quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O que o assassinato de Marielle tem a ver com a destruição da previdência?



A dominação para fins de exploração econômica nunca se dá apenas no conflito estritamente salarial entre ricos e pobres. Mas sim também na violência simbólica.
Do GGN:

O que o assassinato da vereadora tem a ver com a destruição da previdência?

por Álvaro Miranda

Difícil abstrair os diferentes problemas da realidade para depois conectá-los a fim de compreender o fenômeno maior que os explica. Sei que esse exercício exige tempo, estudos e pesquisas. Mas há coisas elementares que atingem todas as famílias brasileiras, que é a expectativa de uma convivência pacífica na escola, no trabalho, nas ruas – algo que, no seu plano prático, dispensa abstrações, bastando o entendimento do arroz com feijão do dia a dia. 
A partir de um viés civilizatório básico, quando alguém é assassinado, a sociedade toda está sendo agredida. Parece uma abstração, mas não é, caso contrário não precisaríamos de leis. Quando assistimos ao noticiário sobre um crime, tendemos à solidariedade e à preocupação com as dores dos familiares da vítima, mas também com o temor de que aconteça o mesmo conosco ou com parentes ou pessoas próximas. 
Criminosos atentam contra a República e todos os cidadãos quando matam alguém, seja a vítima de qualquer estrato social, profissão, cargo público ou condição econômica. A facada em Jair Bolsonaro foi um atentado contra a República, gostemos ou não dele, assim como o assassinato da juíza Patrícia Accioly, em Niterói, e de dezenas de policiais em serviço Brasil afora. 
O tal arroz com feijão do cotidiano tem a ver com causas específicas e seus respectivos efeitos implicando ações práticas e peculiares para resolver os problemas, ainda que estes tenham como causas elementos de outras dimensões da realidade. 
Para os que são ávidos por novidades e acham que o caso da vereadora se torna repetitivo no noticiário, vai uma indagação: como é possível localizar e prender PC Farias (lembram?) na Tailândia e não conseguirem prender os mandantes do assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes? 
Alguma coisa muito errada, não é, presidente? Alguma coisa muito esquisita, não é, ministro Sérgio Moro? Alguma coisa muito bizarra esse sumiço do Queiróz. E os eleitores fervorosos de Bolsonaro não querem saber o que aconteceu? Não querem esclarecimentos? Ou acham que essas indagações são “de esquerda”? Policiais que estavam empenhados na investigação são comunistas? Apesar do silêncio dos meios de comunicação, a sociedade espera, sim, uma resposta.
O assassinato da vereadora e seu motorista é um problema que está engasgado na garganta da República, e a pergunta aqui é: os que apoiam Moro e Bolsonaro acham que se trata de mais um fato a não merecer mobilização e protestos? Se são honestos e coerentes como eleitores que apostaram no fim da corrupção e da violência, não vão levantar bandeiras a fim de pressionar as autoridades para prender os mandantes e esclarecer o crime? E também, claro, o caso Queiróz?
Outros problemas exigem abstração mais complexa, como os que procuram interconectar elementos diversos sobre os motivos pelos quais o governo pretende destruir a previdência pública. Sei que é difícil o exercício da reflexão para estabelecer as conexões entre o assassinato da vereadora e seu motorista e o movimento empreendido pela rapina rentista dos recursos e a destruição do estado. 
Embora não me sinta capaz de fazer as devidas conexões no momento, penso em alguns elementos iniciais para aprofundamento maior posteriormente, quais sejam: a dominação para fins de exploração econômica nunca se dá apenas no conflito estritamente salarial entre ricos e pobres. Mas sim também na violência simbólica, que, em casos extremos, se interpenetra à violência física. É como se a violência simbólica fosse semeando em terrenos legitimadores a violência física.
Repito o que já se disse por diferentes vozes: o ódio de classe social legitima a violência contra a mulher, lésbica, negra, favelada. Ódio porque a mulher conseguiu romper os claustros da dominação, chegando à universidade e à vereança. Legitima o esquecimento do crime, como absurdo normalizado em meio a tantas outras violências. O ódio legitima a mentira, que, somada a várias outras mentiras, legitima as razões supostamente técnicas do embuste para a destruição da previdência pública. Esta, que o cinismo, na sua violência simbólica, quer legitimar como “nova previdência”.
O ódio que incentiva todos os tipos de ódio, quando, por exemplo, procuradores da Lava Jato ironizam a morte de Dona Marisa Letícia e a dor de Lula e seus parentes. Se pessoas ditas qualificadas por mérito manifestam, ainda que na encolha, um ódio gratuito num episódio desses, o que esperar de suas missões judicantes? O ódio, travestido de amavios elegantes e explicações técnicas ardilosas, que legitima a defesa da destruição da previdência por parte dos grandes meios de comunicação, de forma sistemática e diária, em contraste com o silêncio em relação ao crime da vereadora à espera de algum “fato novo” das autoridades policiais. 
Isso, como se os produtores de notícia dependessem de “fatos novos” e não contribuíssem para pautar a agenda do governo com seus interesses escondidos em “matérias jornalísticas” de suposto “interesse público”. O ódio em suas edições e marketing sofisticado das grandes forças rentistas – mas sem estampar, por exemplo, um placar diário mostrando que faz tantos minutos, dias, semanas, meses que Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados, e até agora os mandantes não foram presos.
Álvaro Miranda – Jornalista, Mestre e Doutor em Ciências, Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ, por onde também tem especialização em Análise de Políticas Públicas, além de MBA em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas. Prestes a lançar agora em setembro seu quinto livro de poesia, “Estranho país que teus olhos já não procuram mais”, pela 7Letras.

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