Mostrando postagens com marcador imprensa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador imprensa. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Do El País - Na ONU, Bolsonaro se exime de erros na gestão da pandemia e choca ao culpar índios por incêndios

 

"(...) Bolsonaro se valeu de uma leitura simplista sobre as responsabilidades do Brasil na preservação do meio ambiente para defender o avanço do agronegócio."

Na ONU, Bolsonaro se exime de erros na gestão da pandemia e choca ao culpar índios por incêndios

Em seu discurso na 75ª Assembleia Geral da ONU, o presidente afirmou que seu governo é vítima de uma campanha de desinformação


Jair Bolsonaro discursa nesta terça na Assembleia Geral da ONU.

São Paulo - 22 SEP 2020

Diante de uma Assembleia Geral que celebrava o 75º aniversário da ONU, com o lema “O futuro que queremos”, o presidente Jair Bolsonaro inaugurou nesta terça-feira a reunião de líderes —tradição reservada ao Brasil desde 1955— atacando com o mesmo estilo de sempre. Primeiro aos meios de comunicação, por supostamente “espalhar o pânico entre a população” ao longo da pandemia de coronavírus. Depois, sobre os incêndios na Amazônia e no Pantanal, Bolsonaro tentou mais uma vez livrar seu Governo das críticas por sua gestão no combate às queimadas ilegais, afirmando, assim como fizera em seu discurso do ano passado, que o Brasil é “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação”. Sem mencionar as investigações sobre a ação criminosa de fazendeiros, tanto na Amazônia como no Pantanal, o presidente afirmou que “índios e caboclos” causam as queimadas para sua sobrevivência —novamente, sem citar fatores como a ação de garimpeiros e grileiros. Também fez referência às altas temperaturas no centro-oeste brasileiro como culpadas pelo desastre ambiental.

No discurso gravado para a abertura da reunião —adaptação imposta devido à crise sanitária—, Bolsonaro se valeu de uma leitura simplista sobre as responsabilidades do Brasil na preservação do meio ambiente para defender o avanço do agronegócio. Empresas do setor se juntaram recentemente a ONGs para apresentar propostas para coibir o desmatamento na Amazônia e evitar a fuga de investidores. O presidente, no entanto, destacou o agronegócio brasileiro como possuidor de uma das melhores licenças ambientais do mundo. As críticas fariam parte de uma suposta campanha de desinformação ambiental —uma retórica, aliás, que vários ministros estão adotando.

Essa retórica também vale para a Amazônia. Nela, Bolsonaro, defende que a riqueza local seria alvo da cobiça de instituições internacionais, aliada a grupos brasileiros “aproveitadores e impatrióticos”, que teriam como interesse prejudicar o Governo.

Sobre o Pantantal, a linha do discurso presidencial foi parecida. Ele não mencionou as investigações da Polícia Federal que identificaram o início de alguns focos em quatro fazendas, o que reforça as suspeitas de que os incêndios foram propositais. “Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental. (...) Lembro que a região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria”, justificou.

Ainda na área ambiental, Bolsonaro também insinuou que a Venezuela foi a responsável pelo derramamento de óleo que atingiu a costa do Nordeste no ano passado, apesar de as investigações ainda não terem chegado a uma conclusão.

O presidente afirmou ainda que o Brasil utiliza uma parcela pequena de seu território para a agricultura, destacando que o país é líder em conservação de florestas tropicais, possui uma matriz energética mais limpa e diversificada do mundo e é responsável por apenas 3% da emissão de carbono no mundo, apesar de ser umas das dez maiores economias. “Garantimos segurança alimentar a um sexto da população mundial, mesmo preservando 66% de nossa vegetação nativa e usando apenas 27% do nosso território para a pecuária e a agricultura —números que nenhum outro país possui”.

Reações

A fala de Bolsonaro gerou reação de organizações ligadas à defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. “Ao arrasar a imagem internacional do Brasil como está arrasando nossos biomas, Bolsonaro prova que seu patriotismo sempre foi de fachada”, afirmou Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Acusou um conluio inexistente entre ONGs e potências estrangeiras contra o país, mas, ao negar a realidade e não apresentar nenhum plano para os problemas que enfrentamos, é Bolsonaro quem ameaça nossa economia. O Brasil pagará durante muito tempo a conta dessa irresponsabilidade. Temos um presidente que sabota o próprio país.”

