segunda-feira, 27 de maio de 2024

A tragédia anunciada: a associação entre as mudanças climáticas provocadas pelo neoliberalismo e a sutil, mas eficaz, arte da desinformação. Texto de Carlos Antonio Fragoso Guimarães

 

  "(...) tal quadro caótico que poderia, em grande medida, ter sido evitado ou grandemente minimizado. Contudo, esta realidade seja frequentemente encoberta até mesmo pelo modo como se divulga a tragédia, realçando o drama mas escondendo o fato de que a mesma se associa à degradação ambiental, envolvendo o aquecimento global provocado pela insana poluição ambiental associada à destruição do meio ambiente, tudo em nome do lucro imediato e à exploração crescente de um planeta que possui recursos e meios de reequilibração limitados."


Diante da tragédia que se abateu sobre os nossos irmãos e amigos do Rio Grande do Sul, inevitavelmente a eles nos associamos pela empatia, a compaixão, e isso nos leva a agir através da solidariedade. Isso tudo é verdade e demonstra a expressão do que ainda existe de melhor em grande parte dos seres humanos. Contudo, mesmo diante da dor do visível concreto, não podemos deixar de tentar entender racionalmente os motivos e causas para tal quadro caótico que poderia, em grande medida, ter sido evitado ou grandemente minimizado. Infelizmente, esta realidade é frequentemente encoberta até mesmo pelo modo como se divulga a tragédia, realçando o drama mas escondendo o fato de que a mesma se associa à degradação ambiental, envolvendo o aquecimento global provocado pela insana poluição ambiental associada à destruição do meio ambiente, tudo em nome do lucro imediato e à exploração crescente de um planeta que possui recursos e meios de reequilibração limitados.

Parece que nos esquecemos fácil dos ataques físicos reais e políticos contra a natureza ocorrida no mundo nas últimas seis décadas e, aqui no Brasil, nos últimos seis anos, indo da onda de incêndios e desmatamento na Amazônia à desregulação e solapamento das leis de proteção ambiental efetuados pelo agronegócio “pop” e pelos congressistas mais reacionários da história do Brasil, tudo antecipando o atual quadro que hoje nos choca, mas que foram precedidos por secas no Norte (Amazônia) e enchentes no Sul até fins do ano passado (em setembro 2023 já houve enchentes do mesmo Rio Grande do Sul), entre outros graves avisos, todos desconsiderados ou minimizados pela mesma mídia que os divulgam.

O fato é que a natureza sempre busca o equilíbrio diante da realidade provocada pelos homens. E se atacamos os meios naturais que possuem seus próprios meios de homeostase e equilíbrio dinâmico, o sistema geofísico e ecológico buscará se adequar dramaticamente à violência a que foi submetida pelo sistema econômico insano que, se antes atingia cruelmente pessoas, agora envolvem todo o sistema de seres vivos que constituem a biosfera da Terra. Mas o fato mais grotesco, como aponta Daniel Jeziorny em seu artigo A tragédia gaucha e a arte de cegar 1, é que

Quanto mais se publica sobre este novo desastre, mais se esconde o essencial: o colapso do clima pode ser evitado; basta nos livrarmos do sistema que o produz. Para que isso permaneça ofuscado, os noticiários nos inundam de banalidades

Sim, é verdade que a tragédia no Rio Grande do Sul, em suas proporções apocalípticas, emocionou e mobilizou o bom coração do nosso povo. Atos heroicos expressos em movimentos de ajuda e solidariedade advindas de mãos voluntárias e doações espontâneas de todo o país demonstram a disposição de ajuda das pessoas, mesmo diante das criminosas ações de desinformação e fake news oportunistas para fins políticos e interesses particulares… E isso, tanto a solidariedade quanto as narrativas deturpadas da extrema direita, se manterá ao menos enquanto a imprensa ainda focar as dores e a destruição que ocorre no Sul antes de serem substituídas pelas próximas manchetes e chamadas midiáticas mais ou menos superficiais para outros dramas surrealistas e tragédias, sem aprofundarem na conscientização das causas humanas das mesmas.

