicional e os republicanos se uniram para não permitir que Sanders pudesse obter um resultado favorável na super terça. O Washington Post, por exemplo, publicou uma notícia de que a candidatura de Bernie Sanders era apoiada por Vladimir Putin e que Moscou intervinha na eleição para que ele saísse vitorioso. Várias mensagem no whatsapp foram disparadas com tal notícia, as famosas fake news. E os ataques não pararam por aí. Na super terça que ocorreu essa semana na Carolina do Norte, por exemplo, vários eleitores afirmaram que votaram em Joe Biden por receberem a notícia que ele era favorável não só da ampliação universal do Medicare (programa de seguro de saúde do governo que atende pessoas de renda baixa acima de 65 anos que tenham contribuído pelo menos 10 anos para o seguro, ou pessoas com idade inferior portadoras de deficiência física) como de reformas que fizessem com que o programa se tornasse mais acessível. Uma notícia falsa escandalosa já que desde que sua campanha obteve o financiamento da indústria farmacêutica e do serviço de saúde ele mudou o seu discurso não só argumentando contra a ampliação do programa mas também clamando pelo seu fim.
Por outro lado, o presidente Donald Trump deixava claro nas suas redes sociais que preferia disputar a eleição contra Bernie Sanders do que contra qualquer outro adversário. Esses ataques eram a verdadeira demonstração do perigo de Bernie Sanders a extrema direita representada por Trump, afinal, se Sanders não representasse uma ameaça ao presidente por qual motivo ele faria esse tipo de campanha contra o candidato? Se ele realmente pensasse que Sanders não é um perigo por que o ataca frequentemente nas redes sociais com o intuito de desestabilizar a sua campanha em detrimento de Biden? Mais um ato que além de deixar escancarado que Sanders é o adversário mais temido por trump, também mostra que quando se trata de conter uma real mudança no modus operandi da política norte americana, os republicanos e democratas não sentem nenhum pudor em dar as mãos e se abraçarem.
Chegou a super terça e Joe Biden venceu em pelo menos em 9 estados dos 14 que estavam em disputa mesmo com Sanders vencendo com folga na Califórnia, estado com o maior número de delegados. O resultado coloca o ex vice de Barack Obama liderando na disputa contra Sanders. O resultado surpreende. Até poucos dias atrás ninguém apostaria que o candidato de centro vencesse em estados onde Sanders era claramente favorito. Mesmo que tenha liderado no estado com o maior número de delegados, o resultado de hoje pode ser considerado uma grande derrota na corrida presidencial para Sanders. Mas o que levou as primárias a tamanha reviravoltas?
Algumas coisas podem explicar isso. Um dos principais elementos foi a mídia comercial que Joe Biden angariou nos noticiários locais e nacionais antes das eleições. Segundo o consultor Kevin Cate, na Carolina do Norte, por exemplo, Joe Biden havia conseguido o apoio “informal” de mais de 70 milhões de dólares de mídia positiva apenas naquele estado. Nacionalmente ele conseguiu mais de 100 milhões de mídia positiva, ainda segundo o consultor. A propaganda, portanto, que ele “ganhou” antes da super terça por boa parte da mídia foi determinante para a sua vitória. Evidentemente que um candidato não ganha esse apoio avassalador da mídia por acaso. Adam Johnson, escritor e jornalista, afirma que Joe Biden carrega muito dos interesses financeiros das grandes instituições midiáticas norte americana.
Mas não é apenas isto. Existe um número com mais de 60 bilionários que financiam e apoiam a candidatura de Biden. Suas declarações em Nova York no ano passado deixou claro o tipo de política que ele tomaria em relação aos mais ricos do país e conseguiu grande apoio. Em primeiro lugar, o candidato afirmou que se eleito não aumentaria os impostos sobre as grandes fortunas, e pra piorar, ainda pediu aos eleitores ricos que ficassem tranquilos com a sua candidatura, pois para eles nada mudaria. Mas a cereja do bolo ainda estava por vir. Após tranquilizar os seus amigos ricos, Biden declarou que iria trabalhar com a oposição, desde o mais liberal até o conservador. O problema foi que ele citou a sua capacidade de trabalhar até com James O. Eastland, segregacionista branco e declaradamente racista.
Lee Fang, jornalista do The Intercept, também publicou uma matéria em outubro do ano passado mostrando quem eram os lobistas por trás do financiamento da campanha de Biden - todos proviam ou da indústria de armas (conhecida como a indústria da guerra), ou da indústria de serviços de saúde (empresas totalmente contrárias a um programa público de saúde gratuito) ou de organizações financeiras (estas dispensam qualquer comentário).
Com isto, os motivos da ascensão de Joe Biden e a demonização de Bernie Sanders começam a ficar mais evidentes. Um é o candidato que apoia os interesses da mídia tradicional, o outro não. Um é o candidato financiado pela indústria armamentista, de serviços de saúde e financeiras, o outro não. Um quer acabar com o medicare, o outro defende um serviço de saúde pública universal e de qualidade. Um diz que se pode trabalhar até com segregacionistas racistas brancos, o outro chama a política genocida do estado de Israel de racista. Um é financiado por bancos, o outro prega o fim do monopólio bancário. Um é Joe Biden, o outro Bernie Sanders. São por estes motivos que até a mais remota possibilidade de Bernie Sanders chegar a casa branca une Republicanos, Democratas e a mídia ao redor dos dois.
Bernie Sanders não é Lênin, não é Mao Tse-Tung, tampouco Fidel Castro (mesmo sendo acusado de castrismo por seus adversários pelo simples fato de ter elogiado o sistema de saúde cubano), mas é, sem sombra de dúvida, o maior perigo à ordem estabelecida pelo establishment norte americano. Suas propostas radicais incluem saúde para todos, o retorno das tropas que estão no estrangeiro nas guerras causadas pelo imperialismo, assim como o fim do financiamento privado das campanhas eleitorais. Embora ele se auto denomine um socialista, a política defendida pelo senador se aproxima muito mais da social democracia, ironicamente uma forma de estado que veio à tona justamente para evitar um avanço maior do socialismo. Mais de 60 anos depois e quem diria? Um candidato social democrata se tornou a maior ameaça “socialista” ao nada democrático sistema de governo dos EUA.
Matheus Vieira
Estudante de Filosofia na UFPB
Nenhum comentário:
Postar um comentário