Uma das características mais marcantes dos tempos atuais é a rapidez da mudança das ondas de opinião e a maneira como as pessoas se reposicionam permanentemente. Pessoas de boa índole podem se tornar vingadores vociferantes. Mas é possível que, no momento seguinte, voltem à bonomia anterior, como se nada tivesse acontecido.
Um bom retrato desse processo se vê no universo da primeira divisão da mídia, não apenas jornalistas, mas também a corte que borboleteia no seu entorno, colunistas convidados, fontes, autoridades, no chamado Olimpo das celebridades.
Muitos deles mudaram de posição em prazos curtos. Eram capazes de propagar discursos de ódio, alimentar guerras de extermínio contra adversários políticos, espalhar fake news e combater o politicamente correto. Enfim, todos os ingredientes da guerra ao marxismo cultural, seja lá isso o que for, que começou com Olavo e terminou em Jair. E, no momento seguinte, se tornarem campeões da democracia, do politicamente correto, da defesa da Constituição, sem que nada lhes fosse cobrado, como se fosse algo natural nesses tempos de modernidade líquida. Se precisar de um retorno aos velhos tempos, também, às ordens.
Outros, mais sofisticados, levantavam argumentos pretensamente jurídicos para justificar ataques à Constituição – quando perpetrados pelo seu lado -, e, depois, defesa intransigente da Constituição – quando a ameaça vem do outro lado.
A parte curiosa do jogo foi a mudança (quase) radical no universo da mídia da primeira divisão para se livrar dos dejetos acumulados no período de jornalismo de esgoto.
Depois dos discursos de ódio do período do impeachment, começou a tentativa de reconstrução de um espaço civilizado, mas repleto de regras tácitas que não podem ser desobedecidas.
Foram convidados a colaborar novos colunistas, de progressistas moderados a conservadores civilizados. Abriu-se algum espaço para jornalistas votarem a cumprir, ainda que com alguma timidez, a defesa dos princípios básicos democráticos – que, aliás, deveria ser a base intransigente do exercício do jornalismo em qualquer tempo, independentemente das circunstâncias do momento.
Conquistaram, ainda que provisoriamente, algo que lhes foi negado no período anterior: reconhecimento  pela defesa do politicamente correto, veja só.
Mas ai entra a característica dos novos tempos, a insegurança permanente da modernidade líquida.

A modernidade líquida

Esses tempos de fluidez já foram estudados com profundidade por pensadores como Zygmunt Bauman.
Antes, havia os estamentos sociais, nos quais as pessoas se encaixavam no nascimento. Depois, a divisão por classes, onde os mais fortes preconizavam o individualismo e os mais fracos a ação coletiva. Era uma divisão relativamente simples e clara para o indivíduo.
Nesses tempos, o individualismo era libertador. Eram “os tempos da exaltada “emancipação” do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitárias”.
Agora, o significado é outro, segundo Bauman:
As mudanças constantes dos ventos obrigam os indivíduos a reformulação e negociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada “sociedade”.
A cada momento mudam as regras anteriores, definem-se novos princípios comportamentais e novos prêmios em jogo.
É um trabalho inclemente, porque, no dizer de Bauman, “não são fornecidos “lugares” para a “reacomodação”, e os lugares que podem ser postulados e perseguidos mostram-se frágeis e freqüentemente desaparecem antes que o trabalho de “reacomodação” seja completado.
E o diagnóstico definitivo:
O que há são “cadeiras musicais” de vários tamanhos e estilos, assim como em números e posições cambiantes, que fazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e não prometem nem a “realização”, nem o descanso, nem a satisfação de “chegar”, de alcançar o destino final, quando se pode desarmar-se, relaxar e deixar de se preocupar. Não há perspectiva de “reacomodação” no final do caminho tomado pelos indivíduos (agora cronicamente) desacomodados.
E aí vem o sentimento de poder-impotência trazido pela luta pela individualização, quando se percebe que o aumento de poder, que se esperava com a suposta nova liberdade, não se realiza.

