quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Xadrez da indústria das armas, a milicianização crescente e a era dos grandes assaltos, por Luis Nassif

 Bolsonaro revogou três portarias do Exército com novas regras e modernização de sistemas de marcação, controle e rastreamento de armas e munições, que permitem identificar o proprietário das balas. Essa medida era fundamental para investigar desvios de armamentos.


Jornal GGN:

Peça 1 – a relação direta entre liberação de armas e violência

Há uma infinidade de estudos, de institutos ligados à segurança pública, mostrando relações diretas entre liberação de armas e aumento do crime.

Em 2017, logo após a reação aos massacres ocorridos em escolas dos Estados Unidos, o pesquisador Thomas Conti levantou 61 pesquisas comprovando relação direta entre liberação de armas e aumento de crimes.

Os estudos comprovam apenas as análises empíricas sobre o tema. Se há mais facilidade para importar e para liberar armas, com menos fiscalização, quem tem mais possibilidades de adquirir armas: o cidadão comum ou o crime organizado?

Sem contar o aumento da violência entre cidadãos comuns. Explosões de violência no trânsito, ou em família, costumam ser resolvidas com sopapos. O que aconteceria com cidadãos armados?

Estudos da Universidade de Stanford comprovaram que a flexibilização das leis de controle de armas foram o principal fator de aumento de mortes de crianças e adolescentes por armas de fogo.

No Brasil, um levantamento da Fundação Abrinq comprovou que o número de homicídios de crianças e adolescentes por arma de fogo aumentou 113,7% em 20 anos — de 4,2 mil em 1997 para  9,1 mil em 2016. Mas a  variação do crescimento caiu a partir de 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento. A média de crescimento do número de casos era de 3%. De 2003 a 2017, foi de 1%.

Peça 2 – o financiamento da ultradireita

Aqui no GGN mostramos, em várias oportunidades, o financiamento da ultradireita mundial para a indústria de armas.

A razão é simples. Países civilizados definem regulamentos impondo restrições à indústria de armas, pelo estímulo à violência e pelas relações com o crime organizado e armado. Assim como definem restrições à indústria dos cassinos e à mineração em áreas protegidas.

Ao financiar a ultradireita, o que esses setores buscavam eram governantes dispostos a derrubar todas as regulações, próprias de países civilizados.

No post “Xadrez da indústria de armas e o financiamento da direita”, de 16.01.2019, mostramos essa relação.

“Um twitter de Carlos Bolsonaro, de 1o de novembro de 2017, já mostrava essa relação.

Carlos denuncia os “fanfarrões” que fazem propaganda da Taurus, mas usam Glock. Quando denunciados, o que fazem os fanfarrões? “Dizem que estamos dividindo a direita! O twitter é de 1o de novembro de 2017”.

O segundo twitter, de 17 de janeiro de 2017, mostra o estreitamento de relações de Eduardo Bolsonaro, com a influente NRA, a Associação Nacional de Rifles dos Estados Unidos, quando se preparava para a campanha eleitoral.

No artigo mostramos as pressões contra a NRA nos Estados Unidos, especialmente após massacres em escolas. O ponto central dos lobbies da NRA centravam-se na liberação de armas e no combate a qualquer forma de identificação dos usuários.

Em março de 2.000, quando o governo Clinton anunciou um acordo histórico com a Smith & Wesson, para que incluísse dispositivos de segurança nas armas curtas – que não disparam sem a impressão digital do proprietário – a NRA foi contra a estimulou a entrada, no país, da Beretta USA Corp, controlada pela italiana Beretta.

Depois de uma campanha desastrosa nas redes sociais, em resposta a um massacre em uma escola americana, a NRA entrou em crise nos EUA e, segundo reportagem da Bloomberg, passou a investir em relações com Brasil, Austrália e Rússia.

Em 2017, levantou US$ 312 milhões em contribuições dos fabricantes de armas, mas significou uma queda de 15% em relação a 2016. Mesmo assim, investiu US$ 55,6 milhões nas eleições, dos quais US$ 30 milhões em apoio a Donald Trump.

O pior estava por vir.

A NRA foi alvo de uma campanha pesada do governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo. A revelação das ligações com os russos ajudou a cortar os laços da NRA com a mídia norte-americana. Sem a retaguarda da mídia, e com o aumento das ações judiciais, as seguradoras passaram a ter receio de negociar com a NRA. O lobby vendia um seguro de responsabilidade civil para os associados, para cobrir atos de transgressão intencional. Mas constatou-se que usava uma apólice de seguro ilegal, o que lhe custou uma multa de US$ 7 milhões e aumentou o seu descrédito. Reguladores financeiros de NY investiram contra a NRA, espalhando o boicote pelo setor financeiro.

A reação da NRA foi um vídeo ameaçando a mídia tradicional. Mostra um homem destruindo uma televisão com uma marreta, em resposta às supostas notícias falsas. A apresentadora no canal da NRA usa uma camiseta com o slogan “Lágrimas Socialistas”. O vídeo foi visto 200 mil vezes.

