terça-feira, 27 de novembro de 2018

Vídeo de deputado do PSL eleito se soma às ameaças da ultra-direita a professores




A nova ameaça partiu do candidato eleito Daniel Silveira (PSL), o mesmo que quebrou a placa em homenagem à Marielle Franco (na foto, à esquerda) - Foto: Reprodução Twitter 
 
Jornal GGNDesde o resultado das eleições 2018, com a vitória do candidato da extrema direita Jair Bolsonaro (PSL), três governadores de seu partido e uma bancada única que representará 15% de todo o Congresso Nacional, as ameaças dos próprios eleitos e de apoiadores do partido a professores vêm fazendo parte do noticiário semanal do país. Agora, foi a vez do deputado federal eleito Daniel Silveira (PSL) atacar a diretora de um colégio no Rio de Janeiro.
 
Depois do caso da deputada catarinense eleita do PSL, Ana Caroline Campagnolo, que estimulou no fim de outubro a perseguição a "professores doutrinadores" no estado, ainda no mesmo período um oficial de Justiça de Pernambuco, ex-tenente do Exército, Rogério Magalhães, convocou estudantes de Recife a mesma prática. 
 
"Estudante recifense, com a eleição de Bolsonaro, é possível que ‘professores’ doutrinadores façam de suas salas de aula verdadeiros palanques. Filme ou grave qualquer caso de doutrinação e nos envie pelo WhatsApp. Fixar ideologia política na cabeça dos alunos não é papel do verdadeiro professor", havia dito o oficial, em suas redes sociais.
 
Também no fim de outubro, professores da Universidade de Brasília (UnB) chegaram a cancelar aulas após serem ameaçados por um movimento que se intitulou "caça aos comunistas". Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma carta nomeando professores e alunos ameaçava "banir" estas pessoas do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, na primeira semana de novembro.
 
A carta intitulada "Doutrinadores e alunos que serão banidos do CFCH" chamavam os professores de "doutrinadores", "comunistas" e "ameaça à moral e aos bons costumes", e os alunos de "orientandos esquerdistas" e "exército de viados, travecos, feminazis, prostitutas e todos os tipos de degenerados". O caso teve que ser levado à Justiça, para investigação do Ministério Público.
 
Nesta semana, foi a vez do deputado federal eleito pelo PSL, Daniel Silveira, gravar um vídeo com ameaças à diretora do Colégio Estadual Dom Pedro II, Andrea Nunes Constâncio, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. "Iremos criminalizar e punir qualquer professor e diretor que esteja doutrinando adolescentes em escolas com ideologia socialista comunista", afirma, no vídeo.
 
Na ameaça, Silveira diz, ainda, que irá pedir uma auditoria da gestão de Andrea na escola porque ela criticou a permissão dada por funcionários para a entrada do parlamentar no colégio, sem autorização prévia. "Diretora, sou deputado federal e meu caráter é de fiscalizador. Posso entrar em qualquer estabelecimento sem permissão", disse, sem ser ainda deputado federal e defendendo ser capaz de uma competência que não é dele.
 
A responsabilidade por possíveis fiscalizações em gestão de colégios estaduais é do Tribunal de Contasl do Estado e da Secretaria estadual de Educação. Um parlamentar não tem essa competência. Ainda assim, mesmo que o tivesse, Daniel Silveira ainda não tomou posse.
 
"Vou solicitar uma auditoria na sua escola desde o princípio de sua gestão para ver se tudo está tão certinho", continuou, no vídeo. O candidato eleito a deputado federal disse que a visita ao colégio tinha como objetivo "a modernização do sistema de nota, falta e presença" e "ajudar a vida dos professores".
 
"Todos os professores têm o meu respeito. Professores de esquerda têm o meu desprezo. Quero deixar isso claro", seguiu, nas ameaças. "Iremos criminalizar e punir qualquer professor e diretor que esteja doutrinando adolescentes em escolas com ideologia socialista comunista. Vocês não darão mais um passo sem a gente intervir e punir vocês", concluiu.
 
Assista ao depoimento, abaixo:
 
 
Em resposta, a Direção do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE/RJ), Núcleo Petrópolis, repudiou a postura e ameaças do candidato eleito e ressaltou que "o ainda aspirante ao cargo de representante do povo não goza das prerrogativas e atribuições de tal cargo".
 
"Tal fato só torna ainda mais absurdas as declarações e ameaças de Daniel Silveira contra a diretora do CENIP, pois, ainda que já estivesse ocupando o cargo de deputado federal, o mesmo não possui o poder de adentrar a qualquer momento em unidades escolares e salas de aula, a fim de constranger e ameaçar docentes e gestores escolares", completou.
 
"É evidente, portanto, o despreparo e desconhecimento do recém eleito quanto às suas futuras atribuições como deputado federal, bem como quanto ao papel da educação e a realidade das unidades escolares no estado do Rio de Janeiro, sendo certo que suas declarações e ameaças ferem diretamente as garantias fundamentais e liberdades democráticas previstas na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), além de atentar contra a dignidade da diretora citada e os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito", concluiu a direção da SEPE Petrópolis.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Plano de Steve Bannon (que, través de Fake News e outras manipulações conseguiu eleger fantoches do Grande Capital e extrema direita como Trump e Bolsonaro) para "unificar a direita" europeia soa como interferência ilegal nas eleições, diz The Guardian



  "Steve Bannon, o empresário que ajudou a eleger Donald Trump e deu conselhos sobre campanha em mídias digitais aos filhos de Jair Bolsonaro, pretende eleger mais políticos de extrema direita na Europa e unificar lideranças e partidos no que ele tem chamado de "Movimento"."




