terça-feira, 26 de agosto de 2025

Ex-primeiro ministro de Portugal sobre Donald Trump: O Grande extorsor

 José Sócrates

José Sócrates

Primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011

COLUNISTAS ICL

O grande extorsor

As regras que davam segurança e confiança ao comércio internacional parecem suspensas

O que torna extraordinária a época que vivemos é que a grande ameaça à ordem ocidental vem da sua própria liderança. Não vem de fora, mas de dentro. Os Estados Unidos eram os grandes fornecedores de bens públicos mundiais como transportes seguros, proteção à propriedade e uma moeda útil para guardar poupanças e fazer negócios internacionais. Ganhavam com isso, é claro, mas para os restantes países esse era um custo aceitável para garantir o cumprimento das regras.

Hoje, o mesmo país, que antes protegia os outros, ameaça-os agora de isolamento comercial, impõe prémios extravagantes de acesso aos seus mercados e usa as alianças militares para impor, contra a vontade dos seus parceiros, a venda de armas, de energia e outros produtos industriais.  As regras que davam segurança e confiança ao comércio internacional parecem suspensas: o Grande Segurador passou a Grande Extorsor.

A ordem anterior foi criada pelos Estados Unidos e pelos países europeus, que se constituíram, em conjunto, como uma espécie de parceiro júnior da liderança americana. Essa ordem tinha injustiças e privilégios, como todas têm – mas era alguma coisa com que todos podiam viver e muitos queriam viver. Foram essas regras que permitiram o movimento de globalização que baixou a violência e a guerra e que trouxe mais oportunidades a muitos países em desenvolvimento — entre os quais a China, a grande vencedora do fenômeno da globalização económica. Seja como for, independentemente das suas imperfeições e privilégios, a verdade é que o sistema persistiu porque a maioria dos países acreditou nele, beneficiou dele e não viu no mundo alternativa melhor. Esse sentimento de segurança acabou.

É neste quadro geral que devemos olhar a situação brasileira. O Brasil não aceitou a chantagem das tarifas. O Brasil não aceitou negociar a sua soberania. E, sejamos claros sobre este ponto, quando um juiz como Flávio Dino tem necessidade de usar uma sentença para constatar o óbvio sobre legislação estrangeira, é porque esse óbvio está ameaçado. Na verdade, o caso do Brasil nunca foi uma questão comercial, mas uma questão de dignidade nacional. Há momentos, como aquele em que lemos a corajosa decisão judicial do ministro, em que sentimos que há esperança para a Grande Regressão em curso.

Alguns dizem que se trata apenas de um ligeiro realinhamento. Que alguns países pagarão mais por menos, mas que o “novo normal” acabará aceite por todos. Não me parece. Por um lado, o caos e a incerteza parecem ter atingido principalmente os aliados dos Estados Unidos. O Japão, por exemplo, aceitou tarifas de mais 15 por cento, aceitou criar um fundo de 14 por cento do seu produto interno bruto para investimento adicional nos Estados Unidos e aceitou também a obrigação explicita de comprar aviões, arroz e outros produtos agrícolas. No entretanto, de um ano para o outro, a popularidade dos Estados Unidos naquele país asiático caiu 15 por cento.

Por outro lado, o que esta a acontecer nos diferentes países atingidos é um crescente ressentimento que irá manifestar-se numa alteração do comportamento comercial — maior integração dos países atingidos uns com os outros e mais reforço dos laços económicos com a China. E tudo isto sem que a China tivesse feito alguma coisa por isso — bastou não fazer asneiras. A sua política externa razoável, previsível e respeitadora, está a ganhar a batalha pela simpatia do mundo. Retomo a ideia inicial: a crise da ordem ocidental não nasce da ação desafiadora de uma potência alternativa, mas da desistência do incumbente.

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