Dois dias depois, aconteceu a tragédia na Flórida, com 17 alunos de uma escola secundária assassinados por um colega armado.

Associações contra as armas publicaram um anúncio de duas páginas no New York Times, denunciando 276 políticos financiados pela NRA. Ao lado, foto das crianças que deixaram a escola Marjory Stoneman Douglas durante o tiroteio. E as palavras de David Hogg, sobrevivente de 17 anos: “Nós somos as crianças. Vocês são os adultos … façam alguma coisa.

E, assim como por lá, recorreu-se a toda sorte de notícias falsas, como na inacreditável entrevista de Onix Lorenzoni à Globonews, comparando acidentes com armas a liquidificadores, manipulando estatísticas e distorcendo conclusões. Ou na entrevista de Sérgio Moro, procurando legitimar as barbaridades do governo Bolsonaro, como um óbolo a ser pago à opinião pública para conseguir passar reformas condenadas pela opinião pública. Um autêntico circo romano, sangrento e irresponsável.

Peça 3 – as mudanças na legislação

Eleito, Bolsonaro entregou rapidamente a contrapartida solicitada.

O primeiro decreto de flexibilização das armas foi promulgado no início do governo Bolsonaro, em 15 de janeiro. O decreto alterava um dispositivo do Estatuto do Desarmamento que permitia a posse de armas apenas para quem comprovasse efetiva necessidade.

Entravam nessa classificação donos de estabelecimentos comerciais, moradores de área rural ou em cidades de unidades da federação com taxa de homicídio acima de 10 por 100 mil habitantes – ou seja, todos os estados.

Em janeiro de 2019, início de governo, Bolsonaro assinou um decreto autorizando cada pessoa a adquirir até 4 armas, contra autorização anterior para 2.

Em maio de 2019, novo decreto autorizando porte de armas para 20 categorias profissionais, como caminhoneiros, advogados, detentores de mandato eletivo e conselheiros tutelares.

Em junho de 2019, as mudanças nos regulamentos passaram a permitir a compra de dois tipos de fuzis, os calibres 556 e 762.

Em janeiro de 2020, nova portaria ministerial aumentou de 50 para 200 a quantidade anual de munições por arma de fogo que poderiam ser compradas por pessoas físicas. Em abril, o limite foi levado para 600 por ano por arma. A medida foi suspensa por liminar concedida pela Justiça Federal.

Bolsonaro revogou três portarias do Exército com novas regras e modernização de sistemas de marcação, controle e rastreamento de armas e munições, que permitem identificar o proprietário das balas. Essa medida era fundamental para investigar desvios de armamentos.

No dia 20 de agosto passado, instrução normativa da Polícia Federal autorizou cada pessoa a registrar até quatro armas em seu nome. Antes, eram duas.

A instrução normativa da PF ainda autoriza o dono da arma a andar com ela pelas ruas, ao contrário das instruções anteriores, de manter apenas em casa. Também dispensou os proprietários de armas de apresentar documentos que justifiquem a necessidade de porte de armas. Ao mesmo tempo, servidores autorizados a porte de armas – magistrados, membros do Ministério Público, auditores fiscais – foram dispensados da obrigatoriedade de apresentar laudos de capacidade técnica e aptidão psicológica para manusear armas.

O número anual de registros de armas saltou de 3 mil em 2004 para 54 mil para 2019. O Instituto Sou da Paz estimava 100 mil novos registros em 2020. Não estão incluídos nesses números registros para caçadores, atiradores e colecionadores, cuja competência é do Exército.

Dados levantados pelo O Globo em julho mostram que o número de registros de CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) passou de 47.361 em 2018 para 73.788 em 2019, aumento de 55,7%.

Peça 4 – a explosão dos crimes contra a democracia

As medidas do Supremo Tribunal Federal contra o Gabinete do Ódio passaram a falsa impressão de que Bolsonaro abdicara de seus propósitos golpistas e anti-civilizatórios. Apenas mudou o estilo:

  • Anuncia-se o fim de todos os programas de saúde mental do SUS.
  • Prossegue a destruição da Amazônia, perpetrada pelo Ministro do Meio Ambiente.
  • O CADE condena o Bônus de Veiculação especificamente das Organizações Globo.
  • O Ministério da Educação interfere na autonomia de 11 universidades federais.
  • A Receita Federal afasta corregedores que investigaram Flávio Bolsonaro.
  • Juízes bolsonaristas ampliam condenações de veículos críticos a Bolsonaro.
  • O Ministério da Saúde acena com restrições à compra de vacinas chinesas.
  • Policiais e militares invadem áreas de direitos humanos e culturais, impondo o obscurantismo.

E, no pano de fundo, as organizações criminosas avançam nos quatro cantos do país.

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