“É bem verdade que a pauta de motivações para a derrubada de Dilma era extensa. Ia desde a transferência do pré-sal, para os americanos, um compromisso do senador José Serra, até os incômodos que os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade causaram nas fileiras das Forças Armadas. Esta, embora fosse uma causa/detalhe, talvez fosse a que falasse mais de perto aos militares, que tentaram passar ao país um ar de “alheamento””, diz Denise Assis, do Jornalistas pela Democracia
Denise Assis
Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada". Membro do Jornalistas pela Democracia
Por Denise Assis, do Jornalistas pela Democracia
O livro “A Escolha – Como um presidente Conseguiu Superar Grave Crise e Apresentar uma Agenda para o Brasil”, soou como uma necessidade de Michel Temer de arrumar, a seu gosto, as três linhas que a história lhe reservará, de modo a que saia bem no roteiro. Há, porém, mais por trás disto. Principalmente se observarmos o momento escolhido para o “lançamento oficial”. Falar do livro agora representou para Michel, uma forma de retribuir a “ajuda” que recebeu para ser o executor do golpe desfechado contra a presidente eleita, Dilma Rousseff, destituída oficialmente do cargo no dia 31 de agosto de 2016.
Aos fatos. É bem verdade que a pauta de motivações para a derrubada de Dilma era extensa. Ia desde a transferência do pré-sal, para os americanos, um compromisso do senador José Serra, até os incômodos que os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade causaram nas fileiras das Forças Armadas. Esta, embora fosse uma causa/detalhe, talvez fosse a que falasse mais de perto aos militares, que tentaram passar ao país um ar de “alheamento”, durante as manobras de Michel para estender sua ponte de cordas à lá Tarzan, entre o governo que servia, e o “futuro” incerto que apontava para os brasileiros.
Neste ponto é bom lembrar que nas semanas anteriores ao lançamento, o Exército viu dois de seus generais passarem por humilhações públicas sem precedentes. Em um dos episódios mais grotescos, o general e ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, depauperado pelo vírus da Covid-19 – aquela gripezinha com que ele concordou em determinar, fosse tratada com cloroquina – foi filmado ao lado de Bolsonaro, que o obrigou a dizer para as câmeras de TV, o princípio que norteia o seu governo: “É simples assim. Um manda, o outro obedece”. Isto, depois de desautorizado sobre a compra da vacina sinovac, com insumos chineses e desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, governado por um desafeto de Bolsonaro, João Dória.
Em seguida foi a vez do general e ministro chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, num episódio que evidenciou a disputa entre a ala ideológica e o núcleo militar, do governo. Num arroubo regado a vinho branco, no aprazível balneário de Fernando de Noronha, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou o Twitter para atacar o general Ramos, postando uma nota em que o apelidava de “#mariafofoca”.
Irritado com a publicação de uma outra nota pelo jornal O Globo, Salles disse que o colega, responsável pela articulação política do governo com o Congresso, agia como uma Maria-fofoca. O ministro se referia ao texto intitulado: “Salles estica a corda com a ala militar do governo e testa blindagem de Bolsonaro”, da colunista Bela Megale (O Globo). É bom lembrar que a expressão já havia sido brandida pelo general Ramos, contra o povo, quando Bolsonaro e seus generais pensavam que o artigo 142 lhes outorgava o direito a um golpe. (Deixou evidente de onde partia o recado). Sabem o que aconteceu com o já desgastado ministro Salles? Nada. Ganhou o direito a uma foto de rosto colado com Bolsonaro em solenidade oficial.
A exposição de motivos do azedume dos militares exposta acima, levou os militares a reagir. Sem querer perder a “boquinha”, ou se rebelar contra o seu “comandante-em-chefe”, resolveram chamar Michel e cobrar a dívida. Michel deveria vir a público revelar que contou com a ajuda deles para apear um governo democraticamente eleito, ou seja: dar um golpe. Recado claro a Bolsonaro de que quando querem, podem interferir na vida política do país.
De acordo com as revelações de Michel, o naipe de motivação para o golpe de 2016 estava posto, mas ele atendia, principalmente, ao comandante geral, o general Villas Boas, e ao muito melindrado general Sergio Etchegoyen. Em 2014, após a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, foi o primeiro oficial de alta patente a soltar uma nota, no dia seguinte à cerimônia, em conjunto com a família, contra a Comissão. Saiu em defesa da honra do pai, o general Leo Guedes Etchegoyen, morto em 2003, citado na lista de 377 perpetradores de graves violências contra os direitos humanos, na ditadura. Tradução: torturador. A ação defendia o pai, mas deixava de fora o tio, Cyro Etchegoyen, apontado como um dos diretores da “Casa da Morte”, centro clandestino de tortura, montado pelo 1º Exército em Petrópolis-RJ, acusado de dar sumiço ao corpo do deputado Rubens Paiva.
Em 12 de março de 2015 Sergio foi nomeado chefe do Estado Maior do Exército (EME). Foi nesta condição que recebeu várias vezes Michel, então vice-presidente, para confabulações em torno do golpe contra Dilma. O general veio a público negar as afirmações de Michel, mas certamente não conseguirá apagar a proximidade entre os dois. E tanto é assim, que tão logo se deu o afastamento da presidente Dilma, com a abertura do processo de impeachment aprovado pela Câmara dos Deputados, Michel decidiu reestruturar todo o setor de inteligência, recriando o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem ficou vinculada a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). O órgão tinha sido extinto por Dilma Rousseff. E quem foi alçado à condição de chefe? Sergio Etchegoyen.
Farto de ouvir pelas ruas os gritos da condição que escolheu entrar para a história: “golpista”, Michel tomou uma decisão: passou a gravar entrevistas com o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, com o objetivo de lançar um livro onde tenta apagar o inapagável, o seu papel de executor do golpe.
Ao professor e filósofo, de quem é amigo, contou sobre os encontros ao então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas e o chefe do Estado-Maior da Força, general Sérgio Etchegoyen, entre 2015 e 2016, antes do impeachment da presidente Dilma Rousseff e falou sobre a razão desses contatos. Tão logo saiu a notícia do livro, Sergio Etchegoyen se apressou em desmentir a conspiração.
Segundo Michel, o desgaste da relação do PT com os militares em razão da Comissão Nacional da Verdade, do receio de que Dilma tentasse mudar a Lei de Anistia e o temor de que o PT buscasse mudar a forma de acesso de oficiais ao generalato. Pesou também um dos 29 itens das recomendações finais do relatório: a mudança na formação dos militares nas academias. Queriam, por isso, ouvir o então vice para saber, nas palavras de Rosenfield, com quais cenários deviam trabalhar.
Foi o mesmo que colocar um atacante sozinho de cara para o gol. Michel entrou com bola e tudo, balançou a rede e o resto a gente já sabe onde desembocou. Em Bolsonaro. Mas, tal como naquela ocasião, o recado está dado. Bastam alguns encontros e no balanço das horas tudo pode mudar…
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