segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Ao exaltarem o criminoso torturador Ustra, Mourão e Bolsonaro expressam o pensamento predominante do Exército e das polícias. Por Luis Felipe Miguel, cientista político

 

  "Mourão nega as acusações (amplamente comprovadas) contra Ustra sem, no entanto, realmente negá-las. O sentido do seu discurso é dizer: ele fez tudo isso, mas tudo bem, é um herói mesmo assim. Isso é chocante. A hipocrisia de Mourão é tão rala, tão despreocupada de se fazer convincente, que mostra que ele não vê problema em se associar a um torturador sádico."

Bolsonaro, Ustra e Mourão. Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

POR LUIS FELIPE MIGUEL, cientista político

Eu tenho tentado dizer algo sobre as declarações de Mourão exaltando Ustra, mas até agora não consegui.

Não há surpresa em saber que Mourão caracteriza o torturador com quem alardeia ter tido “uma amizade muito próxima” como “homem de honra”, que “respeitava os direitos humanos de seus subordinados” (não sei se essa última oração é um primor de estupidez ou de esperteza, mas em qualquer dos casos é uma demonstração cabal de mau caratismo).

Mourão nega as acusações (amplamente comprovadas) contra Ustra sem, no entanto, realmente negá-las. O sentido do seu discurso é dizer: ele fez tudo isso, mas tudo bem, é um herói mesmo assim. Isso é chocante. A hipocrisia de Mourão é tão rala, tão despreocupada de se fazer convincente, que mostra que ele não vê problema em se associar a um torturador sádico.

Essa é outra faceta da questão: um sádico. A gente sabe que as forças militares tendem a uma ideologia de banalização da violência. Ainda mais quando são tecnicamente despreparadas para o exercício de suas funções e a imposição da violência crua é tudo o que lhes resta.

A tortura no Brasil não começou nem terminou com a ditadura. Os recrutas do serviço militar são torturados como parte de seu treinamento, por vezes resultando em mortes. As polícias têm na tortura uma parte central de seu modus operandi.

A democracia que tentamos construir simplesmente se omitiu de enfrentar o problema.

Eu poderia citar a velha piada do coelho, mas fico com uma tirinha da Mafalda. As crianças estão brincando de polícia e bandido e Miguelito está chorando porque foi escalado para ser bandido. Mafalda intervém a seu favor, diz que um menino tão inocente não pode ser bandido. Miguelito tira um objeto do bolso e acrescenta outro argumento em favor de sua pretensão de ser policial: “Eu até trouxe um alfinete para as torturas”.

Mas esse tipo de tortura costuma ser defendido em tons vagamente utilitaristas – a “doutrina Caligaris”, por assim dizer. Torturar o bandido para combater o crime. Ou torturar o recruta para formar o soldado. Um raciocínio baseado em premissas empiricamente falsas e moralmente repulsivas.

Pois a defesa de Ustra é pior ainda. A violência que ele perpetrava contra suas vítimas não encontra qualquer possibilidade de justificativa num utilitarismo desvirtuado. É totalmente atravessada pelo gozo de fazer sofrer. É com esse gozo que Mourão, assim como Bolsonaro, se irmana.

Já seria suficientemente triste pensar que temos, na presidência e na vice-presidência da República, dois pervertidos. Mas é muito pior do que isso.

Mourão e Bolsonaro expressam o pensamento predominante do oficialato do Exército e também das polícias.

Mourão e Bolsonaro são aceitos como parceiros – quando muito como “mal necessário” – pela nossa elite política, judiciária, econômica, jornalística. A ninguém repugna confraternizar com celerados e compactuar com seu projeto de desumanização do país, desde que os ganhos e vantagens não sejam ameaçados.

E o mais desanimador: quase 58 milhões de brasileiros escolheram Bolsonaro e Mourão para a presidência. Não venham me dizer que foram iludidos. Bolsonaro nunca escondeu seu apego à brutalidade. E a campanha de Haddad expôs o que foi a tortura durante a ditadura.

Não creio que esse apoio se explique por qualquer adesão ao utilitarismo deturpado ao qual me referi. Isso exigiria uma crença em ficções altamente elaboradas sobre a ditadura e seus adversários, muito distantes do eleitor comum.

Acho mais razoável pensar que há um apelo sedutor na desumanização completa do inimigo, tão completa que esse inimigo – o comunista, o ateu, o gay, a “abortista” – merece toda a violência que possa ser praticada contra ele. É triste pensar que estamos num país em que esse apelo cativa tanta gente. Em que não fomos capazes de disseminar os valores mais básicos, mais fundamentais, do respeito ao ser humano.

Na Folha de hoje, Angeli publica uma série de tirinhas em que pessoas comuns se justificam por atos de extrema violência. A última delas é a que reproduzo aqui, do menino com os bichinhos de pelúcia. Infelizmente, ela me parece perfeita para o dia das crianças no Brasil de 2020.

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