"A ofensiva de Donald Trump contra juízes e procuradores internacionais resultou em problemas que foram muito além da suspensão de vistos ou o confisco de bens nos EUA. Relatos colhidos pelo UOL em Haia revelam como a adoção de sanções contra procuradores e juízes do Tribunal Penal Internacional abalou até o funcionamento do órgão, o acesso ao e-mail, viagens, pagamento de salários e a própria investigação contra suspeitos."
Do UOL:
Sanções de Trump abalam corte em Haia: suspensão de email, demissão e medo
A ofensiva de Donald Trump contra juízes e procuradores internacionais resultou em problemas que foram muito além da suspensão de vistos ou o confisco de bens nos EUA. Relatos colhidos pelo UOL em Haia revelam como a adoção de sanções contra procuradores e juízes do Tribunal Penal Internacional abalou até o funcionamento do órgão, o acesso ao e-mail, viagens, pagamento de salários e a própria investigação contra suspeitos.
Fontes na cidade holandesa confirmaram à reportagem que, de fato, as sanções tiveram um profundo impacto na capacidade de operação de um dos únicos tribunais no mundo com o mandato para lidar com os crimes mais graves perpetrados por governos.
A ofensiva ainda levou governos europeus a avaliar a possibilidade de criar mecanismos independentes de tecnologia para não depender apenas dos sistemas criados e fornecidos pelas grandes empresas americanas.
Ainda nas primeiras semanas do governo Trump, a ação da Casa Branca contra o procurador Karim Khan, do TPI, pegou muitos de surpresa. A principal acusação é de que ele estaria agindo contra os interesses dos EUA e de Israel, ao pedir a prisão de Benjamin Netanyahu.
Imediatamente, os funcionários da corte foram alertados a evitar viagens aos EUA, sob o risco de que poderiam ser presos.
Havia, porém, um problema imediato a ser resolvido: como preservar as provas contra os indiciados, já que o sistema contratado pela promotoria estava sob a guarda de uma empresa americana, a Microsoft. Por duas semanas, todo o trabalho parou para que milhares de páginas de provas e evidências fossem para impressoras do escritórios. Ninguém mais confiava na possibilidade de que elas seriam preservadas.
"Ninguém jamais pensou que isso poderia ocorrer desta forma", admitiu um funcionário do TPI ao UOL, em condição de anonimato.
Outra medida foi antecipar o pagamento de salários em seis meses, na esperança de fugir de eventuais sanções que poderiam afetar não apenas o promotor, mas qualquer um que trabalhasse com ele.
O impacto foi sentido em todo o quadro de funcionários. Por anos, o tribunal havia optado por trazer para Haia alguns dos maiores especialistas americanos para trabalhar nos departamentos jurídicos da corte. Alertado por um advogado, um americano que ocupava a direção de uma das divisões da promotoria, porém, simplesmente desapareceu e nunca mais retornou ao escritório da corte.
Outros americanos que trabalhavam no TPI pediram demissão, enquanto aqueles que permaneceram criaram um sistema de operação pelo qual não teriam mais contatos com as pessoas sancionadas.
Ficou ainda inviabilizada qualquer viagem da promotoria da corte aos EUA para reuniões no Conselho de Segurança da ONU.
Os problemas, porém, apenas cresceram nos últimos meses. Trump ampliou as sanções para atingir mais quatro juízes e, nesta semana, dois juízes e dois sub-procuradores foram incluídos na lista de sanções.
Um dos centros da ofensiva é a ameaça que o governo dos EUA fez contra qualquer pessoas ou entidade que desse "apoio financeiro, material ou tecnológico" para um dos afetados pelas sanções.
Um dos impactos foi a suspensão das contas de email de Khan e que eram administradas por um serviço prestado pela Microsoft.
Em junho, a empresa americana afirmou que estava em contato com a corte desde fevereiro "pelo processo que resultou na desconexão de funcionários sancionados por serviços da Microsoft". Mas a empresa garantiu que não suspendeu seus serviços para a corte, como instituição
Ainda assim, o caso abriu uma crise entre governos europeus, que passaram a temer que eventuais sanções possam ser traduzidas nas interrupção de serviços digitais por parte das empresas americanas.
