quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Covid Prolongada e a miséria moral do poder elitista explorador, por Georges Monbiot, jornalista e ambientalista do Reino Unido

 

Ciência identifica sequelas pós-pandemia. Algumas são devastadoras, rememoram um longo episódio de misoginia médica e expõem, em particular, insensibilidade dos governos e corporações que insistem na “volta ao trabalho e ao normal”

Por George Monbiot, no Guardian | Tradução: Antonio Martins

Talvez mais do que nunca, desde a I Guerra Mundial, tornou-se nítido que nossas vidas não importam a quem tem poder. Boa parte dos governantes sequer tenta disfarçar sua despreocupação e insensibilidade. Quase nunca mencionam, em especial, o espantoso número de mortos causado pela negligência diante da pandemia: reconhecê-lo seria admitir sua própria responsabilidade.

Mas nem só de mortes é feito o atlas da indigência moral. Também são vítimas aqueles que permanecerão por muito tempo com sequelas causadas pela covid-19. Já estão, provavelmente, na casa das centenas de milhares. Se as limitadas medidas de quarentena forem suspensas quando a vacinação estiver pela metade, pode haver centenas de milhares a mais.

As sequelas – ou “covid prolongada” – não poupa os jovens, os saudáveis ou os atléticos. Vitima mais as mulheres que os homens, mas pode se abater sobre qualquer um, inclusive as pessoas cuja infecção inicial parecia branda, e até mesmo os assintomáticos. Em alguns casos, a “covid duradoura” pode significar covid para toda a vida.

Os efeitos podem ser horríveis. Entre eles, danos aos pulmões, ao coração e ao cérebro, que podem provocar perda de memória e confusão mental, comprometimento dos rins, dores de cabeça severas, dores nos músculos e articulações, perda de olfato e paladar, ansiedade, depressão e, acima de tudo, fadiga. Todos deveríamos temer as consequências persistentes desta pandemia.

Covid prolongada é um nome genérico para uma série de condições. Alguns cientistas dividem-nas em três grandes categorias; outros, em quatro. Destas, uma parece tocar um alarme. É um conjunto de sintomas muito similar à encefalomielite miálgica, ou síndrome da fadiga crônica (SFC/EM). Trata-se de uma condição devastadora, que afeta aproximadamente 250 mil pessoas no Reino Unido [não há dados consolidados no Brasil] e é frequentemente causada, como a covid, por uma infecção viral.

Entre os sintomas comuns da SFC/EM estão fadiga extrema que não tem alívio com o descanso e “hipertensão pós-exercício”: mesmo esforços físicos ou mentais suaves podem deixar os pacientes muito esgotados. Muitos pacientes permanecem confinados em suas casas ou mesmo camas, com suas vidas sociais e familiares truncadas. Não há, até agora, um teste para diagnóstico, e nenhuma cura. Um estudo publicado no jornal Plos Oneda Biblioteca Pública de Ciências dos EUA, descobriu que, de vinte condições observadas, inclusive câncer de pulmão, AVC, esclerose múltipla e esquizofrenia, os pacientes com SFC/EM relataram a mais baixa qualidade de vida relacionada à saúde.

No entanto, a SFC/EM foi miseravelmente negligenciada pela ciência e medicina. Um estudo publicado no British Medical Journal em 1970, e vastamente difundido pela imprensa, deu o tom das investigações científicas que predominaram por quase 50 anos. Ele minimizou as eclosões da doença, tratando-as ou como “histeria de massas”, ou resultado de diagnósticos imprecisos. Os pesquisadores foram incapazes de acessar um único paciente ou entrevistar um único médico. Suas conclusões estavam amplamente baseadas numa observação: a de que a síndrome afetava mais mulheres que homens. Portanto, eles concluíram, era provavelmente manifestação psicossomática.

Em outras palavras, não era ciência, mas misoginia. Nos anos 1990, a condição foi caracterizada por alguns médicos como uma “crença” e uma “pseudodoença”. Os pacientes foram tratados na mídia como fingidores, e sua doença apelidada de “gripe yuppie”.

Um estudo recente mostra que doenças cujas pacientes são predominantemente mulheres tende a receber menos recursos que aquelas que afetam homens. O esforço científico também é, em grande medida, função da efetividade das pressões dos pacientes. Um dos paradoxos cruéis desta condição é que a fadiga extrema causada por ela solapa a possibilidade dos pacientes para se mobilizar por melhores tratamentos.

Um estudo da Associação da Encefalite Miálgica do Reino Unido revela que por mais de 10 anos o país gastou apenas 10 milhões de libras [equivalentes a R$ 76 milhões] na pesquisa da doença – ou menos de R$ 300 por paciente. Em comparação, a pesquisa da epilepsia recebeu R$ 1500 por paciente, a artrite reumatoide, R$ 2200 e a esclerose múltipla, R$ 6000. Ainda hoje, alguns médicos recusam-se a crer nas queixas dos pacientes, minimizam seus sintomas ou prescrevem tratamentos sem comprovação ou danosos.

Para alguns pacientes, a condição que sofrem é uma “morte em vida”. O testemunho de pessoas que me escreveram é pungente. “Estou doente há 15 anos e perdi o casamento, a carreira e os amigos”. “Fui acamado aos 22 e alimentado por sonda desde 2004”. “Meu filho está na cama há 10 anos”. “A luta de 30 anos de meu pai (…) roubou-lhe o que teriam sido os melhores anos de sua vida”. “A pior coisa foi ser mandada a um psiquiatra porque não me acreditavam”. “Diziam constantemente a minha mãe que ela estava louca, fora de sua condição normal”. “Cada consulta médica é uma batalha”. “A luta por aposentadoria foi angustiante e quase me quebrou”. “Ninguém poderia ter me prevenido para a falta de interesse, o abuso e a negligência do mundo médico, científico e político”. Agora, com a covid, milhares de outras pessoas podem ter sido atingidas, no que um professor de medicina chama de “um tsunami pós-viral”.

Algumas coisas estão melhorando. O governo britânico financiou um grande estudo genético chamado DecodeME [referência à abreviação da encefalomielite miálgica em inglês]. São necessários 20 mil participantes. O Nice, órgão de padrões de saúde no país, atualizou seus manuais clínicos. Se algo de bom pode surgir da pandemia, pode ser maior reconhecimento e recursos para as pessoas com SFC/EM. Precisa começar – e é curioso ainda ter de dizer isso em 2021 – com os médicos dispondo-se a ouvir os pacientes e a levá-los a sério. Os tratamentos precisam basear-se em descobertas empíricas e não em ideias velhas e desacreditadas.

O Sistema Nacional de Saúde [NHS, uma das inspirações do SUS] está criando agora clínicas especializadas para tratar a covid prolongada. Mas alguns erros evidentes já começaram a ser cometidos. Sem os cuidados necessários, o NHS recomenda seguidamente níveis crescentes de exercício a pessoas que sofrem de fadiga pós-covid. Mas, como sabem os pacientes da SFC/EM que desenvolvem hipertensão pós-exercício, esta prescrição, ainda que soe intuitiva, pode ser altamente danosa.

Precisamos de programas intensos de pesquisa tanto sobre a covid prolongada quanto sobre a SFC/EM, em paralelo a melhor informação dos médicos. Mas acima de tudo, precisamos de algo que parece faltar há muito: governos que se importem.


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