No “Xadrez do Pacto Ultraliberal com um Bolsonaro domesticado”, mostrei os indícios do novo pacto desenhado, que poderá salvar o mandato de Jair Bolsonaro e lançar nuvens pesadíssima sobre o horizonte da democracia.
A ofensiva em andamento é nítida em dois locais – no governo Jair Bolsonaro e em São Paulo, com João Dória Jr.
Trata-se de um pacto clássico, no qual o Executivo garante o apoio da Câmara, com oferta de cargos; dos poderes, com aumento de orçamento; e do mercado com desmonte selvagem do Estado. Tudo à custa de cortes em áreas essenciais, mas dotadas de baixo nível de influência corporativa.
O fio condutor é o desmonte do Estado, com preservação dos ganhos das corporações aliadas – Forças Armadas e Supremo, no Executivo Federal; Justiça, no caso de São Paulo. A conta será paga pela área social – com cortes nas verbas de educação, saúde, tecnologia. Enfim, nada diferente dos pactos clássicos do liberalismo selvagem, ultimamente aliado de presidentes trogloditas, como nos EUA.
Esses movimentos tem o efeito da fábula do sapo na panela com água quente. Todos se acomodam, permitindo a Bolsonaro avançar em seus objetivos de implementar um estado de exceção, não mais através de golpes truculentos, como desenhou semanas atrás, mas do avanço discreto e sistemático sobre as instituições.
O Xadrez terminava com uma constatação óbvia: “Julgar que Bolsonaro pode ser eternamente domesticado é a mesma coisa que dar uma dieta vegetariana para uma hiena, e apostar que nunca mais ela voltará a gostar de carniça”.
Os principais pontos do acordo estão se materializando rapidamente.
Introdução – a transformação do bolsonarismo
Bolsonaro assumiu a presidência da República dividindo o palco com dois personagens que atuavam como uma espécie de âncoras políticas: Sérgio Moro e Paulo Guedes. Moro garantia a adesão de parte da mídia e dos setores empresariais e da classe média; Guedes, a adesão do mercado.
Mas Bolsonaro não admitia dividir comando.
Primeiro, tratou de se desvencilhar de Moro humilhando-o seguidamente. Não contava com a capacidade de subserviência de Moro, que resistiu durante bom tempo a todas humilhações públicas. Saiu quando Bolsonaro resolveu acabar com o aparelhamento de Moro na Polícia Federal, substituindo por seu próprio aparelhamento.

Fora os estampidos dos primeiros dias, a saída de Moro significou o fortalecimento de Bolsonaro e a possibilidade de avançar sobre os sistemas de repressão – da Polícia Federal, através do Ministro da Justiça; a Controladoria Geral da República (CGU); e dos sistemas de inteligência.
Mas continuava com resistências na Câmara e no STF.
Bolsonaro tentou, então, partir para o confronto final.  Acentuou seu estilo de se fiar exclusivamente na militância radical. Seus arroubos foram interrompidos quando o STF (Supremo Tribunal Federal) o enfrentou através de dois episódios de corte: a ofensiva do Ministro Alexandre de Moraes contra as fake news e as medidas do Ministro Celso de Mello em relação à reunião ministerial de abril.
Ao mesmo tempo, o Supremo dava início a uma estratégia política habilidosa visando conter as pirações bolsonarianas. Dias Toffoli administrava os arroubos de Bolsonaro; Gilmar Mendes atuava como mediador junto ao Congresso e às Forças Armadas; enquanto Luis Roberto Barroso mediava lives de youtubers, já que o STF não é de ferro. E, na Câmara, Rodrigo Maia comandava uma frente contra os terraplanismos legais.
Bolsonaro tentou o golpe contra o Supremo, mas não obteve respaldo das Forças Armadas.
Ali, caiu a ficha de Bolsonaro sobre as ameaças representadas pelas investigações do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro sobre as rachadinhas e a possibilidade concreta dos filhos serem julgados, condenados e presos.
A partir dali, começa a ser desenhado o novo pacto, com Bolsonaro sendo convencido a se enquadrar, substituindo o estilo de ditador sem noção, pelas ferramentas básicas do populismo de direita, e a seguir nova estratégia para tomada definitiva do poder.
Ali começou a tomar forma a verdadeira ameaça de Bolsonaro.