Do Jornal GGN e do The Guardian (com vídeo):






Jornal GGN - Steve Bannon, o empresário que ajudou a eleger Donald Trump e deu conselhos sobre campanha em mídias digitais aos filhos de Jair Bolsonaro, pretende eleger mais políticos de extrema direita na Europa e unificar lideranças e partidos no que ele tem chamado de "Movimento". É o que mostra o documentário produzido pela equipe de reportagem do jornal The Guardian, divulgado nesta quarta (21) no Youtube.
O Guardian afirma que "populistas de direita estão em ascensão em toda a Europa" e com a proximidade das eleições parlamentares européias, as articulações de Bannon em alguns dos países se intensificaram nos últimos meses, exatamente após ele deixar a Casa Branca e abandonar o site Breitbart News.
O problema é que, na maioria dos Países em que Bannon pretende entrar, existem leis que proibem qualquer tipo de intervenção (seja doação em dinheiro, serviço prestado ou cooperação técnica) de estrangeiros em favor de candidatos nas eleições. The Guardian diz que as ações de Bannon "desafiam" a legalidade. 
Bannon disse que não feriu a lei nos Estados Unidos quando ajudou na eleição de Trump e respeitaria, da mesma maneira, a legislação eleitoral de países europeus.
Hoje, o empresário é alvo de reportagens polêmicas que indicam que houve uso irregular de dados do Facebook, captados por sua empresa, a Cambridge Analytica, para promover Trump nas redes sociais. Além disso, Bannon tinha participação no site especializado em espalhar fake news contra os adversários políticos do hoje presidente dos EUA.
SOBRE O "MOVIMENTO"
O Movimento foi definido pelo Guardian no documentário como a operação de uma "máquina de campanha para impulsionar a extrema direita na Europa". A ideia de Bannon é "muito simples": "unificar os movimentos patrióticos de direita na Europa".
O diretor administrativo do Movimento é o político belga Mischael Modrikamen. Ele disse à reportagem que o Movimento fará oposição em nível internacional às "forças globalistas".
"Eu acredito que esta será a linha divisória da política ocidental pelos próximos, 10, 20, 30 anos. De um lado, a abordagem globalista no estilo Macron, Merkel, Obama, e da ONU. Do outro lado, os soberanos, Salvini, Orban, Trump e basicamente o nosso Movimento."
Uma agenda em comum entre os líderes de extrema direita que aparecem no documentário como objetos de desejo de Bannon é a de frear a imigração islâmica para a Europa.
Mas há políticos falando em preservar a "identidade europeia" e valorizar os "valores cristãos, brancos e ocidentais". Quando a reportagem faz questões sobre neofacismo, neonazismo, racismo, perseguição de ordem religiosa, estes políticos demonstram desconforto, contrariedade ou abandonam a entrevista.
Guardian dá a entender que, atualmente, Salvini, líder da Liga de extrema-direita da Itália, é o principal ativo do Movimento de Bannon.
Salvini chegou ao poder com uma aliança de direita com a líder do partido Irmãos da Itália, Giorgia Meloni. Bannon foi gravado dizendo que o Irmãos da Itália "costumava ser um partido fascista e agora é neo (fascista)". Na frente de Meloni, Bannon negou que tenha associado o partido ao neofascismo.
Bannon estaria oferecendo aos partidos de direita e extrema direita ajuda com "pesquisas, análises de dados, mídias sociais, criação de "salas de guerra" para campanha eleitorais, mas isso, segundo o Guardian, "é ilegal na maioria dos países da Europa" sondados pelo empresário. De 9 países onde há ativos de interesse de Bannon, sete têm leis restritivas sobre a participação de estrangeiros na eleição e há discussão nesse sentido na Itália, onde o Movimento tem tido mais visibilidade com Salvini e Meloni.
O jornal também coloca em dúvida as intenções de Bannon, um americano, em interferir nas eleições europeis. Como isso pode ser diferente da Rússia ou da China interferindo nos Estados Unidos?
Bannon respondeu: "Eu estou fazendo isso como um populista, não como alguém associado à Casa Branca." Foi lembrado, na sequência, de que até pouco tempo atrás ele tinha um cargo junto a Trump.
POPULISMO ESTRATÉGICO
Na abertura do documentário, o editor associado do The Guardian Paul Lewis diz a Bannon que entende seu discurso como típico de um populista e avalia que o empresário adotou essa postura por "estratégia". "Você é eficaz em usar esse tipo discurso porque você entende que ele tem um poder."
"E qual o poder nisso?", responde Bannon.
"Eu acho que o poder disso vem do fato de que chegamos a um ponto na história em que a frustração das pessoas nas elites são justificadas."
Ao final, Lewis confronta Bannon. O repórter questiona se o empresário está tentando surfar no crescimento de uma "maré, não um tsunami, de direita que existe na Europa", passando a impressão de que essa onda foi criada com sua ajuda - como no caso de Trump. 
A reportagem destaca que Bannon tem tido dificuldade para costurar alianças na Europa e, em paralelo, intensificou suas aparições na imprensa e em agendas públicas, passando a impressão de que está buscando holofotes.
Recentemente, ele deu uma entrevista para a BBC, admitindo que deu conselhos à campanha de Bolsonaro. Questionado se iria convidar o presidente eleito no Brasil para fazer parte do Movimento, Bannon respondeu que Bolsonaro estará muito ocupado, nos próximos anos, governando. Mas que ofereceria ajuda quando necessário.
Leia reportagem no The Guardian.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Moro e o Estado Policial, por Jeferson Miola


