sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Uma eleição como as elites planejaram; mas Boulos mudou o jogo, trazendo alento a quem preza a Democracia. Texto do sociólogo e presidente do Vox Populi Marcos Coimbra

 

"A presença de Guilherme Boulos no segundo turno da eleição na maior cidade do País é um alento para quem preza a democracia", diz o sociólogo Marcos Coimbra

Do 247:

Gulherme Boulos

Gulherme Boulos

Os resultados da eleição do dia 15 confirmam o que se esperava. Pelo menos no fundamental. Lamentavelmente.  

Dizer que é lamentável não é o mesmo que lastimar um acidente. O que ocorreu foi construído, resultou de ações conscientes, imaginadas e postas em prática com método. Houve quem quisesse que a eleição redundasse no que vemos.   

Frente à necessidade de fazer uma eleição, mas procurando os meios para que perturbasse minimamente seus interesses, a elite brasileira pôs-se a trabalhar. Conversa daqui, acerta dali, foi surgindo um desenho estranho, mas que parecia servir ao que queria. Salvo por um detalhe: foi eficaz em quase o país inteiro, mas não funcionou na maior cidade, na vitrine mais visível. Em São Paulo, a receita desandou. 

 Estamos chamando elite a um conjunto não-necessariamente articulado de interesses e forças sociais: no primeiro plano, a liderança do Congresso, a cúpula  do Judiciário e do Ministério Público, os chefes militares; na retaguarda, os barões do sistema financeiro, os “capitães da indústria” e os bilionários dos conglomerados de mídia. Os que mandam. 

 Até 2022, no mínimo, essa elite quer a permanência do bolsonarismo, por dois motivos. De um lado, por ignorância ou má fé, é incapaz de imaginar algo melhor em matéria de política econômica. De outro, vê a esquerda como ameaça. Precisa de alguém que a mantenha sob ataque.   

Em um mundo globalizado e com gente cada vez mais incômoda, disposta a boicotes e a protestar contra chefetes autoritários no Terceiro Mundo, nada melhor que fazer uma eleição. Dá a impressão de que tudo vai bem no Brasil, que tudo está em calma. A democracia sofre ameaças diárias? O desemprego e a falta de oportunidades castigam milhões? Centenas morrem diariamente de uma doença mal enfrentada? As cidades estão caindo sob o controle de esquadrões da morte e milícias? A Amazônia arde? Sim, mas “as instituições funcionam”.  

No dia 15, de acordo com o número de prefeituras conquistadas, diminuíram de tamanho o PT, o PCdoB, o PSB, o PDT e a REDE, ou seja, todos os partidos à esquerda. A única exceção é o PSOL, que ganhou duas (tinha duas e foi para quatro) e pode vencer em outras duas, no segundo turno, incluindo a cereja do bolo. Sem considerá-las, o saldo do primeiro turno, para os partidos de esquerda, é negativo em 307 prefeituras: perderam 309 e ganharam duas.  

E quem venceu, nessa métrica? De Norte a Sul do Brasil, a turma de sempre: dos velhos partidos nascidos na ditadura ao PSDB, ao Centrão e à penca de invencionices partidárias recentes. O condomínio que está no poder ficou mais sólido.  

Como realizar a mágica de, sem abalar o establishment, em plena pandemia e com uma economia aos cacos, fazer uma eleição e dar uma satisfação à opinião pública nacional e internacional, tendo um desclassificado como Bolsonaro falando e cometendo absurdos diários? Derrotando a esquerda e fortalecendo a direita?  

Foi uma construção para a qual convergiram diversas iniciativas. A começar pelo elemento surpresa: em um país preocupado com questões prementes e graves - na saúde, na economia, com as crianças sem poder ir à escola, a vida cotidiana de pernas para o ar -, marcar uma eleição. Com um sistema partidário caótico e desorganizado, encorajar a proliferação de candidaturas, tornando impossível às pessoas comuns sequer saber quem disputava (em Natal, saímos de 7 candidatos em 2016 e fomos para 14 este ano; em Curitiba, de 9 para 16; em Goiânia, de 7 para 16; em Teresina, de 7 para 13 e por aí vai....).  

Na outra ponta, diminuir o tempo de rádio e televisão à disposição das candidaturas. Pela primeira vez desde a criação do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, o tempo total foi reduzido a 10’. De uma hora, nos anos 1990, fomos agora para dez minutos. Nessa toada, na próxima eleição, quem sabe não alcançamos a perfeição: proibidos pela legislação de comprar tempo para apresentar-se e limitados a um horário gratuito que tende a zero, partidos e candidatos somem dos meios de comunicação de massa. Que se vire quem não souber usar a internet ou tiver raízes em segmentos pouco conectados. 

 Peça notável desse modelo foi a ausência de debates nas emissoras abertas de televisão. Quem esperou pelo “Debate da Globo”, que já foi o ponto alto em várias eleições, ficou a ver navios. Nada do contraditório, das críticas entre candidatos, da surpresa desses confrontos.   

Em seu jornalismo, os meios de massa levaram ao ápice a escolha pela municipalização da discussão. Candidatos às prefeituras das maiores cidades do Brasil foram convidados a discorrer a respeito de ciclovias, coleta de lixo, trânsito e temas afins. Ai de quem, na hora dedicada às “agendas dos candidatos”, ousasse tratar de temas tabus: desemprego, privatizações, reforma da previdência, ataques de Bolsonaro à democracia. Estava proibida a nacionalização do debate, o que mais interessava às pessoas.  

Fizemos uma eleição com resultado encomendado: nossa elite queria que acontecesse, mas que não provocasse marolas. Pouco tempo de campanha, superpovoamento de candidaturas, redução da propaganda ao mínimo, municipalização da pauta, ausência de debates. Pessoas com medo de se contagiar, que não foram às ruas manifestar-se. Era para ser uma eleição que não abrisse a porta à mudança, que favorecesse a continuidade e assuntos administrativos de baixa octanagem. Uma eleição despreocupada em levar os eleitores a votar, que não encorajasse o interesse e a participação.    

E foi. Batemos o recorde de alienação eleitoral, a soma do não comparecimento com os votos nulos e brancos. A esquerda encolheu, dando fôlego ao discurso do “centro democrático” na próxima eleição. Na extrema direita, a elite apostou que a imbecilidade bolsonarista se desfaria sozinha. E acertou, pois o capitão terminou minúsculo, com seu dedo podre contagiando os que queria beneficiar e se tornando a piada do primeiro turno.    

Bom é que há o segundo. O retrato final da eleição não está pronto.  

E há o grande fato do primeiro. A presença de Guilherme Boulos no segundo turno da eleição na maior cidade do País é um alento para quem preza a democracia. Mostra que, por mais competente que se seja na costura de uma camisa de força autoritária, sempre há um jogo a ser jogado.

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