Já Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, classificou o discurso do presidente de “desrespeitoso aos líderes mundiais”, uma vez “subestima a inteligência e nível de conhecimento e informação de seus pares sobre a crise no Brasil”. Para ela, o mandatário “negou a gravidade da destruição ambiental, culpou ‘caboclos e índios' e atacou o trabalho de organizações ambientais”.

Gestão da pandemia de coronavírus

O presidente também buscou defender seu Governo das críticas pela gestão da pandemia do coronavírus, que no Brasil já matou mais de 137.000 pessoas. Para isso, terceirizou a responsabilidade aos 27 governadores pela gestão das medidas de isolamento e de “restrições de liberdade”, distorcendo a decisão do Supremo Tribunal Federal determinando que as medidas mais duras de distanciamento social deveriam ser respeitadas, fossem elas decretadas por governantes locais ou não. Ao longo da pandemia, Bolsonaro se posicionou de modo contrário às medidas de isolamento decretadas por Prefeituras e Governos estaduais com base nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da comunidade científica. “Ao presidente coube o envio de recursos e meios a todo o país”, destacou o presidente, que também promoveu ao longo da crise sanitária o uso da hidroxicloroquina, cujos efeitos contra a covid-19 não foram comprovados cientificamente.

E partiu para o ataque contra a imprensa: “Como aconteceu em grande parte do mundo, parcela da imprensa brasileira também politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema ‘fique em casa e a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos social para o país”, discursou.

Em seguida, destacou as medidas econômicas de seu Governo. Ele citou o programa de renda básica emergencial de 600 reais (iniciativa do Congresso Nacional) aprovado por ele, para 65 milhões de pessoas, afirmando que suas parcelas “somam aproximadamente 1.000 dólares” —o valor das parcelas individuais é de 600 reais, equivalente a cerca de 120 dólares pelo cambio atual, numa soma dos benefícios no presente e futuro. Também destacou o apoio para ações de saúde e socorro a pequenas e microempresas, assim como a compensação pela perda de arrecadação dos Estados e Municípios.

Política exterior e aceno à base religiosa

Bolsonaro também afirmou que o Brasil não é apenas “líder em preservação ambiental”, como também se destaca no campo humanitário e dos direitos humanos. E atacou mais uma vez o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, ao lembrar que o Brasil acolheu refugiados do país. “A Operação Acolhida, encabeçada pelo Ministério da Defesa, recebeu quase 400 mil venezuelanos, deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana”.

O presidente terminou seu discurso “reafirmando” sua “solidariedade e apoio ao povo do Líbano pelas recentes adversidades sofridas”, assim como confirmando o apoio brasileiro aos acordos de paz entre Israel e os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein. “O Brasil saúda também o plano de paz e prosperidade lançado pelo presidente Donald Trump, com uma visão promissora para retomar o caminho da tão desejada solução do conflito israelense-palestino”.

Também acenou para sua base religiosa, ao fazer “um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”, destacando que “o Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base”.