Imagem relacionada

"No livro “Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo”, Rafael Valim afirma que “a exceção, ao negar a lei, principal produto da soberania popular, toma de assalto a democracia. A pretensão de um governo impessoal das leiscede lugar ao governo pessoal dos homens. O povo é destronado em favor do soberano, o que explica a afirmação de Giorgio Agambem de que a exceção é o absolutismo da contemporaneidade”. " - Jeferson Miola


Do Jornal GGN e Blog de Jeferson Miola:


por Jeferson Miola 
Sérgio Moro se encaixa com perfeição no conceito de déspota do dicionário Houaiss:

1. que ou quem exerce autoridade arbitrária ou absoluta (diz-se degovernante); tirano
2. que emprega ou quem quer que empregue de autoridade tirânica para dominar, revelando caráter autoritário
3. que ou o que exerce alguma forma de imposição ou autoritarismo, em qualquer campo
”.
Moro não é um déspota por acidente. Sua forma de agir, como autoridade dotada de poderes ilimitados que despreza a ordem constitucional e legal vigente, foi sendo legitimada e banalizada por um judiciário de exceção, permissivo com a transmutação do juiz provinciano em agente político e celebridade influente da cena brasileira.
Os tribunais superiores e o CNJ fecharam os olhos para os arbítrios e ilegalidades cometidas por ele e outros agentes da Lava Jato que pretextam o combate à corrupção para perseguirem e aniquilarem inimigos.
No livro “Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo”, Rafael Valim afirma que “a exceção, ao negar a lei, principal produto da soberania popular, toma de assalto a democracia. A pretensão de um governo impessoal das leiscede lugar ao governo pessoal dos homens. O povo é destronado em favor do soberano, o que explica a afirmação de Giorgio Agambem de que a exceção é o absolutismo da contemporaneidade”.
Valim sustenta que os estados de exceção irrompem do antagonismo entre o neoliberalismo e a ordem democrática. E conclui que, “em última análise, o estado de exceção é uma exigência do atual modelo de dominação neoliberal”, e “o soberano na contemporaneidade é o mercado”.
Para atender ao interesse do mercado e do establishment, “A fim de preservar o estado de coisas vigente, o Estado empreende uma guerra incessante contra um inimigo virtual, constantemente redefinido, do qual se retira, em alguns casos, a própria condição de pessoa, reduzindo-os a um outro genérico, total, irreal. Em síntese, o mercado define os inimigos e o Estado os combate”.
Na opinião de Valim, “o principal e mais perigoso agente da exceção no brasil é o poder judiciário”. Se poderia dizer que Sérgio Moro é o principal agente da exceção, ao passo que Lula é o inimigo definido pelo mercado para que o Estado o combata [ou o assassine].
A nomeação do Moro como ministro do Bolsonaro avaliza a narrativa de que a Lava Jato foi instrumentalizada para banir Lula da eleição presidencial e viabilizar a vitória do antipetismo.
Com Moro no ministério da justiça, o Estado de exceção tende a avançar na direção de um Estado policial, inclusive para garantir as condições ambientais e institucionais para a consecução do devastador projeto econômico que será imposto não sem enfrentar enorme resistência popular.
A historiadora francesa Maud Chirio arrisca que no dia 3 de janeiro de 2019, o MST e o MTST serão declarados organizações terroristas. No começo de fevereiro, o PT vai ser interditado. Haverá um expurgo na administração pública, que já está em preparação” [Ilustríssima da FSP, 4/11/2018].
Esta previsão, embora pareça exagerada à primeira vista, não pode ser menosprezada, pois alerta para o risco, bastante real, de introdução do terror de Estado pelo regime bolsonarista senão em 3 de janeiro, possivelmente no período sombrio que sua eleição inaugura.
Quando político de toga em Curitiba, Moro subverteu o Estado de Direito com a adoção do direito penal do inimigo e de medidas ilegais e arbitrárias, como a condução coercitiva sem recusa do acusado em depor espontaneamente; a delação premiada como método de tortura psicológica e chantagem dos denunciados; o cumprimento antecipado de pena; a destruição midiática de reputações etc.
Bolsonaro entregou a Moro um superministério com hiperpoderes e satelizado por órgãos que podem ser desvirtuados para funcionarem como polícia política.
Não surpreenderá que como super-ministro que terá formidável autoridade administrativa e poder discricionário, o despótico Moro implante dispositivos de perseguição, repressão, controle, espionagem e intimidação dos inimigos e oponentes do regime na perspectiva do Estado policial.
Não por acaso os primeiros escolhidos para sua equipe ministerial são aqueles agentes da PF e do MP mais organicamente identificados com práticas de exceção e com o extremismo de direita.
Muito se especula sobre supostos vínculos do Moro com agências do governo norte-americano que atuam justamente nas áreas por ele anunciadas como prioritárias na sua gestão: “uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado”.
Em breve este discurso do combate ao crime organizado e à corrupção” será substituído pela retórica de “combate ao inimigo interno” e aos “terroristas” que se opõem ao regime, ou seja, conjunto da cidadania, em especial os movimentos sociais, intelectuais, ativistas e militantes progressistas e de esquerda.
A implantação do Estado policial e o revigoramento do aparelho repressor que subsiste desde a ditadura é uma perspectiva absolutamente realista destes tempos sombrios em que os militares atuam com assombrosa desenvoltura.
O endurecimento autoritário do regime é, aliás, um requerimento para que o establishment consiga impor a selvagem agenda anti-povo, anti-nação e anti-democracia dos Chicago Boys e dos cônsules dos EUA que pretendem fazer do Brasil uma terra arrasada e dominada por interesses estrangeiros.







