terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Paulo Guedes, um “liberal” pró-ditaduras, por Felipe Calabrez



Guedes, que já trabalhou no regime Pinochet, é apático aos horrores de Bolsonaro. Tem objetivos bem delineados: por meio de contrarreformas infinitas, riscar conquistas sociais e abrir mercados na Saúde, Educação e Aposentadoria…
A liberdade burguesa, que foi, no século XVIII, uma arma contra as tiranias feudais, transformou-se, no século XIX, numa arma contra as reivindicações operárias. Foi em nome da liberdade que em 1841 a burguesia se opôs à lei contra o trabalho das crianças nas minas – seria uma ingerência inadmissível do estado contra a liberdade dos industriais. 
(Garaudy, citado por Avelãs Nunes, 2007, p. 180
A passagem acima pode nos dar algumas pistas sobre as tensas relações do pensamento econômico liberal com a democracia e com os direitos sociais, tensões que vêm desde seu nascimento.
O liberalismo, surgido como crítica às possíveis formas de despotismo, se tornara, já no século XIX, uma defesa conservadora dos direitos de propriedade. A gradual incorporação das massas na cena política com a ampliação do sufrágio também em nada se coadunava com as belas noções de liberdade natural do indivíduo proprietário de John Locke, e a noção de liberdade desse indivíduo elevada a princípio fundamental e último da ordenação social, na qual o principal problema era a limitação da ação do Estado despótico, já havia sido desmascarada por Marx: Liberdade é propriedade, e, sendo esta, privada, priva-se dela a maioria da população, esmagada pelas necessidades materiais de sobrevivência.
As revoltas operárias, as pressões pelo sufrágio e a irradiação das correntes socialistas sinalizavam que a modernidade não entregara o prometido. E o liberalismo se viu obrigado a assimilar diversos elementos, se ramificando em correntes, como, por exemplo, os utilitaristas, que, vale lembrar, produziu reformadores sociais que se aproximaram do socialismo, como Stuart Mill. A verdade é que o capitalismo histórico pouco se assemelhava à descrição naturalista do mundo que partia dos primeiros liberais. Essa tensão foi captada por Karl Polanyi, que acusou os liberais de cometerem uma “falácia economicista”, que consistira em tomar por natural uma lógica de mercado (oferta-demanda-preço) e por mercadorias reais elementos que não passariam de “mercadorias fictícias”, como a terra e o trabalho humano. Dessa maneira, o liberalismo teria produzido, desde suas origens, uma visão normativa de mundo e um Estado liberal que agiu para construir essa ordem social, organizando mercados e criando “mercadorias fictícias”, ao mesmo tempo em que, por outro lado, agiu para limitá-lo, um “contramovimento” que se dá em nome da preservação da sociedade.
Essa tensão entre a lógica totalizante do mercado e os movimentos de preservação da sociedade é, portanto, constitutiva da política moderna. Ao contrário do que a lógica poderia sugerir, no entanto, o pensamento econômico liberal não ruiu com a falência da ordem liberal ocorrida nos anos 1930, mas, como sabemos, germinou e ganhou expressão política nos anos 1970 com o chamado neoliberalismo.
O neoliberalismo, como demonstraram de maneira magistral Dardot e Laval, rejeitou a visão naturalista dos primeiros liberais colocando em seu lugar uma visão muito mais normativa, impositiva, sobre o funcionamento do mundo social. É preciso “purificar a economia” das más ingerências públicas, aquelas que impedem a irradiação da lógica mercadológica para todas as esferas da vida. Nesse sentido, não seria precisa a afirmação de que os neoliberais são a favor dolaissez-faire. Eles são na verdade reformadores sociais; são a favor do “intervencionismo liberal”, que não se confunde com interferências na lógica mercadológica de alocação de recursos e formação de preços em situação de competição. A intervenção aqui é a própria imposição dessa lógica. Há que se falar aqui em “liberalismo construtor”.