sexta-feira, 6 de março de 2020

Bolsonaro usa expressão nazista para atacar a imprensa, lembra Jamil Chade



"A imprensa que mente", a estratégia utilizada pelo regime autoritário de Adolfo Hitler contra a oposição agora é a arma de Bolsonaro
Jornal GGN Durante transmissão ao vivo nesta quinta-feira, 27 de fevereiro, Jair Bolsonaro se apropriou de expressão popularizada pelo regime autoritário de Adolfo Hitler para atacar a imprensa. Em sua coluna desta sexta-feira, 28, publicada no UOL, Jamil Chade lembra que a “‘Imprensa que mente’ foi instrumento nazista, senhor presidente”
O texto lembra que o termo ‘Lügenpresse’, em português ‘imprensa mentirosa’, surgiu no começo do século 20, “mas foram os nazistas que se apropriaram do termo como parte de sua arma para silenciar a oposição ou simplesmente a imprensa livre”.
Na Alemanha nazista, as ações que traziam a público o autoritarismo do regime eram sempre podadas com a mesma frase: “a imprensa que mente” é a inimiga do povo. No Brasil, a cena se repete.
“No caso do Brasil, a ofensiva de mentiras não se limita ao presidente e suas lives. Na ONU, um país que não existe foi promovido nesta semana pelo governo”, escreveu o colunista. 
Jamil Chade explicou o episódio em que a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, critica de forma presunçosa a alta comissária da ONU, Michelle Bachelet, que a denunciou o desmonte dos direitos humanos no Brasil. Para defender Bolsonaro, Maria Nazareth chegou argumentar que o programa de proteção do governo para ativistas foi ampliado para incluir jornalistas. 
“Ela, porém, não citou as ofensas sexuais do presidente contra a jornalista Patrícia Campos Mello e nem as bananas dadas à imprensa. Mas a embaixadora tem sua recompensa: além de ter recebido um telefonema de Bolsonaro no ano passado para agradecê-la por seu comportamento, ela é aplaudida efusivamente pelo bolsonarismo mais radical e ignorante”, lembrou Jamil Chade.
O texto traz à tona o peso das expressões utilizadas por Bolsonaro e alerta que “estamos sob ataque. A liberdade está sob ataque”. Para Jamil Chade, cabe a todos o enfrentamento deste episódio. “A história não nos poupará de críticas se não tomarmos a iniciativa de, diariamente, denunciar a deriva autoritária”. 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor

Assine e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Bar Bodega da Mídia Privada ou de quando a imprensa nas mãos de políticos e empresários gerou o ovo da serpente do bolsonarismo. Texto de Luiz Nassif



  Aqui, uma coletânea de artigos que publiquei no período, alertando para os riscos de um jornalismo comprometido apenas com o sensacionalismo. E a defesa enfática do garantismo como única maneira de não se soçobrar na selvageria.

Por
 Luis Nassif

Hoje, na Folha, o repórter Rogério Pagan traz informações importantes sobre um dos mais graves crimes de imprensa dos anos 90, o caso do Bar Bodega. Mostra o trabalho solitário do segurança do bar, quando percebeu a armação da polícia imputando o crime aos cinco rapazes, negros é claro, de uma favela próxima.
Faltou o dado mais relevante, o papel da mídia no episódio. O sensacionalismo barato, os assassinatos de reputação, o desrespeito aos direitos fundamentais, já eram parte integrante do jornalismo dos anos 90. Estava sendo gestado lá o ovo da serpente do bolsonarismo.
Mas havia ainda um pluralismo, do qual me vali para denunciar as mazelas, cobrar responsabilidades. Esses crimes estão narrados no livro “O jornalismo dos anos 90”, que padece de um grande erro: a conclusão final de que a competição com a Internet poderia moderar a irresponsabilidade da cobertura da imprensa.
Aqui, uma coletânea de artigos que publiquei no período, alertando para os riscos de um jornalismo comprometido apenas com o sensacionalismo. E a defesa enfática do garantismo como única maneira de não se soçobrar na selvageria.