terça-feira, 20 de novembro de 2018

Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo, por Gabriel de Aguiar Tajira, para o Justificando



Os limites do liberalismo político, no Brasil, estão fundados nos conservadorismos das raízes históricas nacionais, gerando este excêntrico liberalismo à brasileira

Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo

Sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo

O discurso político liberal sempre foi oratória capaz de agregar grande adesão popular. À época da independência do Brasil Colônia, a elite política nacional – formada por latifundiários donos de escravos, comerciantes, membros da igreja e profissionais liberais –, influenciada pelos ideais europeus, fora responsável pela defesa da liberdade, igualdade, soberania política do povo e outros aspectos que buscavam a garantia da luta contra o sistema colonial.
Não obstante o discurso político de origem elitizada, a retórica foi aceita pela classe ascendente, que buscava a efetivação de seus direitos civis e políticos, e mesmo pela camada popular marginalizada, vez que escravos brasileiros creditavam na falsa garantia da liberdade. Conquistada a independência, rapidamente a oratória liberal foi cedida aos conservadorismos locais. A aristocracia responsável pela reestruturação do sistema político – em sua maioria brancos, de carreira política, donos de terras–, perpetuou a escravidão, restringiu os direitos políticos aos homens, e com exigência de “renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego” para votar, demonstrando o caráter paliativo do sistema eleitoral instaurado (BRASIL, CPIB, 1824, art. 94, I).
A institucionalização dos interesses da elite à maquina estatal fora tamanha ao ponto de ser superada apenas 67 anos depois, no contexto da própria queda da monarquia – em concomitância às conquistas da laicidade do Estado, mediante a separação formal com a Igreja, superação da escravização do povo negro, bem como da limitação censitária ao voto –, quando um militar amigo do Imperador dirigiu-se ao centro da cidade, junto de sua tropa, para proclamar a República. Desta vez, o discurso capaz de agregar aceitação da população urbana crescente, dos comerciantes e profissionais liberais, foi baseado no progresso econômico capitalista, com a valorização da livre concorrência e trocas comerciais, correspondente aos interesses de exportação do café e desenvolvimento da indústria no país.
Entretanto, a potencialidade do discurso liberal de suposta ruptura às continuidades da organização política e social brasileira, enraizadas desde a origem, era, mais uma vez, um discurso teórico sem realidade prática. Em verdade, “isso de república é coisa de estudantes e liberais”, como bem observou autoridade da aristocracia paulista poucos anos antes da proclamação da República[1]. A capacidade de apropriação das instituições públicas pela elite política era imensa. Impossibilitou a conquista do direito político às mulheres, enquanto aos marginalizados o direito ao voto era manuseado pelo coronelismo. Na máquina estatal, o patrimonialismo sobrepunha o interesse privado ao público e expunha o patronato político nacional.
No âmbito social, as marcas de um longo período de escravidão, associadas ao ruralismo brasileiro e suas origens latifundiárias conservavam as raízes do Brasil, em concomitância a uma urbanização desregulada, dependente do processo de industrialização nacional, sem qualquer regulamentação trabalhista. Raízes estas que não seriam superadas senão “pela completa libertação dos trabalhadores agrícolas” e por um Estado “capaz de esmagar os privilégios dos atuais dominadores e sustentar as reivindicações revolucionárias”[2], como revindicado por Luiz Carlos Prestes em carta datada de maio de 1930. Porém, o manifesto político não passara de objetivos utópicos, às vésperas da tomada do poder por Getúlio Vargas.
Em 1889, um marechal cansado. Em 1930, o representante da “Aliança Liberal”, derrotado nas urnas, mas capaz de representar os interesses conflitantes do proletariado rural, urbano e também da classe econômica hegemônica insatisfeita com a política predominantemente voltada ao café e ao leite, além de conseguir casar, harmoniosamente, o liberalismo ao militarismo. De um lado a garantia dos direitos trabalhistas básicos ao âmbito urbano, bem como o direito ao voto secreto, tanto para homens, quanto para mulheres, resguardados por uma justiça eleitoral autônoma; por outro lado, um Estado orientador-intervencionista, capaz de propiciar uma política econômica destinada aos interesses industriais. Ora, não apenas o “pai dos pobres”, mas também “mãe dos ricos”.
