domingo, 1 de novembro de 2020

Em defesa do SUS, por André Roncaglia

 

A Covid-19 nos forçou a pensar novamente em externalidades, aquele espaço comum em que os direitos de propriedade ficam diluídos

Em defesa do SUS

por André Roncaglia*

A pandemia trouxe à tona a coisa pública. O vírus remendou o esgarçado espaço social compartilhado. A Covid-19 nos forçou a pensar novamente em externalidades, aquele espaço comum em que os direitos de propriedade ficam diluídos. Crises sistêmicas rejuvenescem o Estado e fazem agonizar o individualismo autorreferencial. A reação deste último é sempre intensa.

Em seu perfil no Twitter, o cientista político Adriano Gianturco entoou o cântico liberalesco no setor de saúde, com aquele moralismo característico: “A regra é simples. Se um cozinheiro ‘defende’ [a reputação de] sua comida, mas ele não come… Não tem moral para falar. Para SUS é a mesma coisa.”

Respondi, sem titubear, na mesma selva do Twitter: “Você usa o SUS e não sabe. Além do umbigo e da sua bolha há o espaço coletivo, onde epidemias e vários outros problemas sanitários que encarecem o seu plano de saúde individual são prevenidos…pelo SUS!” Ele mobilizou mais emoção do que eu. Externalidades não irritam o fígado, nem aquecem o coração de quem está protegido. O Estado infelizmente não é pop como o agro.

Novamente a “nova razão do mundo”…

O neoliberalismo se apoia na premissa de que o ambiente econômico pode ser recortado em fatias individuais sujeitas a um preço. O que superar os limites de um contrato, o Estado pode cuidar. Esta visão continuará tentando ampliar seu domínio sobre o coletivo.

É uma guerra longa contra os resquícios imaginários da ameaça soviética. Por meio de privatizações, ou de sua variante adocicada (Parcerias Público-Privadas – PPPs), esta “nova razão do mundo” vai ganhando espaço sobre o coletivo, prometendo purificar o que o Estado demonizado teria maculado: a eficiência!

Seus tentáculos ousaram ameaçar o principal mecanismo de proteção contra a pandemia: o SUS. Bolsonaro é apenas o político funcional que faz o trabalho sujo desta insensatez coletiva. Ele recuou, mas não desistirá. O desmonte avançará sobre os “palácios do povo”, os serviços e equipamentos públicos financiados pelo orçamento público.

Saúde, educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, controle de epidemias, saneamento básico, Correios etc. são manifestações do espaço coletivo, terreno de externalidades mais ou menos individualizável. Os efeitos desta dimensão coletiva continuam afetando o individual.

Depois o empresário reclama da falta de qualificação, da frequência das licenças médicas, da baixa produtividade e da dificuldade de aprendizagem produtiva. Emprega menos e paga menos impostos, sob a desculpa de não alimentar a corrupção. Imposto é, afinal, um roubo legalizado.

A verdade é que a elite não quer pagar pelo acesso do povo aos serviços “customizados” que condomínios e camarotes privados lhe garantem. Querem pagar pela Universidade apenas enquanto seus filhos estiverem lá. Gostam do SUS apenas quando seu plano de saúde não cobre sua demanda.

A diferença na qualidade das instituições entre países desenvolvidos e atrasados reside também no espírito cívico de suas elites. Não é caridade, não é bondade. É inteligência, esta capacidade humana de inter-ligar aspectos que se escondem dos nossos cinco sentidos.

As elites tendem a se transformar em plutocracias avessas ao que é coletivo. A dinâmica centro-periferia agrava a degeneração. As patologias que ocorrem no centro se transmitem à periferia com mais intensidade, tendo as elites por agentes transmissores.

Há sempre alguma “filosofia de aluguel” que dá ordem e sentido aos impulsos mais primitivos da territorialidade que herdamos de nossa condição de mamíferos. O avanço do coletivo sobre os sentimentos familiais (do clã ou da a tribo) gera ressentimentos nesta “memória biológica” mais restrita. A civilização nos convida a encontrar formas de ampliar o espaço do coletivo dentro da nossa individualidade.

A elites que deveriam dar o exemplo refugam perante esta porta estreita. Reproduzem no espírito a pobreza que amarga a vida material do povo. Sua filosofia é a meritocracia com amnésia seletiva. Heranças de riquezas tangíveis e intangíveis são ocultadas em favor de a uma virulenta carga de fantasias mobilizando o que há de mais profundo no indivíduo: seu senso de realização pessoal.

Não surpreende a força que a escola austríaca vem ganhando. Ela dá estrutura analítica e verniz acadêmico e filosófico a quem desdenha do conhecimento formal quando aplicado ao que transcende a esfera individual. Porque Olavo é filósofo e professor se estes títulos são inúteis?

O coletivo enriquece nossas elites num plano espiritual superior (no sentido de Hegel): capacidade de compartilhar. Sozinhas elas não conseguirão. A força dos impulsos é dominante. Freud e Keynes mostraram diferentes dimensões deles. O Estado pode direcionar estes impulsos.

A provocação de Gianturco sobre a os requisitos morais para a defesa do SUS, que abriu este texto, pode ser, portanto, invertida pelo espírito coletivo que deslindamos acima. A regra agora é esta: quem acha que não usa os benefícios do Estado não tem o direito de reduzi-lo, sufocá-lo ou minimizá-lo. Pode continuar usando. A gente não se importa. Estamos juntos nesta… Só pague a sua parte.

* André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do CEBRAP. É co-autor, com Paulo Gala, do livro “Brasil, uma economia que não aprende”. Twitter: @andreroncaglia. YouTube: andreroncaglia

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