sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Eugenia, fascismo, racismo, violência e genocídio, o que tudo isso tem em comum? Descubra no texto de Tony Gigliotti Bezerra, mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), bacharel em Relações Internacionais pela UnB.

 

Qual seria a relação entre conceitos aparentemente tão díspares, como eugenia, genocídio, fascismo e pandemia? Nesse artigo, vamos apresentar algumas das interrelações possíveis entre esses diversos conceitos e como eles podem nos ajudar a compreender a sociedade atual. 


Do site Justificando:




Terça-feira, 4 de agosto de 2020

Eugenia, fascismo e genocídio o que tudo isso tem em comum?

BG: Tomaz Silva / Agência Brasil – Imagem: Alan Santos / PR – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando

Primeiramente, cabe destacar que a eugenia é uma visão segundo a qual existiria uma ou mais raça superiores e, no interior dessa raça, algumas pessoas com características superiores. Esses indivíduos superiores deveriam ser estimulados a reproduzir de modo a criar uma linhagem de seres superiores. Aqueles considerados inferiores deveriam ser desestimulados a reproduzir ou até mesmo aniquilados. O termo eugenia foi criado pelo racista inglês Francis Galton, em 1883. Conforme matéria publicada na Superinteressante, “Para Galton, era necessário desestimular o coito entre humanos que a elite econômica via como vira-latas e incentivar os humanos de raça, com pedigree. Empreender um aperfeiçoamento autodirigido, para o bem do próprio povo. Em 1883, Galton deu à estratégia um nome: eugenia. Vem do grego: eu significa ‘bom’, gene significa ‘linhagem’, ‘raça’, ‘parentesco’”.

A crença de que deveria haver um melhoramento progressivo de uma raça e desprezo pelos considerados inferiores pode ser observado em diversas etnias, mas a que mais inspirou os eugenistas da atualidade parece ser a da Grécia Antiga. O próprio Platão, no célebre livro “A República”, apresenta diálogos protagonizados por Sócrates em que o filósofo enfatiza ideias eugenistas. Em uma passagem flagrantemente discriminatória, Sócrates faz uma pergunta retórica e recebe uma resposta positiva do interlocutor:

“Portanto, estabelecerás na cidade médicos e juízes da espécie que dissemos, que hão de tratar, dentre os cidadãos, os que forem bem constituídos de corpo e de alma, deixarão morrer os que fisicamente não estiverem nessas condições, e mandarão matar os que forem mal conformados e incuráveis espiritualmente?

Parece-me que é o melhor, que para os próprios pacientes, quer para a cidade” (PLATÃO, 2009, p. 103).[1]

O genocídio é, de certa forma, uma decorrência da eugenia. É importante observar que ambas as palavras possuem o radical “genes”, que significa nascimento ou origem em grego. No caso da eugenia, o prefixo “eu” significa bem ou melhor. Ou seja, eugenia, em sua raiz etimológica, significaria “melhor origem” ou “bem nascido”, a raça com a melhor origem. A linhagem daqueles que possuem genes que deveriam prevalecer e deixar muitos descendentes com o objetivo de realizar o “melhoramento da raça”. No caso da república idealizada por Platão, ele sugere que a melhor linhagem de guerreiros deveria ser estimulada a reproduzir e prevalecer. 

Enquanto isso, a palavra genocídio teria surgido no fim da segunda guerra mundial e é composta pela união de “genes” com o sufixo “cídio”, originado do Latim “caedere”[2], que significa “derrubar, golpear, atacar, matar”. Ou seja, genocídio é a morte daqueles que possuem a mesma origem, a morte de um povo, de uma raça. No caso de ideias eugenistas, a prevalência da raça ou linhagem considerada superior geraria o desaparecimento das raças ou linhagens consideradas inferiores, seja porque os melhores guerreiros derrotariam militarmente os inferiores, seja porque a própria “natureza” (seleção natural) faria esse serviço. Nesse caso, condições tidas como naturais, como catástrofes naturais ou doenças levariam ao desaparecimento de raças inferiores. 

E aí que entra a atual pandemia de Covid-19. Essa doença cai como uma luva para a ideias eugenistas, tendo em vista que geraria o desaparecimento “natural” de raças consideradas inferiores, como a de algumas etnias indígenas brasileiras ou até mesmo de pessoas negras nas favelas. 

E o que o fascismo tem a ver com isso? O fascismo é uma ideologia baseada no militarismo, autoritarismo, pseudo-nacionalismo, culto irrefletido a um líder a quem se projetam ideais de bravura, força, etc. Não há dúvidas que alguns líderes políticos, como Trump e Bolsonaro, estejam relacionados à ideologia fascista, sendo que o fascismo, por sua vez, está estreitamente relacionado à eugenia. Vale lembrar que, nas décadas de 1930 e 1940, a parceria entre Mussolini e Hitler, além de ter causado a Segunda Guerra Mundial, enviou para campos de concentração pessoas de grupos considerados inferiores e nocivos para a sociedade, como negros, LGBT, judeus, pessoas com deficiência, etc. Contudo, ideias eugenistas existiam também entre os adversários do nazifascismo. Práticas eugenistas já existiam nos Estados Unidos bem antes de serem instalados campos de concentração na Alemanha ou na Polônia. Contudo, o nazi-fascismo desencadeia um aprofundamento e operacionalização de ideias eugenistas vigentes na sociedade da época, e que ressurgem com muita força agora com a reascenção do fascismo em diversos países.