A fachada liberal adotada desapareceria sob o pretexto emergencial de preservação da ordem, ante a suposta “ameaça vermelha”, arquitetada pelo Partido Comunista Brasileiro, conforme documento exposto pelo governo – e notadamente forjado por ele próprio, como comprovado anos depois –, denominado Plano Cohen, justificando a instauração de novo golpe militar, em novembro de 1937.  “Os golpistas já foram antigolpistas e vice-versa, e os antigolpistas não são mais que ultragolpistas”[3]. A máxima, atemporal, bem exemplifica as idas e vindas do autoritarismo brasileiro, assim como o constante flerte à falsa ideia de ordem, mediante imposição militar.
Não bastassem as incoerências do Liberalismo em seu espectro político – que durante anos rejeitou os direitos políticos às mulheres e a liberdade ao povo negro –, a sua relação com o militarismo é, igualmente, essencialmente paradoxal. Sem base nas teorias clássicas de John Stuart Mill e Jeremy Bentham, é evidente que não é um fardo teórico carregado pelos liberais modernos ou contemporâneos, como John Ralws e Jürgen Habermas. A retórica liberal, quando em prática no Brasil, mais remonta o cenário de 1984, de Orwell: ou a ironia do duplipensar de Winston, capaz de aceitar, simultaneamente, duas ideias contraditórias, ou a dominação exercida pelo Big Brother (Grande Irmão), constantemente prolongando a realidade presente pelo esquecimento do passado. Ou mesmo a conjugação de ambos.
Pelo discurso político, quer-se sempre “partir para o liberalismo” – como esclareceu o futuro presidente eleito, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, do Paraná –, encontrando respaldo nos interesses econômicos hegemônicos, mas como prática, quer-se sempre retomar suas raízes de regalias e proveitos, perpetuando um sistema político pautado pela exclusão social e falsa percepção das liberdades individuais. “O discurso é o meio por excelência da ação política”[4], e o discurso liberal, no Brasil, sempre foi capaz de agregar grande apelo popular. Entretanto, neste lapso entre o discurso e prática está todo o conservadorismo brasileiro.
A retórica liberal, adotada no cenário eleitoral, sequer é capaz de reconhecer a autonomia particular da mulher acerca do aborto, ou mesmo assegurar a igualdade e os direitos básicos da personalidade ao grupo LGBT, negando a própria essência da autopreservação liberal. Contudo, impulsiona um plano de privatizações de empresas, com a respectiva flexibilização dos direitos trabalhistas, além de buscar facilitar o comércio internacional, mediante a “redução de muitas alíquotas de importação e das barreiras não-tarifárias”[5].
Novamente, não bastassem as contradições do liberalismo em seu espectro político, sua relação com o militarismo é essencialmente paradoxal. Não faltaram militares que ameaçassem a ordem institucional, exaltassem a tortura contra a oposição política ou mesmo depreciassem o sistema democrático-representativo. No entanto, a valorização da imagem militar é fundamental como programa de governo atual, “afinal, elas são o último obstáculo para o socialismo”[6].
“O fato é que o presente está repleto de passado e vice versa”[7], e o atual contexto político não apenas expõe as potencialidades do discurso liberal, mas o projeto sistemático de limitação de sua ordem prática aos interesses hegemônicos. Os limites do liberalismo político, no Brasil, estão fundados nos conservadorismos das raízes históricas nacionais, gerando este excêntrico liberalismo à brasileira.

Gabriel de Aguiar Tajra é estudante do 5º semestre de Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), com atuação acadêmica em direito eleitoral, filosofia do direito e presença ativa em organizações estudantis e da juventude municipal.
[1] SANTOS, José Maria dos. Os republicanos paulistas e a abolição. São Paulo: Martins, 1942. P. 137.
[2] SILVA, Hélio. 1930 – A revolução traída. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. P. 230. 
[3] COUTINHO, Lorival. O general Goés depõe. Rio de Janeiro: Ed. Coelho Branco, 1955. P. 282.
[4] MIGUEL, Luis Felipe. Kitsch e o discurso político na mídia. In: BIROLI, Flávia; Miguel, Luis Felipe. Notícias -em disputa: mídia, democracia e formação de preferências no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017. P. 147-169. 
[5] Plano de governo do futuro presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, disponível em: https://www.bolsonaro.com.br/
[6] Plano de governo do futuro presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, disponível em: https://www.bolsonaro.com.br/
[7] BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Um país de muitas faces. In: Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 10-18.



