quinta-feira, 5 de março de 2020

O “triunfo” do homo uber juridicus, por Lenio Luiz Streck, jurista



A era dos aplicativos é uma metáfora que pode ajudar a explicar a uberização do Direito e o surgimento do homo uber, que trabalha lado a lado ao novo homo zapiens, que habita em um mundo em que tudo deve ser expedito, “prático”, eficiente, fast food. E clean.

do ConJur

O “triunfo” do homo uber juridicus

Já venho denunciando de há muito a fragmentação do Direito, decorrente da fragmentação e fragilização do ensino jurídico, cujas consequências, retroalimentadas, podem ser encontradas na doutrina e na aplicação do Direito.
A era dos aplicativos é uma metáfora que pode ajudar a explicar a uberização do Direito e o surgimento do homo uber, que trabalha lado a lado ao novo homo zapiens, que habita em um mundo em que tudo deve ser expedito, “prático”, eficiente. E clean.
Mesas limpas. Sem papel. Assinatura? Só a eletrônica. Que pode ser feita à distância. Um juiz chegou a assinar, em férias, a bordo de um avião indo para a Europa, decisões de sua vara.
Agora temos o filme “Você não estava aqui”, que retrata a ideologia do “empreendedorismo”, em que tudo é “plataforma”, startups e quejandos. É a era Uber. O novo princípio epocal. Black Mirror já virou série realista.
Nessa “era Uber”, cada é um é empresário de si mesmo, coisa que Foucault já denunciara de há muito, quando falava do sujeito individualista da modernidade. É o solipsismo via aplicativo.
Nesse imaginário homo uber não há solidariedade, não há sindicato, não há vínculo trabalhista. O homo uber é o próprio dono dos meios de produção, como deixou assentado a 37ª Vara Trabalhista de São Paulo, quando, paradoxalmente (quem diria?) usou o conceito marxista para negar o vínculo empregatício a um ciclista que entregava comida para o iFood e a Rappi. Baita burguês esse ciclista, não? Explorador da força de trabalho… dele mesmo! Sem patrão! Sem férias, plano de saúde ou aposentadoria. O trabalhador não tem nada a perder… exceto a bicicleta. Alugada.
No Direito, também proliferam plataformas. E agora, com o EAD, essa questão fica ainda mais clara. Dia desses escrevi aqui que um instituto assumia ser uma empresa tipo Uber do Direito. Sim, o Uber chegou no Direito — por edital. Assim como o cara que dirige Uber tem discurso empreendedorista (palavra da moda), agora você pode ser professor sem sair de casa ou algo assim (lembro do velho Instituto Universal Brasileiro — IUB — recordar é viver: veja aqui antigo comercial).
Você pode ser professor sem ser professor; pode ser professor sem contrato com Faculdade ou Universidade. Igual ao motorista de Uber sem carro — alugue um. Fala-se em EAD invertido, segundo edital do tal instituto. (sic).
Sim, professor ad hoc. Professor de aluguel. O professor fica em casa e pode ser chamado por plataforma, como o motorista do Uber. E já vem no aplicativo o valor que vai receber pela corrida, quer dizer, aula. Não há prova nem classificação de candidatos. O candidato deve gravar uma vídeo aula de 5 minutos. Esse é o teste. Para qualquer disciplina. Ou seja, basta mostrar que sabe dirigir, se me permitem a paródia.
O professor passa a ter um aplicativo e é demandado por alguma faculdade para passar sua aula via plataforma. Já sabe de antemão o valor da corrida (ups, da aula).
Na medida em que – inclusive por decisão judicial – estão liberados os cursos totalmente EAD, isto é, tudo pode ser realizado via plataformas, a pergunta que se põe é: como ficam as relações de trabalho? E as interações pedagógicas?
Para falar da filosofia moral, Alasdair MacIntyre abre seu After Virtue falando sobre o triunfo do Know Nothing, o partido do Saber Nenhum, que culpava os cientistas e intelectuais por todas as catástrofes. Pois é. MacIntyre errou, penso eu, na sua solução neoaristotélica pra filosofia moral. Mas acertou genialmente na distopia. Que já não é mais tão distópica. Alguém tem ainda dificuldade em ver a inexorável relação entre este mundo “uberizado” e o anti-intelectualismo? Tempos de Curso Online de Filosofia…
Nesse novo mundo, o aluno estuda em sua casa. Assim como não vai ao cinema. Nem ao restaurante. Tem um Uber Eats ou iFood. Banco? Faz por aplicativo. Aliás, já tem banco que não é banco, como o EBanx, que é apenas uma plataforma pelo qual passam pagamentos de compras e sacaneia o utente (tive que ligar dezenas de vezes para falar com máquinas ou gente que “gerundeia”).
Bom, você não precisa ir ao cinema, compra tudo por internet, anda de Uber (que é uma empresa de transporte sem carros – enche as cidades de automóveis e o imposto vai para a sede da plataforma, nos EUA ou Europa, sei lá). Um sistema autopoiético. Mais Uber, mais carros, mais necessidade do Uber. Haverá um dia em que o trânsito será formado apenas por Uber. Só não sei para ir aonde, afinal. Ao cinema é que não será.
Nem à faculdade. Pois agora também não necessita ir à escola. Faz tudo a partir de casa, do aplicativo. Já tem aplicativo oferecendo serviços jurídicos. Law on demand. Sem sair de casa.
No princípio era o verbo. No final, o Uber. Sem princípios – a não ser o da “eficiência”.
 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

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