sábado, 12 de dezembro de 2020

As moscas negacionistas e outras pestes do bolsonarismo, por Xico Sá, no El País

 

Do El País:


Xico Sá

Sobre a gritaria de “Fora Temer” ao fundo, Vitor, menino de rua de Salvador, mandava na lata, de um só fôlego, um poema de Carlos Drummond de Andrade. “E agora, José?”. O menino parecia ter saído do livro “Capitães da Areia” (Jorge Amado) com aquela pergunta que o Brasil Oficial, em delirium tremens com o projeto “Ponte para o futuro”, fazia questão de não escutar. O vice de Dilma Rousseff acabara de assumir a presidência da República. Estamos em maio de 2016. O vídeo de Vitor, postado pelos manifestantes no Youtube, correu bolhas e galáxias nas redes. “Você marcha, José!/ José, para onde?”

Não sabemos por onde anda o Vitor sem sobrenome, tampouco cuidamos dele — viramos uma sociedade que muito curte e pouco cuida. Se não temos ideia do paradeiro do menino, sabemos muito bem a marcha em que se encontra o Brasil, sob a mira de todas as maldições do bolsonarismo ― somente as dez pragas do Egito, perdão pela hipérbole bíblica, seriam capazes de revelar o estado a que chegamos.

Tempestades de rãs ou invasão de gafanhotos ainda não dizem tudo. As patas em carne e brasa das onças do Pantanal talvez nos cutuquem. Os rios tingidos do mercúrio dos garimpos, quem sabe. As moscas da ignorância e do negativismo encobrem a terra. Não há defensivo agrícola, por mais pop que seja, que nos livre e guarde. Os tempos em que vivemos, relembra minha mãe Socorro, nos remete às roças de algodão perdidas com a peste do bicudo.

Desculpa a interrupção. Fala, Vitor. Nesta semana em que celebraremos o “Dia D”, como é conhecido o 31 de outubro ― data do nascimento de Drummond―, reli um texto de 2018 em que José Miguel Wisnik, músico e professor universitário da Usp, relembrava o menino da cidade da Bahia. Aquele ato poético, sob testemunhas de ativistas do Coletivo de Entidades Negras, ficou incorporado para sempre ao sentimento do mundo do poeta mineiro.

Assim como faz parte da mesma maquinação drummondiana a canção que o pernambucano Paulo Diniz fez do mesmo poema em 1974 para tocar no rádio. Do andaime das construções aos cabarés do interior do país, estava lá a pergunta pendurada no cocuruto dos populares: “E agora, José?”

Maria igualmente não faz ideia da resposta. Quem sabe que mande a sua mensagem a este cronista. Sabemos que as pragas do bolsonarismo― com a ajuda do Centrão e de todo o condomínio do golpe ― fazem um estrago da Amazônia ao chão da fábrica. A “Ponte para o futuro”, louvada nos jornais nacionais e provincianos, deu no país das precariedades e acelerou a multiplicação de Pedros Balas ― o chefe dos capitães da areia de todas as metrópoles.

Repare nos olhos de Vitor ao perguntar, acenderam a luz vermelha. Sinal fechado para nós. Não era apenas um pressentimento, é possível ver ainda, no replay, o carro da história no reflexo no olho do menino da Bahia. E agora, José? E agora, todo mundo?

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (Companhia das Letras) e faz o podcast “No Balcão”, na plataforma Orelo.

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