sábado, 3 de agosto de 2019

Série “The Boys”, da Amazon, surge em um momento precioso e ajudar a entender um fenômeno que ocorre no Brasil: o poder absoluto corrompe todos os super-heróis, por Wilson Ferreira



A série Amazon “The Boys” (2019) surge num momento oportuno em que não só a Marvel e DC Comics alcançam altíssimas cifras com filmes e franquias. Mas também como a narrativa dos super-heróis acima de quaisquer limites virou um modelo de propaganda política



Série “The Boys”: o poder absoluto corrompe todos os super-heróis

Por Wilson Ferreira (no Cinegnose e Jornal GGN)

Imagine um mundo em que os super-heróis são reais e um negócio lucrativo: combater vilões rende franquias, “mitagens” nas redes sociais e uma multidão de fãs que se sentem seguros num mundo tão louco. CEOs e advogados de uma megacorporação garantem o silêncio para eventuais escândalos gerados pelos “danos colaterais” provocados pelos superpoderes. A publicidade esconde a personalidade de super-heróis imaturos, narcisistas e amorais. E como o poder absoluto é intrinsecamente corruptor. “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, dizia o Homem Aranha. Mas estes super-heróis estão totalmente corrompidos. A série Amazon “The Boys” (2019) surge num momento oportuno em que não só a Marvel e DC Comics alcançam altíssimas cifras com filmes e franquias. Mas também como a narrativa dos super-heróis virou um modelo de propaganda política, como denunciou o cartunista criador do herói sem superpoderes “The Spirit”, Will Eisner: “se não fosse Hitler, talvez não tivéssemos super-heróis nas HQs”.
Um sistema democrático não se limita a um regime político no qual todos os cidadãos participam direta ou indiretamente através de representantes eleitos. Esse é apenas um aspecto formal da Democracia.
A essência de um sistema democrático já havia sido apontada por pensadores como Aristóteles, Locke e Montesquieu: a necessidade da limitação e separação dos poderes – a divisão tripartite do Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário) no qual um poder limitaria o outro, assegurando o equilíbrio e a impossibilidade da existência de governos tirânicos ou autoritários.
Mas, assim como na trajetória do Iluminismo, desenvolveu-se no submundo do imaginário social uma contracorrente: a história dos super-heróis. Vigilantes dotados de superpoderes (natos ou criados), protagonistas da luta do bem contra o mal que não prestam nenhuma satisfação ao Estado de Direito – só se reportam ao próprio senso de Justiça e Verdade.
Na Modernidade, o tropo do herói mascarado com uma identidade secreta inicia com “Pinpinela Escarlate” (1903), vingador que salvava nobres franceses da guilhotina na Revolução francesa – o anti-herói perseguido pela polícia.

Desconstrução do super-herói

Toda essa controvérsia em torno dos super-heróis é o argumento central da série da Amazon The Boys (2019-). Bem no momento em que a franquia em torno dos super-heróis se tornou um negócio lucrativo, com as altíssimas cifras alcançadas pela Marvel e DC Comics com filmes e inúmeros produtos licenciados.
The Boys é uma irreverente, violenta e explícita desconstrução da figura do super-herói, apontando para os perigos do culto desse tipo de personagem – a influência das corporações e do dinheiro. Mas, principalmente, a natureza corruptora do poder absoluto.
O leitor deve lembrar qual era o princípio orientador do super-herói Homem-Aranha: “com grandes poderes vêm grandes reponsabilidades”. Pois The Boyscontinua de onde termina essa frase: grandes poderes não trazem reponsabilidade, mas absolutismo.
Como em WatchmenThe Boys é baseado em uma HQ escrita por Garth Ennis e desenhada por Darick Robertson: um universo alternativo no qual os super-heróis se transformaram em objeto de um vasto aparato corporativo que cuida das suas imagens, com uma equipe de relações públicas e advogados. Prontos para abafar qualquer escândalo.
De certa forma, The Boys lembra a animação Os Incríveis. Só que de forma invertida: enquanto na animação Pixar, os super-heróis foram proscritos pelos inúmeros processos decorrentes dos “efeitos colaterais” das ações heroicas (morte de civis em guerras titânicas contra vilões), em The Boys há uma gigantesca corporação corrupta que abafa todos os escândalos, garantindo a imagem e os lucros das franquias dedicada a cada super-herói.