STF deve(ria) garantir o Estado de Direito, por Jorge Rubem Folena de Oliveira





GGN. - O mundo está em transe. Por todos os cantos deparamo-nos com as propostas de restrição de direitos fundamentais, num claro sinal de que o sistema político liberal atravessa uma profunda crise, na medida em que não está conseguindo manter com segurança o Estado Democrático de Direito nem prover os meios mínimos necessários para que as pessoas possam viver em paz e com dignidade.
Ao contrário do que têm sustentado importantes expoentes do constitucionalismo contemporâneo (alguns inclusive com relevantes serviços prestados na retomada da democracia no Brasil [1]), já existe uma clara ruptura da ordem política.
Isto porque, em decorrência de interesses inerentes ao patrimonialismo, permitiu-se, com passividade e cumplicidade das instituições políticas[2], que fossem desferidos ataques diretos à Constituição, como observado no caso brasileiro, desde a aventura do processo político e jurídico que culminou no impedimento de Dilma Roussef e seu consequente afastamento da Presidência da República, em maio de 2016.
A partir daí, ocorreu a ruptura nacional que conduziu ao enfraquecimento da democracia brasileira; os sucessivos cortes de direitos sociais que se seguiram permitiram a ampliação das desigualdades sociais. Uma das vertentes dessa ruptura é representada pela Emenda Constitucional 95, de 2016, apelidada de “Emenda da Morte”, por congelar por 20 anos os investimentos em direitos essenciais à vida, como saúde, educação, ciência e tecnologia e segurança.
No final de 2018, com o resultado das eleições, vimos que a grande maioria dos liberais (tanto os que se fizeram de indiferentes ou os que participaram, direta ou indiretamente, da trama retórica[3] que possibilitou, a partir de maio de 2016, o “desmanche da Constituição e das Instituições”[4]), foram varridos do cenário político[5] e os Poderes Legislativo e Judiciário tornaram-se enfraquecidos, diante da figura do misticismo que se tenta impor acima de tudo e de todos.  
Considero importante para este ensaio o resgate da obra de Montesquieu[6], não apenas por tratar-se de um autor clássico das ciências sociais, mas especialmente por verificarmos cada vez mais a atualidade do seu pensamento, ao afirmar que só existe democracia onde há igualdade. Como demonstrou Montesquieu, sociedades desiguais abrem caminhos para a instalação de regimes despóticos e tiranos, que se alimentam do medo e do terror para se afirmarem.
O que se mais observa no mundo, na atualidade, é a desigualdade social decorrente da concentração brutal de riquezas e fontes de recursos.  A falta de igualdade e de oportunidades conduz à desesperança e a uma situação de constante temor.
Em tais situações, a população, tomada de receios em relação ao futuro e paralisada pelo medo, decide entregar seu destino nas mãos de políticos que se apresentam como fortes e propõem a implantação de um estado onde impera o discurso de violência, ódio e repressão, que conduz à tirania.
A tirania é uma forma de governo onde não existe o equilíbrio das forças políticas e sociais, base central do pensamento de Montesquieu. O autor afirma que, para que haja esse equilíbrio, é essencial a manutenção de instituições políticas[7] capazes de garantir a existência de uma sociedade frugal, onde todos possam desfrutar das riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade.
O objetivo deste trabalho é analisar o papel de intermediação que deve ser desempenhado pelo Poder Judiciário, a partir da divisão de poderes desenvolvida por Montesquieu, como instrumento capaz de assegurar o equilíbrio de forças políticas e sociais, diante de governos que se apresentam com o rótulo do nacionalismo e forte apelo moralista, os quais, porém, abusam de princípios caros ao liberalismo, doutrina construída a partir da modernidade.
Nos dias atuais, governantes manifestam, sem nenhum receio de desagradar aos cidadãos, a possibilidade de restringir liberdades individuais, como a liberdade de expressão; o direito de livre prática religiosa; a livre circulação de pessoas; o respeito à pluralidade de pensamento, gênero, raça, origem, opção sexual e convicção de ideologia.
Da mesma forma, há governos que se acham legitimados a cortar direitos sociais e deixar de efetivar investimentos em áreas de grande impacto humano, como saúde, educação, previdência e assistência social; que se consideram também com permissão  para desprezar a proteção ao meio ambiente e liberar toda sorte de abusos contra a natureza e até mesmo para “abater” indivíduos de forma sumária e sem o devido processo legal, que constitui uma das primeiras conquistas do liberalismo.
Tais comportamentos, característicos de governos que tentam se impor pela força e truculência física e moral devem ser repelidos e limitados pelo Poder Judiciário, o qual, nas palavras de Kelsen[8], é “uma espécie de contrapeso do poder legislativo e do executivo”.
Nesse encaminhamento, pode-se verificar que, apesar das suas (muitas) omissões recentes e de ter contribuído para a instalação do quadro quase permanente de violação de garantias fundamentais, o Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda detém um papel fundamental de intermediação com as forças políticas e sociais, que urge ser exercitado a fim de restabelecer o necessário equilíbrio de forças, único caminho para impedir o esgarçamento total do tecido social; ademais, o Poder Judiciário não pode fechar os olhos para a possibilidade de disrupção da ordem ora instituída, em consequência da atuação das novas forças emergentes, que não camuflam sua intenção de tornar supérfluas as instituições tais quais as conhecemos agora.
Mais do que nunca, parte expressiva da população clama e o momento político exige que o Supremo Tribunal Federal – ainda que sob ameaças diretas ou veladas – deve agir de imediato e portar-se conforme exige seu papel constitucional: qual seja, o de ser a última fronteira de proteção da democracia, a fim de impedir as ameaças que atentem contra a liberdade, a exemplo do sucedido às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 2018, no Brasil, quando juízes eleitorais ordenaram que a polícia, em cumprimento de mandados de busca e apreensão, invadisse diversos campi universitários, nos quais os corpos docentes e/ou discentes estivessem a manifestar-se contra os perigos da ideologia do fascismo, que tenta mais uma vez tomar o mundo, ao custo de conduzi-lo a um novo holocausto, já em curso com a perseguição a imigrantes e a todos os que pensam de forma diversa.
O mesmo Supremo Tribunal Federal, que, em casos anteriores, deixou uma evidente impressão de politização da justiça, finalmente manifestou sua voz, ainda que de forma tímida, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 584, proposta pela Procuradoria Geral da República.
Segundo a ministra relatora, Carmen Lúcia, que teve a sua decisão liminar referendada pelo Tribunal, “a única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais. (...) Qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia”.
Sem dúvida, a resposta do Supremo Tribunal Federal veio em boa hora e deverá ser intensificada no julgamento de outros casos pendentes de julgamento naquele Tribunal (como a questão da ampla garantia da “presunção de inocência” para todos os cidadãos), de forma a se restabelecer o equilíbrio de forças e impedir abusos contra o sistema jurídico liberal, que  tem na preservação ampla das liberdade individuais e coletivas, e também na proteção dos direitos sociais,  a marca fundamental do período histórico, a ser assegurado por um Poder Judiciário que verdadeiramente exerça o papel de intermediário entre os demais poderes políticos e a sociedade, a fim de manter não apenas o equilíbrio de forças, mas a própria democracia.
.
Jorge Rubem Folena de Oliveira é advogado e cientista político. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Pós-doutor em ciências sociais (CPDA/UFRRJ), Doutor em ciência política (IUPERJ) e Mestre em Direito (UFRJ).