“Em 1907, o Estado de Indiana adotou a primeira lei de esterilização compulsória do mundo. Entre 1907 e a década de 1960, mais de 64 mil americanos considerados “inaptos” evolutivamente foram castrados com anuência das autoridades. Eram alcoólatras, esquizofrênicos, epiléticos, criminosos, prostitutas… Essa modalidade de eugenia era chamada de negativa. Um relatório sobre o resultado da prática na Califórnia – recordista de esterilização entre os 32 Estados que a adotaram – serviu de inspiração para os oficiais nazistas que implantaram a prática do outro lado do Atlântico.”[3]

No caso específico do Brasil, essa reascenção do fascismo vem aprofundar e acelerar processos genocidas já existentes, em especial dos povos indígenas e da juventude negra e periférica. Além disso, intensifica processos de violência contra mulheres e LGBT+, o desamparo e desassistência a idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes empobrecidas. A retirada de direitos trabalhistas e previdenciários afeta as trabalhadoras e trabalhadores mais pobres. Quem ganha (ou supostamente ganha com isso) é a “melhor linhagem” de empresários e executivos de sucesso das grandes corporações capitalistas, bancos, etc. Nesse sentido, fascismo e eugenia andam juntos, produzindo morte e destruição da natureza, tudo em nome de um suposto “melhoramento da raça”, sabidamente a branca.

Nesse contexto, a Covid-19, doença resultante de um vírus altamente contagioso e potencialmente fatal, cai como uma luva nesse processo fascista de genocídio. A pandemia atua como uma catalisadora do genocídio. Os fascistas não precisariam sujar suas mãos de sangue, bastaria deixar os mais pobres sem acesso à saúde e expostos ao risco constante de contaminação pelo vírus.

O fascismo brasileiro tem a sua especificidade se comparado ao alemão ou o estadunidense. Observando as ideias do integralismo de Plínio Salgado, que é uma espécie de fascismo brasileiro, observa-se que o mais importante, para ele, não é a aniquilação das raças negras e indígenas, mas sim a aniquilação de suas culturas. Negros e indígenas poderiam sobreviver, no contexto de integralismo, desde que assimilassem os valores da cultura branca cristã capitalista. O mais importante, nessa versão abrasileirada do fascismo, é prevalência da cultura branca sobre as demais. Esse rebuscamento das ideias eugenistas podem estar relacionados ao mito da democracia racial. Algumas das ideias integralistas possuem grande influência sobre o governo atual, seja na ala olavista como no núcleo militar ou até no grupo formado por fundamentalistas religiosos.   

Apesar de tudo isso, quero terminar esse texto com uma mensagem positiva. Em meio a tudo isso, há esperança por um motivo muito simples: os fascistas que acreditam que a raça branca é superior e que os negros e indígenas estão fadados a desaparecer estão simplesmente errados. Em todos os lugares onde há tentativa de genocídio, há também resistência. 

Quando terminou formalmente a escravidão dos negros e negras, em 1888, o mote do movimento eugenista era a política de branqueamento da população brasileira por meio do estímulo a imigração europeia para o Brasil. Eles achavam que, com isso, a população negra iria, aos poucos, desaparecer ou se tornar ínfima e minoritária. Contudo, o que os dados do IBGE mostram hoje é que a maioria da população brasileira é negra. O Brasil é um dos maiores países negros do mundo e, apesar de toda a política de extermínio da juventude negra, os afro-brasileiros apresentam uma grande capacidade de resistência e resiliência, buscando, de diversos modos, preservar seus costumes e suas culturas. Os povos indígenas também desenvolvem estratégias de resistência.

Ao que tudo indica, a atual onda fascista e genocida vai passar e as populações negras e indígenas vão sobreviver, não sem lutas, não sem perdas humanas, não sem resistência. Como diz o cântico tradicional: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro.” 

Tony Gigliotti Bezerra é doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), bacharel em Relações Internacionais pela UnB. É professor e pesquisador voluntário no Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero (NEDIG), vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da UnB. É Analista Técnico-Administrativo da Secretaria Especial de Cultura.

Notas:

[1] PLATÃO, Aristocles. A República. 2ª ed. Editora Martin Claret: São Paulo, 2009.

[2] ORIGEM DA PALAVRA. Mix. Disponível em: < https://origemdapalavra.com.br/pergunta/mix-2/>. Acesso em: 25 jul. 2020.

[3] LISBOA, Marcel; VAIANO, Bruno. Eugenia não é coisa do passado. Superinteressante. Publicado em 26 fev. 2019. Disponível em: <https://super.abril.com.br/ciencia/a-longa-historia-da-eugenia/>. Acesso em: 25 jul. 2020

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