A Série

Estamos em um universo alternativo onde super-heróis são uma mistura de celebridades com vigilantes e que estão acima do Bem e do Mal. Os atos heroicos são postados pelos próprios super-heróis nas redes sociais, em busca de likes e compartilhamentos. Além de se transformarem em lucrativas franquias, avidamente consumida pelos fãs.
Mas eles não estão sozinhos nisso: a Vought International Corporation garante que sejam comercializados e rentabilizados.
Mas ninguém parece se importar com essa promiscuidade entre justiça e comércio: os super-heróis são fantásticos, fazem o cidadão comum se sentir mais seguro diante do mundo louco que o rodeia.
Ninguém, exceto Hughie Campbell (Jack Quaid), um tímido e covarde funcionário de uma loja de produtos eletrônicos que sofre um traumático episódio: ao sair com sua namorada para conversarem sobre o projeto de finalmente morarem juntos, ela simplesmente em segundos, do nada, se transforma em um borrão de carne e sangue – simplesmente foi atropelada pelo super-herói Trem-Bala (“A-Train”, Jessie T. Usher), o herói mais rápido que uma bala. Um “efeito colateral” numa perseguição a um bandido.
Esse será o fio da meada que Hughie puxará para descobrir o lado sombrio dos “Seven”: o conjunto de líderes de todos os super-heróis agenciados pela megacorporação Voight – o Translúcido (um Homem Invisível pervertido que passa o tempo nos banheiros de mulheres), Capitão Pátria (mix de Super-Homem e Capitão América, imaturo e narcisista), Rainha Maeve (uma versão hardcore da Mulher Maravilha), Trem Bala, Profundo (um Aquaman com síndrome de inferioridade), Black Noir (sempre mal-humorado e lacônico) e a estreante do grupo Starlight (de fã transforma-se em super-heroina). Inocente e idealista, Satrlight (Erin Moriarty ) descobrirá o lado sombrio por trás do arco-íris publicitário da Voight.
Madelyn (Elizabeth Shue), a CEO responsável pelo gerenciamento dos Seven, enviará advogados para abafar o escândalo, junto com um polpudo cheque para Hughie, em troca do seu silêncio.
A indignação de Hughes chamará a atenção de Billy Butcher (Karl Urban), um ex-agente do FBI com forte rancor contra os Seven – o motivo será eventualmente explicado ao longo da série. Billy lidera um grupo que busca se vingar do arbítrio da Voight e seus super-heróis – a mídia é sistematicamente manipulada para encobrir os danos produzidos pela amoralidade dos Seven. Por isso, o grupo tenta encontrar pontos fracos em cada super-herói para tentar mata-los.
Com tanto poder e dinheiro, os Seven estão mais preocupados com os lucros garantidos pela megacorporação Voight, que busca ir além do gerenciamento de franquias ou agenciamento por contratos bilionários dos super-heróis para os departamentos de polícia e prefeituras. Agora, a Voight quer colocar seus super-heróis nas Forças Armadas e, eventualmente, dar um golpe de Estado. Com a ajuda dos Seven.
Por isso, acompanhamos nessa primeira temporada as armadilhas para chantagear senadores e aprovar a entrada do custo dos contratos dos Seven no orçamento das Forças Armadas.
E a crescente decepção de Starlight, a recém-admitida: uma típica moralista puritana do interior dos EUA que idolatrava os super-heróis, cujo sonho era colocar seus superpoderes na luta pela Justiça e a Verdade. Depois de ser aceita pela Voight, descobre o submundo dos Seven – abusos, assédios, misoginia, absolutismo e amoralidade.

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