Mas, malgrado a dor, a tragédia é um momento dramático extremo que abre uma fenda na rotina mecanicista de nossos tempos para fazer ao menos parte das pessoas pararem para pensar ante o erro de se acreditar que o que ocorre no Sul se resume a uma catástrofe puramente natural. É o momento chocante para se refletir sobre as ações humanas, os avisos da natureza, os alertas da ciência e o crescimento das desigualdades socioambientais para se ter consciência de que a tragédia possui origem humana, mais especificamente na estrutura das relações de produção do atual estágio do capitalismo. Portanto, não há como escapar de politizar o debate sobre os eventos que levaram às inundações do Sul.

Contra a conscientização crítica da ação antropogênica na degradação ambiental surge, é óbvio, a reação de negacionistas atrelados aos interesses econômicos dos principais responsáveis pela agressão à natureza em todos as esferas, especialmente entre os dirigentes das grandes empresas financiadoras dos políticos que legislam ou destroem leis de proteção ambiental e que se sentem bem na situação de privilégio construída sobre um modelo de exploração ecológica e humana, bem adaptados ao conforto material que o dinheiro pode comprar. Contudo, por mais que se tente banalizar e normalizar a avalanche de perturbações climáticas, a irrupção de eventos extremos como inundações em grandes cidades (já que em pequenas cidades, especialmente do interior, chamam menos atenção), as ondas de intenso calor e de secas severas em ambientes antes conhecidos pela umidade e frequência de chuvas, os grandes incêndios, os furacões e tornados e o envenenamento da terra, águas e plantações constituem fatos nacionais e mundiais inegáveis. E, bem ou mal, está o espaço dos mais reativos a esses eventos está sendo atingidos e, apavorados, parecem querer ainda mais impor uma negação e uma legislação ecocida e genocida contra Gaia, a Terra viva que sustenta a vida.

É ainda Daniel Jeziorny que nos alerta:

A humanidade se depara com uma ameaça real, concreta, que talvez pela primeira vez a coloque diante de uma encruzilhada na qual não possa garantir que o futuro será melhor que o presente. A despeito da recalcitrância de teorias conspiratórias e dos escusos interesses de grupos econômicos e negacionistas, há muito a ciência alerta ao agravamento das variáveis que influenciam o aquecimento global, tais como a emissão de gases de efeito estufa, a diminuição da permafrost, a acidificação dos oceanos e o desmatamento de florestas e outros biomas ao redor do planeta. A verdade é que, quanto ao devir da civilização humana no Sistema Terra, projeções de coletivos científicos são cada vez mais sombrias.

E o que tem os espíritas, católicos, evangélicos e agnósticos a ver com isso? Bem, “muito será cobrado a quem muito foi dado”. Aos espíritas, em sua maioria, por exemplo, não faltaram meios de instrução e educação. A própria filosofia espírita impõe uma responsabilidade socioambiental a partir de uma amplidão de perspectiva espiritual que, ao menos em teoria, deveria se refletir na ação de conscientização e transformação pela justiça sócio ambiental, a maior de todas as formas de caridade, que possibilitaria meios reais para a justiça social, partilha, caridade para com os animais e vegetais e, assim, melhoria do ambiente mais amplo para minimizar tragédias ambientais e humanas, incluindo a desigualdade, participando os espíritas, de fato, na evolução do planeta como um todo. 

Há, portanto, a responsabilidade dos espíritas para, em primeiro lugar, o estudo e a conscientização das causas das emergências climáticas que, junto om as causas das desigualdades sociais, também são fatores que impedem a espiritualização e evolução da Terra, como um todo, e, em segundo lugar, ajudar a promover coletivamente a conscientização de que somos filhos e dependentes da Terra e do Clima, enquanto seres encarnados, irmanados a todos os demais seres vivos, filhos e filhas do mesmo Pai/Mãe divino

Como escreve o eco-ativista e teólogo Leonardo Boff em seu artigo A conta chegou: a tragédia climática no Rio Grande do Sul2,

O próprio ser humano percorreu várias etapas em seu diálogo com a natureza: inicialmente predominava uma interação pacífica com ela; depois passou a uma intervenção ativa nos seus ritmos, desviando cursos de rios para a irrigação, cortando territórios para estradas; passou para uma verdadeira agressão da natureza, precisamente a partir do processo industrialista que se aproveitou dos recursos naturais para a riqueza de alguns à custa da pobreza das grandes maiorias; esta agressão foi levada por tecnologias eficientes a uma verdadeira destruição da natureza, ao devastar inteiros ecossistemas, pelo desflorestamento em função da produção de commodities, pelo mau uso do solo impregnando-o de agrotóxicos, contaminando as águas e os ares.