A lei e a ordem

As democracias contemporâneas têm passado por fortes turbulências em toda parte. A América Latina, em especial, tem se demonstrado um barril de pólvora, com grandes levantes de massa no Chile, Equador e Colômbia, além do retorno de golpes militares, como na Bolívia. Seria superficial e apressado atribuir todas essas tensões a uma única causa, mas parece possível esboçar duas linhas de investigação para esses fenômenos: i) O esvaziamento do centro do espectro político, com a acirrada crítica ao establishment tem produzido a polarização das estratégias políticas, até o momento com muito mais intensidade e violência por parte da extrema-direita. ii) Como possível causa dessa polarização tem-se a insatisfação com a “terceira-via”, uma centro esquerda que assumiu a gestão do capitalismo pós-globalização e se mostrou incapaz de entregar as benesses prometidas pelo triunfo absoluto do capitalismo. Digo-o de maneira bastante generalista, dadas as nuances e as formas como se manifestou em diferentes lugares, como, por exemplo, na própria América Latina.
O fato é que o governo Bolsonaro, expressão de uma extrema-direita raivosa e antidemocrática, já anunciou estar monitorando os levantes populares nos países vizinhos e se apressou em apresentar um projeto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que pretende instaurar um dispositivo chamado excludente de ilicitude, que, como confessado pelo próprio presidente, pretende coibir protestos violentos, ao que o mandatário do Executivo chamou de terrorismo. Trata-se de preparar o aparelho de guerra do Estado contra sua população sem o risco de que isso lhe traga futuros problemas legais. O governo parece querer se preparar para uma guerra contra um inimigo (interno) que ainda nem se manifestou. E isso ocorre ao mesmo tempo em que seu “superministro” envia um ambicioso projeto de desmonte do Estado brasileiro e redução de sua capacidade de prestação de serviços essenciais à população em nome de um discutível equilíbrio fiscal que penaliza os mais pobres sem qualquer disfarce. Como não há limites, na mesma semana o mesmo superministro propõe um programa de suposta geração de empregos que visa cobrar imposto sobre o seguro-desemprego, para perplexidade geral.
Outra confissão de Bolsonaro, há preocupação do governo sobre o envio das propostas de reforma administrativa e tributária ao Congresso em virtude dos protestos latino-americanos, pois há receio do efeito contágio. Novamente, como não há limites, o superministro afirma em entrevista coletiva em Washington que, diante das críticas do ex-presidente Lula à sua agenda econômica não há que se assustar se alguém falar em AI-5!

O Fiador

Muitos se perguntaram o que teria aproximado um ambicioso homem de negócios, fundador de um banco de investimentos (Pactual), gestor de fundos milionários (Bozzano) e que gosta de fazer dinheiro no cassino do capitalismo financeiro se arriscando em operações de day trade, se aproximar de uma figura grotesca, de inteligência limitada e admirador dos porões do DOI-CODI. O que um economista admirador de um teórico “amante da liberdade” teria visto em um militar medíocre e parlamentar medíocre, amante de um torturador?
A verdade é que os gestores do dinheiro não nutrem simpatia pelos horrores do autoritarismo. Apenas não se importam com ele. Quando perguntado sobre sua passagem pelo Chile de Pinochet, para lecionar a convite de um apoiador do regime, Paulo Guedes afirmou“Eu sabia zero do regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual.”
E aqui retornamos ao ponto abordado no início desse texto. A visão de mundo ultraliberal é essencialmente impositiva. No limite, autoritária. A missão que animava a sociedade Mont Pelerin ou o Colóquio Walter Lippmann era construir um mundo de acordo com sua visão, segundo a qual a lógica mercadológica é a forma superior de organização do mundo social e deve, por isso, ser totalizante. Esse mundo, portanto, deve ser produzido. Desse modo, tudo aquilo que foge à essa lógica deve ser eliminado. Como essa lógica nada tem de natural, tal realidade deve ser constantemente produzida. Não por outra razão um programa de infinitas reformas é, desde os anos 1980, a agenda dos liberais. Quanto mais liberal, mais reformas são vistas como necessárias.
O projeto megalomaníaco que Paulo Guedes quer fazer passar no Brasil demanda ampliados poderes de Estado e reformas radicais, a começar pela eliminação do caráter social-democrata expresso na Constituição Federal. Pergunte-se por quê alguém tão liberal precisaria de um “superministério”. E sobre a estratégia de constitucionalizar todas as medidas, desde uma regra de gasto até a política macroeconômica? Não seria muito apego a regras e à Constituição, por parte de um liberal convicto? A resposta, como vimos, é negativa. Trata-se precisamente de constitucionalizar as ações (e inações) do Estado, produzindo o que Laval e Dardot chamam de intervencionismo jurídico, isto é, não se trata de um intervencionismo administrativo que estorva as empresas e os gestores do dinheiro, mas, ao contrário, de garantir a criação de mercado em todas as esferas (mercados de saúde, de educação, de aposentadorias, de dívida pública) e de assegurar o direito inalienável, sobre todas as coisas, à propriedade. Trata-se, enfim, de uma criação jurídica, que exige poder do Estado e impõe uma agenda política.

E onde fica a democracia?

Ela, como se nota, é apenas um detalhe. Tanto pode ajudar a viabilizar o projeto totalizante de mercado como pode atrapalhá-lo. Como fica o projeto diante de um contramovimento de Polany? Movimentações de resistência da sociedade, engendradas por quem quer que seja oposição, deverão ser tratadas como terrorismo sob a força do porrete isento de ilicitude?
Prefeririam que não, mas nada impediu o casamento com o projeto que emergiu do esgoto do autoritarismo, uma família admiradora de torturadores buscando controlar o Estado como clã. A verdade é que todos sabiam, mas, cientes da “polarização”, embarcaram com um sujeito que saiu do esgoto do autoritarismo empunhando um calibre trinta e oito.
Como tem sinalizado Paulo Guedes, esse casamento tem passado por recuos e estratégias. É, no entanto, menos contraditório do que pareceu a muitos.
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