Peça 1 – o pacto da popularidade

Os filhos mudaram a forma de mobilização da ultradireita, trocando as redes sociais por grupos de WhatsApp. Sem a barulheira infernal que provocavam, as Forças Armadas passaram a fechar os olhos para a nova legislação de armas e para o controle sobre a Polícia Federal, que esvaziou os centros de fiscalização do contrabando de armas em Itaguai.
O segundo fator de ajuste de conduta foram os resultados da renda básica na sua popularidade, inclusive em redutos anti-bolsonaristas como o Nordeste. Ali começou a desmoronar a crença supersticiosa de Bolsonaro em Paulo Guedes e a se desenhar um caminho óbvio: o da retomada dos investimentos públicos como maneira de recuperar a economia e garantir a reeleição.
Houve um primeiro desenho, com o Pró-Brasil, fuzilado por Guedes na infausta reunião ministerial de abril. Mas a lógica dos investimentos públicos passou a crescer cada vez mais. E a megalomania de Guedes condenou-o. Não cedeu em nenhuma frente e, publicamente, quanto mais enfraquecido mais se colocava como âncora de Bolsonaro. Sua última declaração deve ter calado fundo no coração pequeno de Bolsonaro: “Bolsonaro tem plena confiança em mim; assim como tenho plena confiança em Bolsonaro”, assim, ambos no mesmo plano.
É questão de tempo para dançar.

A recuperação da popularidade é peça essencial para consolidar os demais pactos.

Peça 2  – o pacto com a Câmara

O segundo pacto foi a recomposição da base política com a aliança com o centrão, substituindo as lideranças radicais novatas por velhas raposas e leiloando o setor público para sobreviver – como fizeram, anteriormente, Fernando Henrique Cardoso e Lula; e como não fizeram Fernando Collor e Dilma Rousseff.

Peça 3 – o pacto com as Forças Armadas

Não foram necessários dois dias para confirmar o pacto com as FFAAs, descrito no Xadrez. Na segunda-feira foi revelado que o orçamento da Defesa superará o da Educação. E, sem o desgaste das declaração estapafúrdias, será mais simples para as FFAAs fechar os olhos para abusos óbvios de Bolsonaro.

Gradativamente as FFAAs deixaram de ser ponto de apoio – como em qualquer democracia moderna – para assumirem a linha de frente da Saúde, do Meio Ambiente, dos setores de inteligência e, agora, dos planos de investimentos públicos.
Em troca, fecham os olhos para o aumento das vendas de armas para a população e para a expansão (agora discreta) do radicalismo bolsonarista. A infiltração cada vez maior de militares na máquina pública facilitará enormemente os planos de continuísmo do bolsonarismo.

Peça 4 – o pacto com o mercado

O novo pacto desenhado, como descrito no Xadrez, tornará Paulo Guedes descartável. Até agora Guedes se mostrou um operador ineficiente, criando problemas com a Câmara e sem capacidade de gerenciamento de sua equipe. O mercado quer queima de estatais e desmonte do Estado – apenas isso.
Ao mercado, será oferecida a privatização selvagem, tanto no Executivo federal quanto em São Paulo.
O novo desenho de orçamento privilegiará as corporações aliadas – Forças Armadas com Bolsonaro; Tribunal de Justiça, em São Paulo. A conta será paga com restrições aos gastos sociais, redução de verbas para educação, saúde, financiamento da inovação etc. Em síntese, repetindo os pactos imemoriais de uma sociedade atrasada.
A mídia cumpre adequadamente seu papel, demonizando qualquer gasto do Estado.

Peça 5 – o pacto com o Supremo

Sem destaque, o STF tem atuado firmemente contra direitos sociais e no desmonte do modelo de Estado. Cometeu um erro crasso, mas provavelmente intencional, de permitir a privatização de subsidiárias de estatais, sem aprovação do Congresso. Ali teve início os grandes negócios do momento, com subsidiárias sendo vendidas sem maiores cuidados provocando um esvaziamento gradativo da lógica econômicas das grandes estatais.
Tudo isso sem nenhuma discussão, sem a menor preocupação em organizar audiências públicas para melhor entender as consequências de cada decisão. Sua única missão cívica é usar as ferramentas de Pavlov para manter Bolsonaro sob controle. Quando ele ameaça ultrapassar a linha democrática, leva um choque e recua.
Paradoxalmente, é esse movimento de contenção que fortalece a estratégia mais perigosa, de tomada gradativa dos poderes de Estado através da cooptação e da infiltração em todas as instituições.

Peça 6 – os alertas de Fachin

O Ministro Luiz Edson Fachin tem dupla militância. No STF, tem sido o principal agente da destruição do sistema político, abrindo espaço para o bolsonarismo. Vez por outra, participa de algum evento e, chamado para palestrar, relembra o finado jurista Fachin, defensor das grandes causas.
Na última vez, citou o livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, para alertar para os riscos no caminho da democracia brasileira. Para Fachin, o Brasil está em recessão democrática, com o incentivo à violência, a demonização dos adversários e as ameaças de não aceitar derrotas para as urnas.
Não há nenhuma esperança que o Ministro Fachin abra algum espaço para o jurista Fachin poder ressurgir das sombras e acordar o Supremo para a ameaça óbvia à democracia, representada pelo novo-velho Bolsonaro.
Nem se percebe nenhum sinal de vida nas forças de oposição, inertes, acomodadas em denúncias óbvias contra Bolsonaro, mas sem capacidade de articular qualquer linha de resistência.