Este humilde artigo não pretende ser apenas mais um escrito elaborado no momento de uma tragédia ambiental, mas um pequeno chamado à reflexão. E, aqui, ao final, penso ser conveniente dar à palavra à sabedoria de um representante dos povos originários das Américas, por meio do discurso que foi dito pelo Cacique Duwamish Seattle (1787-1866), endereçado ao presidente norte-americano Franklin Pierce que buscava comprar ao território da tribo em 1854, e que se tornou famoso pela sua lúcida profundidade e espiritualidade ecológica3:

O grande chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e sua benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Porém, vamos pensar em tua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra.

O grande chefe em Washington pode confiar no que o chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alternação das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas - elas não empalidecem.

Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água. Como podes então comprá-los de nós?Decidimos apenas sobre o nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias arenosas, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de exauri-la, ele vai embora. Deixa para trás o túmulo dos seus pais, sem remorsos de consciência. Rouba a terra dos seus filhos. Nada respeita. Esquece a sepultura dos antepassados e o direito dos filhos.

Sua ganância empobrecerá a terra e vai deixar atrás de si os desertos. A vista de suas cidades é um tormento para os olhos do homem vermelho. Mas talvez isso seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende. Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem um lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem da primavera ou o tinir das asas de insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é para mim uma afronta contra os ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo, à noite?

Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho da água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho. Porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar - animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo ele é insensível ao seu cheiro. Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição. O homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser certo de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como o fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso do que um bisão que nós, os índios, matamos apenas para sustentar nossa própria vida.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, os homens morreriam de solidão espiritual porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo está relacionado entre si. Tudo que fere a terra fere também os filhos da terra. Os nossos filhos viram seus pais serem humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, e envenenam seu corpo com alimentos doces e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, até mesmo uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que tem vagueado em pequenos bandos nos bosques, sobrará para chorar sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

De uma coisa sabemos que o homem branco talvez venha um dia a descobrir: - O nosso Deus é o mesmo Deus! - Julgas, talvez, que o podes possuir da mesma maneira como desejas possuir a nossa terra. Mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira. E quer bem igualmente ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. E causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo seu Criador. O homem branco também vai desaparecer talvez mais depressa do que as outras raças. Continua poluindo tua própria cama, e hás de morrer uma noite, sufocado nos teus próprios dejetos! Depois de abatido o último bisonte e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, e quando as colinas escarpadas se encherem de mulheres a tagarelar - onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará o adeus à andorinha da torre e à caça, o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.

Talvez compreenderíamos se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar os desejos para o dia de amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós. E por serem ocultos, temos de escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos, é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os últimos dias conforme desejamos.

Depois do último homem ter partido e a sua lembrança não passar de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças como era a terra quando dela tomaste posse. E com toda tua força, o teu poder, e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama a todos. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum."

1JEZIORNY, Daniel Lemos. A tragédia gaúca e a arte de cegar, publicado no site Outras Palavras, em 09 de maio de 2024, acessível em https://outraspalavras.net/crise-brasileira/tragedia-gaucha-e-a-arte-de-cegar/

2BOFF, Leonardo. A conta chegou: a tragédia climática no Rio Grande do Sul, publicado no site ICL Notícias, acessível em https://iclnoticias.com.br/a-conta-chegou-a-tragedia-climatica-no-rs/

3A presente versão do discurso do Cacique Seattle econtra-se no site da Bilbiotea FUNAI, em http://biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/Folheto43/FO-CX-43-2698-2000.pdf


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