[1] “Nova Constituinte, somente em caso de ruptura nacional”, afirmou J. Bernardo Cabral, em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1998, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 08/11/2018.

[2] Estamos nos referindo em particular aos Poderes Legislativo e Judiciário.
[3] “Pedalada fiscal”.
[4] Folena de Oliveira, Jorge Rubem. O desmanche da Constituição e das instituições, Revista Consultor Jurídico, 13 de mar. 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-mar-13/jorge-folena-desmanche-constituica.... Acesso: 10 de nov. 2018.
[5] A referência é dirigida a parlamentares de tradicionais partidos políticos, como as siglas do velho MDB, PSDB, DEM (antes PFL) e PP, que não renovaram seus mandatos e foram vencidos por candidatos de “novas” siglas, antes inexistentes na política brasileira.
[6] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Editora Abril, Os Pensadores, 1973.
[7] Governo, Parlamento e Judiciário.
[8] KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 247

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A exoneração de Moro para fugir de processo no CNJ, pelo jurista e Professor Lenio Streck




"Streck já havia alertado, em artigo anterior escrito com Pedro Serrano, que ao fazer parte da transição de governo, Moro infringiu a Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e o Código de Ética dos juízes. Dias após esta publicação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu um procedimento contra Moro. "




Foto: José Cruz/Agência Brasil

Jornal GGNEm um artigo para o Conjur, o jurista e professor de Direito Constitucional, Lenio Luiz Streck faz uma avaliação das movimentações de Sérgio Moro, que deixa a função de juiz para atuar no governo Bolsonaro como Ministro da Justiça.
 
Streck já havia alertado, em artigo anterior escrito com Pedro Serrano, que ao fazer parte da transição de governo, Moro infringiu a Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e o Código de Ética dos juízes. Dias após esta publicação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu um procedimento contra Moro. 
 
Em entrevista antes da abertura do procedimento, Moro havia dito que não iria se exonerar do cargo antes de cumprir suas férias como juiz em razões de salário e segurança da família. "Porém, face ao procedimento aberto pelo CNJ, Moro teve que mudar os planos. No dia 15, Moro pediu exoneração, contada a partir de 19 de novembro". 
 
A exoneração foi assinada pelo desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e publicada nesta segunda no Diário Oficial da União. Com essa manobra, e deixando de ser juiz, o pedido de investigação no CNJ perde efeito. Prevendo esse caminho, três deputados ingressaram com uma cautelar para impedir a exoneração de Moro.  
 
"A cautelar procede. Se Moro pode se exonerar depois do cometimento da própria infração que causou o último procedimento, abrirá um perigoso precedente, além de tornar inócua a proibição de os juízes exercerem atividade política”, explica Lenio.
 
“[Se] Um funcionário público comete uma infração (grave) e, como a lei somente impede a aposentadoria ou exoneração se estiver respondendo a processo (PAD), bastará que, aberto o procedimento que poderá levar à posterior abertura do PAD, peça exoneração (ou aposentadoria) para que tudo se extinga. É a lei levando o drible da vaca. Nítido desvio de finalidade da lei", completa. A seguir, o artigo de Lenio Streck.  
 