O jogo no Olimpo das celebridades

Sem a facilidade anterior, de se encaixar automaticamente nos grupos de opinião, o mundo torna-se extremamente complexo, especialmente para os liberais líquidos, porque os ventos podem mudar a qualquer momento.
Hoje, esse grupo restrito tenta celebrar de novo a democracia, a importância da diversidade de pensamento, a tolerância, a relevância da alternância de poderes. No momento seguinte, se sentir que há espaço para o crescimento de uma candidatura de esquerda, os ventos mudarão. E o bambuzal terá que se adaptar rapidamente aos novos ventos para não quebrar e voltarem a ser o que eram.
Cria-se um microcosmo em que todo cuidado é pouco porque qualquer erro poderá provocar o pior dos castigos: a invisibilização do sujeito.
Não é pouca coisa. Visibilidade, no espaço midiático, significa não apenas abertura para o mundo das palestras e das entrevistas. Mas também status, um selo de qualidade no seu círculo, especialmente em círculos intelectuais, em um mundo superficial em que o pensamento é substituído por frases curtas, politicamente corretas, e define-se o que é “in” e “out”, como nas colunas sociais. Sair desse mundo feérico pode jogar o indigitado no inferno dos “outs”.
Por isso, cada avanço nas críticas, nas posições políticas dos novos liberais, é precedido de analises cuidadosas sobre o novo terreno a ser explorado, para não perder a posição conquistada. Errar no timing pode ser fatal.
No auge do jornalismo de esgoto, lembro-me da blogueira prestigiada que ganhou espaço em jornal de grande circulação e resolveu levar ao extremo o discurso da moda, de ataque ao politicamente correto, externando preconceito contra vulneráveis, atacando pessoas com deficiência, entre elas crianças com Síndrome de Down. Errou na dose. Não sabia que a Síndrome de Down já tinha sido inserida no circuito dos homens bons, porque é um fato que não escolhe classe social. Nunca mais se ouviu falar da moça. Ela invisibilizou. Foi condenada à Segunda Bolgia do Oitavo Círculo do Inferno de Dante.
Do mesmo modo, colunistas e jornalistas que atenderam à demanda por ódio e escandalizações da fase mais radical do jornalismo de esgoto, e viraram o fio, passado o período de catarse, foram expelidos.
Por isso, cada passo a mais no caminho das indignações cívicas é precedido de analises cuidadosas do terreno a ser desbravado.
Olha-se o colega do lado, para ver até onde foi e até onde se pode ir. Guia-se pelo retorno dado pelas chefias e pelos leitores. E, principalmente, não se tira os olhos do grande orientador: os editoriais dos jornais.

A neo-sociedade progressista

É dessa maneira, caminhando sobre ovos, que vai sendo moldado o habitat dessa neo-sociedade progressista e civilizatória, até a próxima onda em contrário.
Assistir a essa dança no Twitter é como acompanhar um desfile de carnaval estando sóbrio. Para ganhar pontos, há todo um manual tácito de boas maneiras a ser seguido:
  1. Troque elogios entre si. Ganha pontos e aliados, que ajudarão a fortalecer os seus likes. Vale 5 pontos.
  2. Seja solidário quando um dos seus for vítima dos esbirros autoritários do governo. Vale 5 pontos Mas feche os olhos quando os esbirros forem contra membros da outra tribo. Se descumprir, perde 10 pontos.
  3. Critique a polarização política, mas preserve a sua versão da polarização recorrendo ao álibi dos falsos paralelismos. Sempre que criticar Bolsonaro, não se esqueça de incluir Lula no lado oposto. Vale 5 pontos.
  4. Periodicamente trate as críticas ao movimento da mídia no impeachment como “teoria conspiratória”. Ganha 5 pontos e garante alguns meses a mais de espaço nos jornais.
  5. Respeite a lista dos malditos da mídia, e não ouse citar, nem retuitar nada deles. Incorrer no erro é pecado mortal. Perde 20 pontos.
  6. Para justificar sua posição de esquerda consentida, e não se queimar com os amigos anteriores, trate de desancar periodicamente a esquerda institucional recorrendo ao repertório de críticas da esquerda radical. Na campanha de 2010, os jornais prestigiavam  artigos desancando o Bolsa Familia por não politizar o povo. Ou seja, endossavam uma crítica chavista a um governo que eles taxavam de chavista.

O retorno às cavernas

Todos esses movimentos, de âmbito global, desabaram sobre um país no qual historicamente os homens públicos nunca prezaram princípios e coerência.
Avanços sociais sempre se constituíram em uma luta insana da civilização contra a barbárie, na construção de barreiras de contenção contra a selvageria do senso comum.
Foram necessárias duas guerras mundiais para criar a onda do bem, que pavimentou as conquistas sociais nas décadas posteriores.  A onda do bem ajudou a consolidar novos conceitos. Depois, os novos princípios se infiltraram nas instituições, nas leis, na academia, nos organismos de participação, nos organismos internacionais. Cada passo a mais foi uma luta gigante contra o atraso do senso comum.
No caso do Brasil, essa reconstrução se deu apenas após a Constituinte de 1988. E foi uma obra ciclópica, em um país com a herança escravagista brasileira. Foram criados Ministérios de cunho social, políticas sociais, regras de cunho social, que chegaram até os órgãos de financiamento, políticas compensatórias, cotas sociais e raciais. Durante algum tempo, uma das condições para a concessão de financiamentos pelo BNDES era o selo verde e a responsabilidade social.
Esse edifício civilizatório começou a ruir quando homens públicos, como o Ministro Luis Roberto Barroso, resolveram cavalgar as novas ondas em nome de um eficientismo duvidoso e oportunista. No plano criminal, desrespeitaram direitos e garantias básicas. No plano econômico e social, endossaram publicamente políticas antissociais, manipularam conceitos e estatísticas. No campo jurídico, cometeram o pior dos crimes, a politização do Judiciário.
Todo esse movimento levou o país à destruição ampla de valores e, no seu rastro, de políticas e instituições efetivamente civilizatórias, criadas nas décadas anteriores.
E criou a figura do novo liberal angustiado, como explica Bauman:
Se não estão seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e da impressão que causam. Isto é, em todo caso, o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade.


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