Introdução ao jornalismo dos anos 90

Em geral, há dois grupos ideologicamente diferentes beneficiários da catarse popular. Um, mais à esquerda, explorando qualquer evento que envolva a chamada “classe dominante” –incluídos nessa generalização qualquer membro de classe média remediada para cima. Outro, mais à direita, explorando qualquer episódio de violência urbana da marginalidade, e mais restrito às emissoras de rádio.
O caso “bar Bodega” fez a festa do segundo grupo. No dia 10 de agosto de 1996 bandidos entraram em um bar frequentado por jovens de classe média, atiraram e mataram o dentista José Renato Tahan e a estudante Adriana Ciola. O episódio provocou comoção popular e abriu espaço para explorações de toda natureza. Uma rádio paulistana deu início a uma campanha contra a violência, exortando empresas e famílias a colocarem faixas brancas nas fachadas. Até a Federação das Indústrias de São Paulo aderiu ao movimento.
Através de seu repórter policial, Valmir Salaro, a TV Globo mais uma vez foi a que mais repercutiu o episódio, graças à sua notável audiência. Pressionado pela campanha, em quinze dias o delegado responsável pelo inquérito prendeu nove suspeitos do crime, rapazes e meninos moradores de uma favela das imediações. Os rapazes permaneceram detidos por 60 dias. Três deles “confessaram o crime”.
Dois meses depois, o promotor Eduardo Araújo da Silva divulgou a suspeita de que os meninos haviam sido torturados, confessado sob tortura, e pediu sua libertação. Imediatamente foi alvo de campanha maciça de protestos, especialmente por parte das rádios e televisões.
Meu primeiro artigo foi escrito aí, em pleno tiroteio, defendendo a posição do promotor.
Em novembro, a Divisão de Homicídios prendeu seis acusados, e a Justiça condenou cinco, como os verdadeiros culpados pelo crime do Bar Bodega.
Mais: descobriu-se que os meninos haviam sido torturados na delegacia. Pior: com o conhecimento dos repórteres que cobriam o caso. A campanha conseguira isso, não apenas o de cegar a opinião pública em relação aos argumentos da defesa, como tornar jornalistas cúmplices de tortura.
Anos depois, um homem de aspecto jovem, acompanhado de esposa e filho, me aborda no Pátio Higienópolis, e se apresenta. Era o promotor Eduardo Araújo da Silva. Lá, me relatou as pressões que sofreu. Quanto às de fora, não se importava. A pressão maior foi da própria corporação, preocupada com a própria imagem em função da campanha encetada pelos meios de comunicação.
O primeiro artigo saiu em 26 de outubro de 1996. O segundo no início de novembro, quando o erro geral da mídia estava suficientemente comprovado e –pior que isso— estavam confirmadas as acusações de tortura, testemunhadas e não denunciadas pelos jornalistas que cobriram o episódio.
Aparentemente, a coluna conseguiu sensibilizar consciências jornalísticas. No dia seguinte o “Jornal Nacional” publicou uma reportagem candente sobre os erros da imprensa, curiosamente preparada por seu repórter policial Valmir Salaro, jornalista que cobriu os escândalos mais clamorosamente errados da mídia.

27/10/1996 Caso Bar Bodega

A atitude do promotor Eduardo Araújo da Silva –de pedir a revogação, por falta de provas, da prisão preventiva dos sete acusados pelas mortes no bar Bodega, em São Paulo—, engrandece o Ministério Público paulista. Ao obter acusações sob tortura, e eventualmente incriminar inocentes, a polícia fere direitos humanos dos acusados e os direitos de quem necessita de segurança –já que se livra da pressão pública, sem ter cumprido seu dever, deixando soltos os verdadeiros culpados.
O promotor e o juiz não correriam risco perante a opinião pública, se cedessem ao “clamor das ruas” e mantivessem presos os acusados, mesmo sem o amparo de provas. Mas correm risco efetivo de incompreensão, se no futuro surgirem evidências da culpa dos acusados.
Conhece-se um grande homem justamente por essa capacidade de correr riscos, em nome de suas convicções. Principalmente quando estão em jogo os direitos de humildes cidadãos anônimos.

16/11/1997 Mais um erro da imprensa

No meio da semana, nós, da imprensa, abrimos chamadas burocráticas em rádios, televisões e jornais: “Mais um erro da polícia”. Referíamo-nos ao caso Bodega: dois rapazes de classe media assassinados em um assalto; sete suspeitos presos, quase todos pretos, todos pobres.
Algumas semanas atrás, um promotor corajoso opinou por sua libertação, denunciando que tinham sido vitimas de tortura. E foi alvo de criticas candentes.
Soltos os suspeitos, o caso muda de delegacia e chegam-se a novos suspeitos. E as chamadas burocráticas na imprensa repetem mais uma cerimonia de lava-mãos: mais um erro da policia.
Só́ isso? E as reportagens que condenaram a todos antecipadamente? Como ficamos nós, com fica nossa responsabilidade social?
Os sete jovens confessaram o crime sob tortura. Durante dias, jornalistas se tornaram íntimos do delegado. Receberam as informações que ele quis passar, frequentaram a delegacia, tiveram acesso aos suspeitos. E não saiu uma linha sequer informando a opinião publica de que tinham sido torturados!
O que está acontecendo com a gente? Anos de resistência contra a ditadura, luta contra a censura, pelos direitos humanos, tudo reduzido a uma busca sôfrega de sensacionalismo, a um vale-tudo onde tudo é permitido, desde que se tenha a matéria de impacto. Processos reiterados de linchamentos, com jornalistas comportando-se como policiais ou como linchadores vulgares.
Criamos essa oitava maravilha da impunidade que é o jornalismo sem riscos
Mas será́ que é isso que queremos? É cômoda essa posição de, em vez de respeito, infundir temor? É agradável estar numa roda e sentir que todos se calam quando descobrem que há um jornalista no meio?
Ou se recuperam rapidamente os valores éticos fundamentais da profissão, ou corremos o risco de até continuarmos poderosos. Mas sem nenhuma condição de permanecermos respeitados.

Coluna de 16/12/2000 – O mérito do Judiciário

A busca da justiça tem que se dar com um Judiciário forte. As críticas contra seus vícios têm que ser daqueles que, antes de mais nada, acreditam que só haverá respeito aos direitos individuais com um Judiciário forte. E que a melhor ferramenta para o respeito aos direitos individuais é o processo judicial aprimorado, dando todo direito às partes de serem ouvidas -seja ela um honesto dono de escola da Aclimação ou um bandido com crimes comprovados.
O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade.
Por isso, ao receber a Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região- , dedico aos valentes, que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima do seu medo -o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram os pataxós; o juiz Hélder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares; e a jovem juíza Raecler Baldesca, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estevão, mas que, tenho certeza, lhe aplicará a pena mais severa, quando as acusações contra ele forem comprovadas.

Coluna de 10/11/2001 que pensam os justiceiros

O sacrifício ritual dos rapazes permite malhar figurativamente o “governo”. “Governo”, na maioria dos casos, é visto como uma entidade abstrata, que sintetiza todas as mazelas do mundo, toda injustiça, toda opressão. Afinal, nenhum dos rapazes -nem seus pais- pertence ao “governo” nem à chamada “elite de Brasília”. Ao governo, pertence o presidente FHC, que -para vergonha do intelectual FHC- sancionou o linchamento.

Os defensores do direito absoluto das maiorias são, por definição, propensos ao autoritarismo. Alguns disfarçam, outros são bastante explícitos, como é o caso do leitor em questão: “É revoltante que um jornal como a Folha abra seu espaço, por três dias seguidos, para um senhor chamado Luís Nassif fazer a apologia de quatro assassinos! (…) De minha parte espero uma posição da Folha a respeito desse episódio, uma vez que penso seriamente em suspender minha assinatura”.
Esse tipo de público não se prende muito a análises críticas de fatos. Busca a catarse, e alguns perdem o prumo quando acontece algo que atrapalhe essa celebração ritual. Em alguns casos, mais raros, os leitores não extravasam frustrações nem buscam outros inimigos na “malhação dos Judas”, mas advogam simplesmente a lei de talião -o famoso “olho por olho”, ultrapassado pelos processos judiciais modernos. É o caso do leitor G: “Li seu artigo hoje e gostaria de lhe dizer que, segundo a Bíblia, aqui colhemos o que semeamos. Podemos (e devemos) perdoar nossos inimigos, como nos diz Jesus Cristo, mas Deus não vai deixar de puni-los”.

Esse sentimento -de que o processo judicial, o contraditório (ou seja, contrapor os fatos), é uma maneira de evitar a punição- está presente em boa parte dos e-mails, demonstrando o descrédito na Justiça. Diz o leitor C.: “O “coitadismo” não pode prevalecer sobre a idéia de Justiça. E será que o que você chama de linchamento não é simplesmente uma reação legítima diante da verdade incontroversa dos fatos apurados?”. Mesmo sem ter consultado os autos, o leitor considera a verdade “incontroversa”, inclusive acerca da motivação e dos antecedentes dos jovens, mostrando o excepcional poder de convencimento da mídia.

É evidente -e não poderia ser diferente- que no meio dos e-mails apareceriam os membros das torcidas organizadas de futebol. Como o leitor A.C.S., que mandou o e-mail todo em maiúsculas: “LUIS NASSIF, CADA VEZ MAIS V. TORNA-SE UM JORNALISTA CHAPA-BRANCA. DEFENDEU A CPMF, ESTÁ DEFENDENDO ASSASSINOS FILHINHOS DE JUÍZES. AFINAL, QUEM LHE PAGA? A FOLHA DE SP, PARA UM JORNALISMO ISENTO, COERENTE, JUSTO, OU ALGUM PISTOLÃO DO GOVERNO FEDERAL?”.

Fazer parte dessas maiorias autoritárias expõe seus membros a companhias desse naipe. No fundo, é apenas uma diferença de verniz.

Coluna de 21/08/1997 O pluralismo da mídia

Se os acusados são pretos e pobres, levantam-se os porta-vozes da direita exigindo seu linchamento (caso Bodega). Se são brancos e de classe média, levantam-se os porta-vozes da esquerda querendo levá-los à fogueira (caso Galdino). Invariavelmente, não analisam o episódio nem respeitam os direitos individuais dos acusados. Não lhes importam os fatos, mas a simbologia, o álibi para obter projeção. Não existe nada mais semelhante do que os justiceiros de direita e de esquerda.
(…) Essa incapacidade de perseguir objetivamente os fatos reflete-se em todo o noticiário -não apenas no policial. É um vício de cobertura, que apequena o papel da imprensa e impede que realidades complexas sejam transmitidas com isenção aos leitores.
A diferença de padrão entre as reportagens de publicações internacionais e as nossas é patética. Naquelas, a capacidade de descrever conflitos, mostrando ângulos diferentes dos casos e permitindo ao leitor fazer seu julgamento.
Aqui, o monolitismo absoluto, primário. Qualquer explicação que possa reduzir o impacto das matérias é deixada de lado, para não “esfriar” a denúncia. Leitores que já dispõem de uma exigência maior de qualidade são obrigados a engolir fatos de um ângulo só, como um pianista que só sabe tocar com um dedo.
Vai mudar, não se tenha dúvida. A cada dia que passa, mais leitores, mais jornalistas e mais jornais se chocam com esse primarismo. Nos veículos mais responsáveis, já se nota claramente a preocupação com a ética e a qualidade jornalística. Há um movimento nos sindicatos e nas faculdades para discutir essas questões.
É questão de tempo para que esse primarismo seja varrido do mapa, institua-se o verdadeiro pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas e a mídia avance degraus no sentido da qualidade e da defesa dos direitos individuais.
Mas quantos mortos a mais serão deixados pelo caminho?

Coluna de 19/08/1997 O Editor que virou juiz

A propósito do bar Bodega, recebo carta de Fernando Moreira Gonçalves, promotor de Justiça de Jundiaí, narrando o que ocorreu no âmbito interno do próprio Ministério Público em função desse tal “clamor das ruas”.
Diz ele: “Lendo sua coluna deste domingo, não pude deixar de me lembrar do caso Bodega, no qual sua manifestação de apoio ao promotor de Justiça Eduardo Araújo da Silva, num momento em que ele era questionado dentro do próprio Ministério Público, foi fundamental para a preservação da atuação independente daquele promotor”. E, se alguém não tivesse remado contra a maré, o que seria dos rapazes que haviam virado alvo preferencial da turba?
O mesmo ocorreu no caso Escola Base. Segundo livro publicado sobre o assunto, o desembargador Bruno de Andrés só ganhou coragem para investir contra o malfadado “clamor das ruas” e libertar inocentes após minha manifestação, pela TV Bandeirantes e pela Folha. E se não tivesse sido rompido o pacto de unanimidade?
Continua o promotor:
“Em fatos de grande repercussão social, como os acima citados, existe uma grande tensão entre a segurança pública, que todos desejamos, e os direitos e garantias individuais das pessoas investigadas. Tenha a certeza de que sua atuação tem sido importantíssima para a construção de um Estado democrático de Direito em nosso país”.
O que está em jogo não são os rapazes de Brasília ou o proprietário da Escola Base, mas princípios de direitos individuais que têm de ser seguidos, seja qual for o episódio, seja qual for o criminoso, se aspiramos, de fato, a nos tornar uma nação civilizada.
Outro engano é supor que a busca do sensacionalismo barato é inerente ao exercício do moderno jornalismo.
Recentemente, Boni -o homem da TV Globo- proibiu cenas escabrosas nos seus programas populares.
Moralismo? Nada disso. Confiança no próprio taco, crença de que é possível manter a atenção do espectador sem baixar a qualidade.
O jornalista que decide pelo enfoque sensacionalista da matéria o faz pela incapacidade de buscar um enfoque original e de qualidade. É o casamento da intolerância com a incapacidade.
Ao sonegar dados que possam “humanizar” os acusados, sabe ele aquilatar as consequências de seus atos? Dá-se conta de que está revolvendo os sentimentos mais baixos da opinião pública, o lado mais tétrico dos leitores, esse impulso animalesco rumo ao linchamento que em nada diferencia linchadores de assassinos, leitores sôfregos por vingança (não por justiça) de integrantes de torcidas organizadas de clubes de futebol?
Pergunto: é essa a sociedade que buscamos? Decididamente, não é.



quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Por que o EL PAÍS decidiu publicar as mensagens da Lava Jato vazadas ao ‘The Intercept’


Do El País:


EDITORAIS 

Por que o EL PAÍS decidiu publicar as mensagens da Lava Jato vazadas ao ‘The Intercept’

A investigação contra corrupção mais importante da história recente do Brasil merece ter o escrutínio da sociedade


Deltan Dallagnol
Deltan Dallagnol. coordenador da força-tarefa da Lava Jato. 
A partir desta terça, o EL PAÍS publica uma série de reportagens sobre a Operação Lava Jato. Tudo tem como base as mensagens privadas trocadas entre os procuradores e também com o então juiz Sergio Moro que chegaram ao The Intercept. A publicação do material em parceria com o site é de evidente interesse público. À luz dos diálogos, o agora ministro da Justiça e o procurador Deltan Dallagnol se tornam protagonistas de uma trama que revela as zonas cinzentas do funcionamento do Judiciário, onde as linhas que separam o que é ilegal, imoral e legítimo sob os olhos da Justiça e da opinião pública se confundem. Discutir esses limites e o papel das instituições de controle, como os conselhos da magistratura e do Ministério Público, é crucial para a sociedade.
É certo que a maior parte do país está orgulhosa dos passos dados pela Lava Jato, mas também é certo que estamos mergulhados em uma feroz polarização política que só será superada se o combate à corrupção for escorado em uma Justiça equânime e respeitosa do devido processo legal, que assim seja reconhecida. Dois erros não fazem um acerto e só abraçando essa máxima o Brasil pode se livrar de um danoso vale-tudo institucional.
Quanto à discussão sobre a origem das mensagens — analisadas pelo The Intercept, pela Folha, pela Veja e agora pelo EL PAÍS—, o jornal reitera que não paga para conseguir informações sigilosas nem estimula atos criminosos para tal. Não se furta, porém, de apresentar a seus leitores um cabedal de notório interesse jornalístico, independentemente da forma que tenha chegado à imprensa protegido pelo sigilo de fonte.
Como o EL PAÍS disse a seus leitores globais quando decidiu publicar os vazamentos diplomáticos do Wikileaks, em 2010, os jornais têm muitas obrigações em uma sociedade democrática: responsabilidade, confiabilidade, equilíbrio e compromisso ante os cidadãos. Não estava e não está entre elas proteger os agentes públicos e os poderosos em geral de revelações embaraçosas.