sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Fascismo, ontem e hoje, por Ivan Colangelo Salomão

 

Como se vê, pela régua de Finchelstein, estamos à porta de um regime fascista à bolsonaresca. O espectro do fascismo ronda o país. Democratas brasileiros, uni-vos.

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Fascismo, ontem e hoje

por Ivan Colangelo Salomão

É mais do que legítimo submeter à prova empírica ou até mesmo lógica o já surrado aforismo consagrado pelo pensador prussiano em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Repetida ou não, a história não ensina a superar erros do passado, mas permite entender e assimilar a realidade atual para além do simples encadeamento cronológico de fatos. Trágica ou farsesca, a história não é linearmente determinada por balizas pré-estipuladas, mas pode alargar as possibilidades do uso de sua compreensão como mola da evolução civilizacional supostamente imanente à espécie humana.

Dos mais dramáticos capítulos da história da humanidade, o fascismo original, fenômeno multicausal, respondeu a uma conjugação de fatores específicos que tornaram possível a materialização de um movimento tão vil quanto cultuado por determinados setores sociais. Evento datado, representou os anseios de parte da sociedade europeia a partir do ocaso do neocolonialismo e dos escombros geopolíticos da I Guerra.

Um século depois, a emersão de governantes de inspiração patente e abertamente despótica justifica a plausibilidade de se debater o suposto ressurgimento de um novo fascismo contemporâneo. Se as condições históricas são naturalmente diferentes, a miríade de similaridades valida o exercício abstrato de cotejamento histórico.

Categoria inerentemente plástica, a conceituação de fascismo enseja controvérsias entre os diversos autores que se dedicaram ao tema. Ainda que por demais esquemática, a análise comparativa entre o “modelo ideal” e os inúmeros casos em voga no século XXI encontra nas diversas zonas de consenso um amparo metodológico robusto. Umberto Eco, Theodor Adorno, Hanna Arendt, para ficar apenas nos clássicos, apontaram intersecções relevantes. Enzo Traverso, Nadia Urbinati e Jason Stanley, estudiosos contemporâneos, também chegaram a conclusões contíguas que embasam o que aqui se argumenta.

Em termos simbólicos, vários foram os elementos que caracterizaram o fascismo original e que são igualmente observados nos movimentos hodiernos:

  1. O amparo absolutamente contraditório em discursos religiosos (Pio XI que o diga) a fim de liquidar, ex-ante, qualquer tipo de censura moral ao conteúdo de suas ideias e práticas. Nos termos de Fernando Haddad, “o fascismo se interessa pelo ‘corpo’, não pelo ‘espírito’ da religião, transformando a doutrina cristã em slogans de intolerância a tudo que o ameace.” (Haddad, 2020).
  2. A obsessão com o universo sexual, tendo na varonilidade o centro de sua obscenidade (ir)racionalmente exposta. A motocicleta, como instrumento fálico, sintetiza a fragilidade dessa masculinidade ameaçada por tudo que fuja do padrão heteronormativo. O líder fascista se permite verbalizar seus complexos, que são os mesmos de seus seguidores, mas que não se sentem seguros o suficiente para exprimi-los.
  3. A defesa de uma (falsa) moralidade pública, empunhada por um líder messiânico ungido por deus, o que contribui para granjear o apoio da classe média meritocrática. Altruísta e desapegado, o fascista compensa a ausência de atributos intelectuais por meio da honestidade dos abnegados.
  4. A simplicidade no trato e nos costumes, veiculada por gestos calculadamente ensaiados a fim de angariar a empatia da malta que o segue devotamente. Na precisa descrição de Adorno, Hitler se apresentava como um cidadão médio, uma “mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio”.
  5. O recurso a fantasmas racional e deliberadamente construídos, tais como ideologia de gênero, marxismo cultural e outros espantalhos fantasiosos. Como se sabe, há método na loucura, mas também há loucura no método.

Em termos concretos, a taxonomia criada pelo historiador argentino Federico Finchelstein responde pelo mais sucinto e preciso enquadramento de um regime fascista, cujos quatro eixos cardeais seriam:

  1. O emprego sistemático e planejado de mentiras – ou, mais precisamente, de técnicas infantilizadas de manipulação coletiva –, com amparo em criações fantásticas e delírios mágicos. Do racismo reverso à planície terrestre.
  2. O uso metódico da violência como instrumento político, fazendo com que o objetivo passe a ser a aniquilação do inimigo, não apenas a vitória sobre o adversário.
  3. O recurso a todo tipo de preconceito contra “minorias” – racismo, homofobia, misoginia, xenofobia, intolerância religiosa etc. Se na Itália se menoscabava a porção meridional do país, no Brasil sobram preconceitos, dos nordestinos aos negros.
  4. Por fim, o fechamento do regime por meio da imposição de uma ditadura política com apoio das Forças Armadas.

(Eu ainda incluiria um quinto elemento, na minha visão, fundamental para o êxito desse movimento: a chancela do grande capital.)

Como se vê, pela régua de Finchelstein, estamos à porta de um regime fascista à bolsonaresca. O espectro do fascismo ronda o país. Democratas brasileiros, uni-vos.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

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