 
 
 
Aprendi com o velho Elias Díaz, jurista espanhol: quem colocaria em dúvida que, no Estado Democrático, a legalidade só poderia ser uma legalidade constitucional? Mas, como tudo por aqui no Brasil, há controvérsias. Muitas.
 
Pedro Serrano e eu escrevemos um texto (ver aqui) denunciando que o juiz Sergio Moro, ao fazer a transição de governo junto com Bolsonaro, aceitar o cargo e montar seu gabinete, infringiu a Constituição, a Loman e o Código de Ética dos juízes. Dias depois, o CNJ abriu procedimento contra Moro, face à representação (ou mais de uma) que lá ingressou. Ou seja, nossa denuncia tinha fumus boni juris.
 
Para lembrar: em entrevista, Moro já havia dito por que optara por não se exonerar antes de assumir o Ministério da Justiça (razões de salário, segurança e proteção da família). Porém, face ao procedimento aberto pelo CNJ, Moro teve que mudar os planos. No dia 15, Moro pediu exoneração, contada a partir de 19 de novembro. Três deputados ingressaram com pedido de cautelar (aqui), para impedi-lo de se exonerar antes de resolver esta e outras pendências administrativas que contra ele tramitam.
 
A cautelar procede. Se Moro pode se exonerar depois do cometimento da própria infração que causou o último procedimento, abrirá um perigoso precedente, além de tornar inócua a proibição de os juízes exercerem atividade política. Qual é o busílis? Simples: Um funcionário público comete uma infração (grave) e, como a lei somente impede a aposentadoria ou exoneração se estiver respondendo a processo (PAD), bastará que, aberto o procedimento que poderá levar à posterior abertura do PAD, peça exoneração (ou aposentadoria) para que tudo se extinga. É a lei levando o drible da vaca. Nítido desvio de finalidade da lei.
 
Claro que não pode ser assim. Uma república na qual todos devem ser tratados igualmente não pode admitir esse discrimen. Um membro do MP ou do Judiciário que entre em férias durante o período eleitoral não pode fazer o que quiser. Nem no período eleitoral e nem nunca. Em férias, o máximo que pode fazer é descansar e viajar. O certo é que não pode fazer atividade política. É o que aconteceu. Observe-se que Moro aceitou o convite para ser ministro mesmo sem estar em férias. Quando viajou ao Rio ainda não estava de férias. Aceitou o convite e depois entrou em férias. Começou a montar o ministério. É juiz e, ao mesmo tempo, presta serviço ao Executivo, violando a separação de Poderes e a CF.
 
Registre-se: as férias, para o deslinde da controvérsia, são absolutamente irrelevantes. Tanto é verdade que nem Moro acreditou na “tese das férias”, pois dela desistiu ao pedir exoneração no dia 15 último. Se estar de férias legitimava o ato de fazer política, por qual razão então se exonerou antes do tempo? A resposta é óbvia, pois.
 
Sigo. O certo é que, aberto um procedimento para apurar esse imbróglio – há outros, como sabemos –, Moro pediu exoneração. Não teria o pedido o objetivo de tornar prejudicado um eventual PAD (que, por consequência, impediria a exoneração)? Por isso, não há outro caminho a não ser o CNJ conceder a cautelar para sustar a exoneração. Há evidente periculum in mora, porque, exonerado, não há como o Estado buscar apurar uma infração cometida por um servidor. Não há solução diferente ou intermediária.
 
De observar que os fatos são ainda mais graves se levarmos em conta que o convite para ser ministro da Justiça foi gestado quando o magistrado ainda exercia sua função, conforme declarado pelo general Hamilton Mourão (e não desmentido). Também reuniu-se, durante a campanha eleitoral, com o anunciado futuro ministro da pasta a ser denominada Ministério da Economia, Paulo Guedes. Esse encontro foi confirmado pelo próprio juiz, tudo conforme demonstrado no pedido de cautelar feito pelos deputados.
 
Se for negada a cautelar, estará aberto um grave precedente: todo funcionário, sob ameaça de um PAD, pede exoneração e zera tudo. E o Estado nada poderá apurar. Estará criada nova forma de exclusão de responsabilidade de funcionário público: o pedido de exoneração antes do PAD. Lembro ainda das repercussões do precedente no caso de Marcelo Miller. Também estava de licença prêmio ou férias, estão lembrados?
 
Simples assim. "It is the law", como disse o médico para o staff do presidente norte-americano na série House of Cards. Explico: necessitando de um transplante de fígado, seu médico particular queria furar a fila dos transplantes. A resposta foi negativa. O diretor do hospital agiu por princípio e não por política. Pela lei, a fila de transplantes não pode ser quebrada. Nem se pelo presidente da República. Bingo. Qual é princípio – que sustenta a regra – que seria violado? Simples: uma vida é igual a uma vida. E a do presidente não vale mais. Tudo para dizer que aqui, no caso, Moro não está acima da lei. Juiz não pode exercer atividade política. Nem por um dia. Nem por vários dias. Aliás, ele mesmo sempre disse que ninguém está acima da lei. Pois é. Nem ele.
 
Vamos ver como o CNJ sai dessa sinuca de bico. Numa palavra final, não se diga que há má vontade na discussão dos assuntos que envolvem Sérgio Moro. Clique aqui para terminar de ler direto no Conjur.