Membros do Parlamento Europeu passaram a defender a criação de uma "nuvem europeia", justamente para evitar a dependência em relação às empresas americanas que poderão ter de cumprir as regras exigidas por Washington.
"O TPI mostrou que isso pode acontecer", disse Bart Groothuis, membro holandês do Parlamento Europeu e ex-chefe de segurança cibernética do Ministério da Defesa holandês. "Não é apenas fantasia."
No Parlamento da Holanda, país que hospeda o tribunal, deputados aprovaram uma moção para pedir que o governo use 30% de serviços de nuvem de provedores europeus, até 2029.
Em julho, o Conselho de Ministros da Holanda ainda adotou um documento entitulado "Reforçar a soberania da nuvem das administrações públicas" na qual defendem defendem medidas que visam incentivar uma maior ação da Europa no "reforço da soberania da nuvem".
"Além disso, uma proposta sugere a criação de um quadro a nível europeu para ajudar os governos a tomar decisões informadas sobre a adoção de serviços públicos em nuvem. É igualmente essencial garantir oportunidades de financiamento adequadas para estas tecnologias", apontou.
A recomendação "Política de nuvem à escala da UE para as administrações públicas e os contratos públicos" e a proposta legislativa "Lei de Desenvolvimento da Nuvem e da IA" serão votadas em 2026, justamente para reduzir a dependência europeia às grandes empresas americanas.
ONU pede que governos protejam funcionários da corte
Nesta quinta-feira, a ONU fez um apelo para que governos de todo o mundo atuem para sair ao resgate dos funcionários sob sanção e para garantir a operação da corte.
Para o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, a imposição de novas sanções pelos EUA deve levar a comunidade internacional a tomar medidas para protegê-los. "A intensificação implacável das represálias dos EUA contra instituições internacionais e seu pessoal deve parar", disse Türk.
"Sancionar juízes e promotores em nível nacional, regional ou internacional por cumprirem seu mandato de acordo com os padrões do direito internacional é um ataque ao Estado de Direito e corrói a justiça", disse.
"Peço aos estados a tomarem medidas imediatas para proteger todos os sancionados, incluindo medidas para incentivar as empresas que operam na sua jurisdição a não aplicar as sanções contra esses indivíduos", afirmou.
"Os estados precisam de se mobilizar para defender as instituições que criaram para defender e proteger os direitos humanos e o Estado de direito. Aqueles que trabalham para documentar, investigar e processar violações graves do direito internacional não devem ter de trabalhar com medo", completou.
Anistia alerta para desmonte do tribunal
Para a entidade Anistia Internacional, as sanções "impedirão que seja feita justiça a todas as vítimas para as quais o Tribunal é o último recurso". "As sanções têm como objetivo pressionar o Tribunal a deixar de buscar justiça imparcial e independente ou enfrentar consequências em todo o seu trabalho", alerta.
O temor da Anistia é que as sanções do governo Trump "podem desencorajar países, bem como indivíduos e empresas, de ajudar o Tribunal, tornando mais difícil levar os supostos perpetradores de Israel e de outros países a julgamento".
"O TPI também depende de uma ampla gama de partes interessadas - pesquisadores, advogados e defensores dos direitos humanos -, bem como de vítimas e testemunhas, para construir seus casos. Essas sanções tornarão seu trabalho muito mais difícil. A justiça será quase impossível se essas pessoas não puderem agir livremente e sem coerção", insistiu.
Na avaliação da entidades, sanções prejudicam "todas as investigações do TPI, não apenas aquelas contestadas pelo governo dos EUA". "Elas afetarão negativamente os interesses de todas as vítimas que buscam justiça no Tribunal em todos os países onde ele está conduzindo investigações, incluindo aquelas que os EUA aparentemente apoiam - por exemplo, na Ucrânia, em Uganda ou em Darfur", disse.
Para o TPI, essas medidas são uma "tentativa clara de minar a independência de uma instituição judicial internacional".
"Atacar aqueles que trabalham pela responsabilização não ajuda em nada os civis presos em conflitos. Isso apenas encoraja aqueles que acreditam que podem agir com impunidade", alertam. "Essas sanções não são direcionadas apenas a indivíduos específicos, mas também a todos aqueles que apoiam o Tribunal, incluindo cidadãos e entidades corporativas dos Estados Partes", completa o tribunal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário