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terça-feira, 27 de agosto de 2019

Não são as Forças Armadas que irão salvar a Amazônia... Por Antônio Martins



Sete medidas certeiras que o Brasil poderia adotar para defender a Amazônia, se o governo não fizesse apenas teatro. E uma questão intrincada: como enfrentar, além de um presidente primitivo, o projeto de desmonte da Nação que se esconde por trás dele?

Por Antonio Martins | Imagem: Cristopher R. W. NevinsonReturning to the Trenches(1914)
Mais uma vez, os militares teriam contido o delírio do governo Bolsonaro. Na quinta-feira,especula hoje o Valor, em texto bem apurado e verossímil, os ministros Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, interromperam o surto que levava o Palácio do Planalto a negar o forte aumento das queimadas na Amazônia. Uma reunião ministerial de emergência definiu que era preciso mudar o discurso, para salvar as aparências. Vinte e quatro horas depois, o ex-capitão reconhecia, em rede nacional de TV, que o problema é real. Contudo, anunciava resposta controversa: em vez de medidas estruturais em defesa da floresta, nova ampliação dos atributos das Forças Armadas, em operação aparatosa de “garantia da lei e da ordem” (GLO).
Apesar de precária ao extremo, a fala teve algum efeito midiático, por dois motivos. Os meios de comunicação tradicionais comportam-se, diante de Bolsonaro, como o grande poder econômico. Embora incomodem-se com o comportamento protofascista do presidente e possam, em certas circunstâncias, alfinetá-lo, não estão dispostos a corroer seu poder: veem nele o único personagem hoje capaz de realizar seu programa de contrarreformas. Segundo, e igualmente importante: o Estado e a sociedade brasileira têm, a seu dispor, um leque de políticas plenamente capaz de frear os incêndios, reduzir a devastação da Amazônia de modo drástico e alcançar, em algum tempo, o desmatamento zero. Contudo, elas contrariam não apenas a truculência e as patetadas do presidente mas, também, o desmanche dos serviços públicos, propugnado pelo projeto neoliberal hoje hegemônico. Por isso, quase não há debate sobre tais políticas na velha mídia. Resgatá-las é um primeiro passo para enxergar que há – também em relação à Amazônia e ao Ambiente – outro país possível. Eis algumas delas:

1. Recompor o Orçamento do Ministério do Meio Ambiente

A devastação da Amazônia não é nem inevitável, nem constante. Ela avança ou reflui em função das políticas de proteção à floresta. Entre 2004 e 2012, lembra o economista Ricardo Abramovay, o esforço brasileiro de combate às queimadas foi considerado, pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC-ONU) como a contribuição mais relevante, em todo o planeta, à luta contra o aquecimento global.
Foi o resultado de um leque de aprendizados e esforços, alguns dos quais estão descritos nos itens a seguir. Custou relativamente pouco. Em 2013, depois de crescer por quatro anos seguidos, o orçamento do ministério do Meio Ambiente (MMA) chegou ao máximo: R$ 5,05 bilhões – 30% menos do que lucrou, só no primeiro trimestre de 2019, o maior banco privado nacional.
Em seguida, porém, começa o desmonte. O MMA perde recursos no final do governo Dilma, permanece enfraquecido sob Temer e chega ao fundo do poço com Bolsonaro. A partir de recursos já minguados, o ministério da Economia aplica, em maio, um novo corte de R$ 187 milhões. A redução afeta todos os programas de defesa ambiental – e repercute especialmente no Ibama. A saída é simples e viável. Recompor os níveis de 2013 custaria o equivalente a apenas três dias de pagamento da dívida pública. Mas um dos objetivos centrais do pensamento neoliberal é preciso limitar ao máximo o gasto social do Estado. A Amazônia é vítima desta concepção – tanto quanto da estupidez do presidente.

2. Reverter o desmonte do Ibama

A redução à metade do orçamento atingiu fortemente todos os programas do MMA. Segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (SIOP), obtidos pelo PSOL, a Fiscalização Ambiental e Combate a Incêndios Florestais perdeu 38% dos recursos e a implementação da Política Nacional sobre Mudança de Clima, 95%.
Mas o dano não foi apenas financeiro. Aos cem dias do governo, um estudo do Greenpeacedetalhou dezenas de medidas que, tomadas por atos rotineiros – simples “canetadas” do presidente, sem consulta alguma à sociedade ou ao Congresso – afetavam a proteção ao ambiente. São medidas provisórias, decretos, simples portarias. Extinguem órgãos fiscalizadores. Facilitam questionar e anular multas. Favorecem responsáveis por crimes socioambientais (a Vale, por exemplo). Desmontam ou descaracterizam conselhos. Relaxam medidas de controle (sobre os agrotóxicos, por exemplo). Desestruturam, em especial, os dois órgãos cruciais para aplicação das medidas protetivas à natureza: O Instituto Chico Mendes (ICMBio) e o Ibama.
Uma matéria de Ana Carolina Amaral, na Folha de S.Paulo detalha, em particular, os ataques a estes órgãos. De seus 27 superintendentes, 21 foram exonerados pelo ministro Ricardo Salles em fevereiro. Em abril, depois de ameaçar dirigentes do ICMBio, ele trocou toda sua direção por militares. Em maio, determinou que o Ibama anunciasse antecipadamente os locais onde fará suas fiscalizações, reduzindo-as a pantomimas.
Reverter qualquer uma destas dezenas de decisões teria efeitos muito mais concretos que a decretar a GLO. No momento estes atos simples estão bloqueados pela precariedade do debate nacional sobre o tema.

3. Criar condições para a volta do Fundo Amazônia

A retirada da Noruega e da Alemanha do Fundo Amazônia, há algumas semanas, foi tratada por Bolsonaro como uma desfeita. O presidente tentou, além disso, fazer crer que o fundo era uma tentativa de intervenção externa em assuntos brasileiros – e que havia algo positivo em seu esvaziamento. Esta narrativa agride os fatos.
O Fundo Amazônia foi uma criação do Brasil, anunciada em 2007, numa reunião em Bali (Indonésia) preparatória para a Conferência de Paris sobre o Clima. Num momento em que o país tinha protagonismo nas negociações climáticas internacionais, e em que seu esforço para reduzir as queimadas na Amazônia era reconhecido, funcionou como um apoio financeiro complementar aos investimentos de preservação já feitos pelo país. Já assegurou recursos de US$ 3,4 bilhões, direcionados a 103 projetos de  monitoramento, prevenção e combate ao desmatamento e administrados por órgãos federais, governos estaduais, universidades e sociedade civil.
Noruega e Alemanha retiraram-se do Fundo devido a seu completo desvirtuamento. Em maio, o ministro Ricardo Salles afirmou que uma das destinações dos recursos seria “compensar” financeiramente proprietários rurais que tivessem invadido áreas de preservação – e que cobrassem “indenizações”. À mesma época, o próprio Sales anunciou que interviria no Cofa – o Comitê Orientador no fundo. Hoje tripartite – governo federal, Estados e sociedade civil – o órgão seria inflado por indicações do governo Bolsonaro. Diante de sua total descaracterização, Noruega e Alemanha descomprometeram-se.
O Fundo Amazônia é uma pequena mostra do que deveriam ser os mecanismos globais de transferência de riqueza, para resolver questões que transcendem as esferas nacionais. Problemas contemporâneos como as pandemias, as crises financeiras e em especial as mudanças climáticas não podem ser resolvidos no âmbito de cada país. Num mundo desigual, é justo que haja redistribuição de riquezas para enfrentar tais desafios. Os recursos do Fundo são relativamente reduzidos, diante do próprio orçamento brasileiro. Mas podem ser cruciais, enquanto há, na sociedade, correlação de força para uma vasta reforma tributária que multiplique a ação do MMA. Ou mesmo para revogar a Emenda Constitucional 95, que congelou por vinte anos o gasto social.

4. Volta das multas e outras sanções aos desmatadores

Uma contradição flagrante marca a repressão ao desmatamento, em 2019. Houve aumento de 82% nas queimadas. Porém, a quantidade de multas aplicadas pelo Ibama é a mais baixa, desde 1995. Além disso, surgiram sinais de que, estimulados pela certeza de cobertura governamental, fazendeiros agiram em quadrilha para executar atividades criminosas, como o chamado “dia do fogo”.
A redução das sanções, que cria sensação de impunidade e estimula as queimadas, não é casual. Desde o início do governo, tanto o presidente da República quanto Ricardo Salles fizeram, em seguidas declarações, alusão a uma suposta “indústria de multas”, que precisaria ser freada. Pior: o presidente ordenou que deixassem de ser cumpridas disposições como o artigo 111, do decreto 6514, de 2008, que prevê a destruição de todas as máquinas e equipamentos usados em atividades ilegais contra o meio ambiente. E, em ato simbólico de enorme significado, o Ibamaexonerou o servidor que multou, em 2002, o então deputado Jair Bolsonaro, por pesca proibida.
Multar os devastadores é instrumentos essencial para preservar a floresta. Avanços tecnológicos recentes permitem tonar ainda mais eficaz esta política. Graças ao Cadastro Ambiental Rural, criado em 2012, e a um monitoramento por satélites muito mais detalhado, já é possível identificar as propriedades rurais em que se fazem as queimadas e multá-las “da mesma forma que os radares multam motoristas infratores”, afirma o engenheiro florestal Tasso Azevedo, criador do projeto MapBiomas.
Que crédito merece um presidente que fala em “mobilizar as Forças Armadas” depois de desmoralizar este dispositivo preventivo poderosíssimo?

5. Restaurar a autoridade do INPE sobre o monitoramento de queimadas

Uma série de três reportagens do jornalista Raimundo Pereira expõe, em detalhes (1 2 3), o bizarro ataque do governo Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e ao Sistema Deter, que monitora há anos as queimadas na Amazônia. O fato mais notório é a demissão do cientista Ricardo Galvão, que presidia o instituto até julho.
O que incomodou o presidente foi a revelação de que, a partir de junho, os incêndios na floresta haviam assumido proporção inédita, devido à série de fatos reportada acima. Bolsonaro pediu que as informações sobre desmatamento (que são públicas) fossem levadas a sua consideração, antes de divulgadas. Depois, quando ficou claro o ridículo da proposta, questionou a precisão do monitoramento do INPE, exonerou Galvão e tomou as primeiras providências para que o órgão público seja substituído por uma empresa privada. Em matéria em O Eco, a jornalista Cristiana Prizibisczki demonstra que o edital para contratá-la é dirigido para levar à escolha da empresa norte-americana Planet.
Em entrevista à jornalista Petria Chaves, neste domingo, o economista Ricardo Abramovayexplica: a eventual mudança desperdiçaria um esforço brasileiro singular. Ao longo do tempo, o INPE desenvolveu técnicas para converter os dados brutos e incompreensíveis oferecidos pelos satélites em informações cada vez mais precisas sobre as queimadas, seu volume, sua localização precisa. Como visto no item acima, este conhecimento é uma ferramenta poderosa para dissuadir os incêndios, ameaçando de punição quem os pratica.

6. Revogar a MP da Liberdade Econômica

Conhecida como “Medida Provisória da Liberdade Econômica”, a MP 881/2009 foi vista pela mídia como “modernizadora” e “desburocratizante”. Seu sentido é outro. Em seus princípios, ela tenta restringir a regulação da Economia pelo Estado e sociedade. Em suas medidas concretas, elimina uma série de direitos sociais e ambientais. O fim do descanso dos trabalhadores aos domingos, que o Senado evitou ao final, é apenas um deles.
No capítulo ambiental, a MP prevê (artigo 3º), a dispensa de qualquer tipo de licença ambiental para “atividades econômicas de baixo risco” – deixando para o Executivo a tarefa de definir o que são. Também estabelece que certas autorizações ambientais sejam concedidas por decurso de prazo — ou seja, se o órgão responsável não cumprir o prazo estipulado a licença será concedida automaticamente. Num cenário de desmonte dos serviços públicos, é fácil prever as consequências. “Aos governos que não interessar uma boa gestão ambiental, bastará sucatear os órgãos para acelerar as autorizações”, lembra Adriana Ramos, especialista em políticas públicas do Instituto Socioambiental (ISA).
A MP 881, que tramitou sem nenhum debate público, é um novo favor às grandes corporações e um ataque direto aos direitos sociais e ambientais. Uma nova política em favor da Amazônia e das maiorias incluirá sua revogação.

7. Defender os recursos necessários para a dignidade das Forças Armadas

Suprema ironia: o governo que pensa ser possível controlar os incêndios na Amazônia com emprego das Forças Armadas é o mesmo que está dizimando a capacidade de mobilização do Exército, Marinha e Aeronáutica. A notícia foi dada em 17 de agosto, quando a política de “ajuste fiscal” imposta pelo ministro Paulo Guedes derrubou a previsão do PIB e deflagrou mais cortes no Orçamento. Estima-se agora que 25 mil, dos 80 mil recrutas hoje mobilizados em todo o país, voltarão para casa em outubro; que haverá expediente reduzido para os que permanecerem; e que estes poderão ser dispensados à hora do almoço, já que não haverá recursos sequer para pagar suas refeições.
A defesa da Amazônia exige medidas preventivas, que foram negligenciadas sistematicamente pelo governo Bolsonaro e cuja responsabilidade não é das Forças Armadas. Secundariamente, porém – e como paliativo, para combater incêndios já deflagrados –, seu esforço é relevante e muito bem-vindo. Afastar os militares da Segurança Pública, para a qual não estão preparados; identificar ações estratégicas que podem desempenhar em tempos de paz (da proteção às áreas indígenas e aos biomas brasileiros à construção de obras de infraestrutura) é decisivo tanto para preservar a democracia quanto para pensar um novo projeto de país.
Por isso vale defender, com ênfase, os recursos necessários para a ação das Forças Armadas; e livrá-las da humilhação a que são submetidas pelos cortes decretados por Paulo Guedes e sancionados por seu chefe.
Por isso, qualquer política futura voltada a preservar a Amazônia precisa incluir uma medida simples: a restauração da autoridade do INPE sobre as queimadas; a preservação de suas conquistas tecnológicas e, como gesto simbólico de grande relevância, a recondução de Ricardo Galvão a seu posto.
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sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Só mobilização popular pode reverter “colapso da democracia”, diz cientista social




Autor de livro sobre o tema, Luis Felipe Miguel vê o Brasil caminhando para endurecimento paulatino do regime


Protestos em 15 de maio contra os cortes na educação no governo Bolsonaro / Felipe Iruatã / Mídia Ninja

do Brasil de Fato

Só mobilização popular pode reverter “colapso da democracia”, diz cientista social

por Marcos Hermanson
Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Natural do Rio de Janeiro, Luís Felipe Miguel (52) é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB). Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ele é também mestre e doutor em ciência política e ciências sociais pela UNB e pela Unicamp, respectivamente.
Autor de livros como “Consenso e conflito na democracia contemporânea” (Editora Unesp, 2017) e “Dominação e resistência” (Boitempo, 2018), Miguel lança agora, pela editora Expressão Popular, “O Colapso da Democracia no Brasil”.
Em 216 páginas, o carioca tenta explicar o período que vai da redemocratização do país – cujo marco é a Constituição de 88 – ao golpe de 2016, quando os alicerces democráticos voltaram a ruir.
“Tudo aquilo que, com esforço, fora construído a partir do final da ditadura militar, em termos de democracia e de promoção da justiça social, foi destruído em pouco tempo”, diz ele, referindo-se à devastação promovida pelos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PSL).
“Como na antiga canção de Caetano Veloso, estamos ‘na ruína de uma escola em construção’: o que se desmonta jamais esteve inteiro”, escreve Miguel no livro.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, ele diz que o Brasil caminha “paulatinamente” para um endurecimento do regime e que apenas a mobilização popular terá força para reverter o quadro.
“Não acredito que estejamos condenados. Agora, para reverter isso, é importante entender que é necessária a mobilização popular. Não vai ser depositando as nossas energias completamente nas instituições políticas formais, porque essas instituições já mostraram que estão a serviço da classe dominante”, diz.

Para Miguel, o caminho de “acomodação de forças” trilhado pelo ex-presidente Lula durante seu governo foi necessário e deu resultados importantes, mas foi também um limitador. “Quando as tensões começam a surgir, o lulismo está despreparado para resistir”, conclui.
Confira abaixo a entrevista:
Brasil de Fato – Em um trecho do seu livro, você diz que “vivemos um momento entre uma democracia que está morrendo e uma ditadura que ainda não pode ser”. O que isso significa?
Luís Felipe Miguel – Nos últimos anos a gente viu um fechamento do espaço para o real funcionamento de instituições democráticas no Brasil. Mesmo pensando em termos de uma democracia procedimental e eleitoral. Mas ainda não existe a possibilidade – e é por isso que eu falo de uma ditadura que não pode ser – de se abrir mão pelo menos de uma fachada de democracia.
Por que não existe essa possibilidade?
Porque a gente vive em um ambiente, tanto nacional quanto internacional, em que se entende que isso é necessário para dar legitimidade ao sistema. O Brasil sofre consequências dos governos pós-golpe, sobretudo do governo Bolsonaro, perdendo sua capacidade de ser aceito como parceiro nos diálogos internacionais. Isso ocorre ainda que o governo mantenha uma fachada de respeito às instituições democráticas. Se essa fachada se perde, o custo é maior ainda.
Essa fachada consiste no que, exatamente?
Por exemplo, o golpe contra a presidente Dilma foi travestido de impeachment constitucional. Bolsonaro chegou ao poder pelo voto em uma eleição que, no entanto, foi atingida na sua legitimidade pelo impedimento arbitrário do lançamento da candidatura do presidente Lula, mas esse impedimento também fingiu obedecer a um procedimento legal.
Ninguém diz que está rasgando a Constituição, mas o nosso judiciário garante o cumprimento da Constituição de forma completamente incerta, dependendo de caso para caso. Conforme o tempo passa, fica mais difícil manter essa fachada, porque as evidências de que a própria ordem da democracia liberal foi subvertida ficam cada vez maiores. Eu acho que o caso da Vaza Jato é o exemplo máximo disso. 04:48 Mas existe ainda o esforço de manter a fachada do império da lei, do estado de direito e da democracia liberal.
Mas vai haver, então, um endurecimento do regime?
Eu acho que existe um processo de endurecimento acontecendo. Ele é paulatino, não é linear, mas está acontecendo. O fato de que Bolsonaro assumiu a presidência significa um passo além – em relação ao governo Temer – no projeto antidemocrático vinculado ao golpe.
As elites econômicas mantêm uma relação muito ambígua com o bolsonarismo porque, ao mesmo tempo que grandes setores ficam incomodados com os excessos, por outro lado Bolsonaro está sendo um instrumento para realizar uma parte importante do seu programa.
Privatização, arrancada de direitos da classe trabalhadora, desnacionalização da economia… Agora permitem que chegue ao governo alguém que está fragilizando ainda mais as instituições democráticas e os direitos individuais próprios do liberalismo.
A gente tem visto declarações claras no sentido do aparelhamento do Estado a favor de determinados grupos, de censura. Nós vemos a perseguição dentro e fora do próprio aparelho do Estado, o aumento da violência policial contra movimentos da oposição, da sociedade civil, de partidos da oposição.
Então a gente está vivendo uma escalada de redução do espaço da democracia e de liberalismo político que tinha sido construído no Brasil a partir do final da ditadura. Outro elemento desse processo é um protagonismo maior do exército e das polícias na política brasileira. Há dez anos, os generais não estavam nas páginas de política. Hoje a gente não pode acompanhar a política brasileira sem conhecer o nome de pelo menos meia dúzia de generais.
Existe uma redução do espaço de liberdade democrática. Eu não sei se isso vai culminar em algum evento emblemático, como um novo golpe, ou se vamos continuar nesse deslizamento na direção de menos democracia.
Em declarações recentes, o ministro Gilmar Mendes, do STF, criticou a Operação Lava Jato. Também o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), fez críticas duras ao governo, ao mesmo tempo que as casas do Congresso foram responsáveis por impor algumas derrotas a medidas provisórias e outras iniciativas do governo. Como o senhor enxerga essa disputa entre os poderes?
A partir do momento em que o grande bloco que se uniu para derrubar a presidente Dilma chega ao poder, suas diferenças internas vão aparecendo, porque ele nunca foi homogêneo. Os interesses da velha política, personificada por gente como Romero Jucá ou o próprio Rodrigo Maia, não eram os mesmos desses procuradores e juízes messiânicos da Lava Jato.
O próprio Supremo é dividido em uma ala mais próxima da velha política, que o próprio Gilmar representa, e uma ala mais próxima desse messianismo judiciário do qual o Barroso se tornou porta-voz.
A gente está vendo esse jogo de forças dentro da coalizão que deu o golpe. Mas no que é o programa geral do golpe, que é impedir que o campo popular seja aceito como interlocutor no jogo político, eles continuam todos juntos.
Não existe nenhum passo significativo para recompor as condições de que a esquerda seja levada em conta no debate. Pelo contrário. O que se vê é que nas questões programáticas chave – como por exemplo a desnacionalização da economia, a redução do papel do Estado, a desresponsabilização do Estado com as políticas sociais – eles continuam absolutamente alinhados.
Eu acho que nesse momento existe uma tensão entre o grupo vinculado ao Bolsonaro, disposto a dar passos mais claros na direção do fechamento autoritário, e o grupo do qual o Rodrigo Maia se tornou porta voz, com Gilmar no judiciário, que quer algo mais moderado.
Essa tensão existe, mas com todos contra o campo popular. E no momento em que o campo popular reaparece com alguma força eu não tenho dúvida de que eles não tem dificuldade de se reunir.
O senhor diz no livro também que “em meados de 2019, o campo democrático popular permanece em situação de atordoamento”. A esquerda está fora da disputa política?
O nosso lado apanhou tanto e tão forte nesses últimos anos que está com dificuldade de construir uma resposta.
Desde a capitulação no início do segundo mandato da Dilma, nós estamos tendo uma onda enorme de perdas de políticas sociais, direitos, legislação protetora, e mostrando uma capacidade de reação muito pequena.
Essa aprovação a jato da reforma da Previdência, por exemplo, enfrenta uma mobilização contrária muitíssimo inferior aquilo que isso representa em termos da ampliação do sofrimento dos mais pobres.
Existe uma tentação a se incorporar ao discurso da oposição de centro-direita e colocar os absurdos do Bolsonaro como sendo o nosso inimigo número um. Então a esquerda ainda está tateando, em parte porque o período dos governos do PT foi um período de profunda desmobilização.
Fazia parte do acordo que permitiu ao PT governar um esfriamento da mobilização política popular, e isso está cobrando um preço agora.
Em seu livro, o senhor também escreve que “a alternância no poder, representada pelos governos do PT, mesmo com as concessões que se fizeram necessárias, parecia ser a prova final de que tínhamos uma democracia eleitoral funcionando a pleno vapor”. Essas concessões eram necessárias ou contribuíram para as derrotas da esquerda nos últimos anos?
Eu acho que foram necessárias e contribuíram para as derrotas. O lulismo teve uma compreensão muito realista sobre a luta eleitoral e política no Brasil. O lulismo entendeu que não havia força para enfrentar os grandes interesses historicamente privilegiados no país e buscou um caminho de acomodação que permitiria tranquilizar esses grandes interesses e ao mesmo tempo fazer políticas que beneficiassem a imensa massa de miseráveis do país.
Eu não tenho como dizer que esse diagnóstico está errado, então era necessário apaziguar para implementar aquelas políticas. 17:44 Quando as tensões começam a surgir, o lulismo está despreparado para resistir às pressões, porque uma parte da conta era desmobilizar os movimentos. Era parte do acordo que permitia ao PT governar.
Eu diria que o principal problema da gestão política durante os governos do PT foi não tentar aproveitar alguns momentos em que essa possibilidade existiu para mudar a correlação de forças. Quando a economia estava de vento em popa, quando a popularidade do Lula estava enorme, quando ele era capaz de angariar um grande apoio no Congresso, ele poderia ter dado passos no sentido de melhorar estruturalmente a posição da esquerda nessas batalhas.
Tem como reverter essa crise da democracia? Qual é o papel do campo democrático popular?
Todo processo histórico é reversível. Não acredito que estejamos condenados. Agora, para reverter isso, é importante entender que é necessária a mobilização popular. Não vai ser depositando as nossas energias completamente nas instituições políticas formais porque essas instituições já mostraram que estão a serviço da classe dominante.
Essas instituições só vão responder às demandas do campo democrático popular se houver pressão do lado de fora delas. É necessário romper com a acomodação que fez com que a gente jogasse praticamente todas as fichas na política institucional.
O senhor pode tentar responder sinteticamente a pergunta que você faz no seu próprio livro? “Como foi possível que o regime democrático e o sistema de direitos construídos no Brasil ao longo de mais de duas décadas ruíssem em tão curto prazo?”
A resposta é que nenhum sistema legal de direitos sobrevive simplesmente por estar enunciado em um pedaço de papel. É necessário ter força na sociedade para garantir a vigência desses direitos. Se os grupos dominados não têm força para garantir que os direitos que os beneficiam vão vigorar, esses direitos tendem a ser varridos.
A gente teve uma fé grande demais de que as instituições permaneceriam funcionando simplesmente pelo peso de sua própria existência, e isso não ocorre.
Edição: João Paulo Soares

terça-feira, 20 de novembro de 2018

STF deve(ria) garantir o Estado de Direito, por Jorge Rubem Folena de Oliveira





GGN. - O mundo está em transe. Por todos os cantos deparamo-nos com as propostas de restrição de direitos fundamentais, num claro sinal de que o sistema político liberal atravessa uma profunda crise, na medida em que não está conseguindo manter com segurança o Estado Democrático de Direito nem prover os meios mínimos necessários para que as pessoas possam viver em paz e com dignidade.
Ao contrário do que têm sustentado importantes expoentes do constitucionalismo contemporâneo (alguns inclusive com relevantes serviços prestados na retomada da democracia no Brasil [1]), já existe uma clara ruptura da ordem política.
Isto porque, em decorrência de interesses inerentes ao patrimonialismo, permitiu-se, com passividade e cumplicidade das instituições políticas[2], que fossem desferidos ataques diretos à Constituição, como observado no caso brasileiro, desde a aventura do processo político e jurídico que culminou no impedimento de Dilma Roussef e seu consequente afastamento da Presidência da República, em maio de 2016.
A partir daí, ocorreu a ruptura nacional que conduziu ao enfraquecimento da democracia brasileira; os sucessivos cortes de direitos sociais que se seguiram permitiram a ampliação das desigualdades sociais. Uma das vertentes dessa ruptura é representada pela Emenda Constitucional 95, de 2016, apelidada de “Emenda da Morte”, por congelar por 20 anos os investimentos em direitos essenciais à vida, como saúde, educação, ciência e tecnologia e segurança.
No final de 2018, com o resultado das eleições, vimos que a grande maioria dos liberais (tanto os que se fizeram de indiferentes ou os que participaram, direta ou indiretamente, da trama retórica[3] que possibilitou, a partir de maio de 2016, o “desmanche da Constituição e das Instituições”[4]), foram varridos do cenário político[5] e os Poderes Legislativo e Judiciário tornaram-se enfraquecidos, diante da figura do misticismo que se tenta impor acima de tudo e de todos.  
Considero importante para este ensaio o resgate da obra de Montesquieu[6], não apenas por tratar-se de um autor clássico das ciências sociais, mas especialmente por verificarmos cada vez mais a atualidade do seu pensamento, ao afirmar que só existe democracia onde há igualdade. Como demonstrou Montesquieu, sociedades desiguais abrem caminhos para a instalação de regimes despóticos e tiranos, que se alimentam do medo e do terror para se afirmarem.
O que se mais observa no mundo, na atualidade, é a desigualdade social decorrente da concentração brutal de riquezas e fontes de recursos.  A falta de igualdade e de oportunidades conduz à desesperança e a uma situação de constante temor.
Em tais situações, a população, tomada de receios em relação ao futuro e paralisada pelo medo, decide entregar seu destino nas mãos de políticos que se apresentam como fortes e propõem a implantação de um estado onde impera o discurso de violência, ódio e repressão, que conduz à tirania.
A tirania é uma forma de governo onde não existe o equilíbrio das forças políticas e sociais, base central do pensamento de Montesquieu. O autor afirma que, para que haja esse equilíbrio, é essencial a manutenção de instituições políticas[7] capazes de garantir a existência de uma sociedade frugal, onde todos possam desfrutar das riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade.
O objetivo deste trabalho é analisar o papel de intermediação que deve ser desempenhado pelo Poder Judiciário, a partir da divisão de poderes desenvolvida por Montesquieu, como instrumento capaz de assegurar o equilíbrio de forças políticas e sociais, diante de governos que se apresentam com o rótulo do nacionalismo e forte apelo moralista, os quais, porém, abusam de princípios caros ao liberalismo, doutrina construída a partir da modernidade.
Nos dias atuais, governantes manifestam, sem nenhum receio de desagradar aos cidadãos, a possibilidade de restringir liberdades individuais, como a liberdade de expressão; o direito de livre prática religiosa; a livre circulação de pessoas; o respeito à pluralidade de pensamento, gênero, raça, origem, opção sexual e convicção de ideologia.
Da mesma forma, há governos que se acham legitimados a cortar direitos sociais e deixar de efetivar investimentos em áreas de grande impacto humano, como saúde, educação, previdência e assistência social; que se consideram também com permissão  para desprezar a proteção ao meio ambiente e liberar toda sorte de abusos contra a natureza e até mesmo para “abater” indivíduos de forma sumária e sem o devido processo legal, que constitui uma das primeiras conquistas do liberalismo.
Tais comportamentos, característicos de governos que tentam se impor pela força e truculência física e moral devem ser repelidos e limitados pelo Poder Judiciário, o qual, nas palavras de Kelsen[8], é “uma espécie de contrapeso do poder legislativo e do executivo”.
Nesse encaminhamento, pode-se verificar que, apesar das suas (muitas) omissões recentes e de ter contribuído para a instalação do quadro quase permanente de violação de garantias fundamentais, o Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda detém um papel fundamental de intermediação com as forças políticas e sociais, que urge ser exercitado a fim de restabelecer o necessário equilíbrio de forças, único caminho para impedir o esgarçamento total do tecido social; ademais, o Poder Judiciário não pode fechar os olhos para a possibilidade de disrupção da ordem ora instituída, em consequência da atuação das novas forças emergentes, que não camuflam sua intenção de tornar supérfluas as instituições tais quais as conhecemos agora.
Mais do que nunca, parte expressiva da população clama e o momento político exige que o Supremo Tribunal Federal – ainda que sob ameaças diretas ou veladas – deve agir de imediato e portar-se conforme exige seu papel constitucional: qual seja, o de ser a última fronteira de proteção da democracia, a fim de impedir as ameaças que atentem contra a liberdade, a exemplo do sucedido às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 2018, no Brasil, quando juízes eleitorais ordenaram que a polícia, em cumprimento de mandados de busca e apreensão, invadisse diversos campi universitários, nos quais os corpos docentes e/ou discentes estivessem a manifestar-se contra os perigos da ideologia do fascismo, que tenta mais uma vez tomar o mundo, ao custo de conduzi-lo a um novo holocausto, já em curso com a perseguição a imigrantes e a todos os que pensam de forma diversa.
O mesmo Supremo Tribunal Federal, que, em casos anteriores, deixou uma evidente impressão de politização da justiça, finalmente manifestou sua voz, ainda que de forma tímida, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 584, proposta pela Procuradoria Geral da República.
Segundo a ministra relatora, Carmen Lúcia, que teve a sua decisão liminar referendada pelo Tribunal, “a única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais. (...) Qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia”.
Sem dúvida, a resposta do Supremo Tribunal Federal veio em boa hora e deverá ser intensificada no julgamento de outros casos pendentes de julgamento naquele Tribunal (como a questão da ampla garantia da “presunção de inocência” para todos os cidadãos), de forma a se restabelecer o equilíbrio de forças e impedir abusos contra o sistema jurídico liberal, que  tem na preservação ampla das liberdade individuais e coletivas, e também na proteção dos direitos sociais,  a marca fundamental do período histórico, a ser assegurado por um Poder Judiciário que verdadeiramente exerça o papel de intermediário entre os demais poderes políticos e a sociedade, a fim de manter não apenas o equilíbrio de forças, mas a própria democracia.
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Jorge Rubem Folena de Oliveira é advogado e cientista político. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Pós-doutor em ciências sociais (CPDA/UFRRJ), Doutor em ciência política (IUPERJ) e Mestre em Direito (UFRJ).

[1] “Nova Constituinte, somente em caso de ruptura nacional”, afirmou J. Bernardo Cabral, em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1998, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 08/11/2018.

[2] Estamos nos referindo em particular aos Poderes Legislativo e Judiciário.
[3] “Pedalada fiscal”.
[4] Folena de Oliveira, Jorge Rubem. O desmanche da Constituição e das instituições, Revista Consultor Jurídico, 13 de mar. 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-mar-13/jorge-folena-desmanche-constituica.... Acesso: 10 de nov. 2018.
[5] A referência é dirigida a parlamentares de tradicionais partidos políticos, como as siglas do velho MDB, PSDB, DEM (antes PFL) e PP, que não renovaram seus mandatos e foram vencidos por candidatos de “novas” siglas, antes inexistentes na política brasileira.
[6] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Editora Abril, Os Pensadores, 1973.
[7] Governo, Parlamento e Judiciário.
[8] KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 247