terça-feira, 27 de novembro de 2018

Democracia, essa nossa (des) conhecida! Texto de Carlos Eduardo Araújo, professor da PUC-MG




Nesta terra brasilis, há trinta anos, aproximadamente, estamos a encenar uma peça chamada “Democracia”. Parece, infelizmente, que a mesma não atrai mais o público, que cansado do enredo, gradativamente, deixou de frequentar o espetáculo.
Por Carlos Eduardo Araújo
 Fonte: Justificando
Essa soturna constatação, no entanto, não se restringe aos palcos brasileiros, podendo ser confirmada em vários rincões do mundo. Um passeio pela velha e civilizada Europa, onde o teatro foi desde os gregos, uma encenação merecedora dos maiores aplausos e condecorações, demonstra a veracidade da assertiva. A peça já foi retirada de cartaz ou está em vias de sê-lo em países como Itália, Polônia, Hungria, Croácia, Romênia, Noruega, Finlândia e nos confins do velho continente, como Rússia e Turquia.
Fora da Europa, nos EUA, a eleição de Donald Trump acendeu vários sinais de alerta, provocando as reflexões e a apreensão de vários estudiosos norte-americanos. Como abalizados “críticos de teatro”, eles têm feito inúmeras análises, avaliações e restrições ao desempenho dos atores e à companhia que a está a encenar, atualmente, a peça democracia. As críticas são dirigidas principalmente ao protagonista, que por meio de sua fala, gestos e atitudes, não está desempenhando seu papel a contento, desrespeitando o enredo que foi assentado há mais de duzentos anos.
Assim, para aqueles que se interessarem em aprofundar seus conhecimentos, balizar, fundamentadamente, sua argumentação e atuar de maneira crítica no debate público e no conhecimento adequado do enredo da peça, para além da superficialidade, dos preconceitos, do senso comum reinante entre nós, passo a fazer algumas indicações de livros publicados recentemente.
O primeiro livro da qual vou me ocupar é “Como as Democracias Morrem”, publicado no Brasil em setembro próximo passado, pela Editora Zahar. O livro é de autoria dos conceituados professores da Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os autores realizam uma análise perturbadora do declínio da democracia em várias partes do mundo e se fazem a seguinte pergunta, ainda atônitos com a eleição de Donald Trump: Democracias tradicionais entram em colapso? “Para isso comparam o caso de Trump com exemplos históricos de rompimento da democracia nos últimos cem anos: da ascensão de Hitler e Mussolini nos anos 1930 à atual onda populista de extrema-direita na Europa, passando pelas ditaduras militares da América Latina dos anos 1970. E alertam: a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas – como o judiciário e a imprensa – e a erosão gradual de normas políticas de longa data.”
Acredito que o livro de Levitsky e Ziblatt lança luzes para a compreensão do fenômeno brasileiro ou no mínimo oferece-nos algumas chaves de compreensão para o mesmo.
O segundo livro que farei menção, cuja temática e as preocupações fazem coro às do livro anterior, é a obra do historiador inglês David Runciman: “Como a Democracia Chega ao Fim”, publicado também no mês de setembro pela Editora Todavia. Runciman promove, à semelhança dos professores de Harvard, uma análise das ameaças que rodam as democracias ao redor do mundo. Confessa que sua dúvida quanto ao fim da democracia foi aguçada com a eleição do presidente norte-americano, apesar de afirmar que acredita que tal eleição não assinale o fim da democracia americana. Alerta-nos, todavia, que as democracias podem não ser perenes, como já foi imaginado pelo filósofo nipo-americano Francis Fukuyama, que em 1989 publicou o livro “O Fim da História e o Último Homem”, em razão da aparente vitória da democracia liberal, naquele momento e de sua prospecção para o futuro.
A terceira obra a que farei referência é o livro “Sobre a Tirania”, do historiador estadunidense Timothy Snyder. Aludida obra foi publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras, em junho do ano passado. O livro tem sua origem em uma postagem feita pelo autor no facebook, logo após a eleição de Donald Trump, depois o texto foi transposto para o formato de um conciso livro, contendo vinte lições tiradas do século XX. Nas palavras de Snyder: “Não somos mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles”. Livro de leitura instigante e provocador.
Uma quarta obra a que farei alusão é o livro da ex-secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright “O Fascismo – Um Alerta”, publicado pela Editora Crítica, em setembro deste ano. O livro abre-se com uma epígrafe do escritor italiano Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz: “Toda era tem o seu próprio fascismo.” Madeleine Albright nasceu em 1937, em Praga, que era na ocasião de seu nascimento a capital da extinta Checoslováquia. Seu pai, um diplomata judeu, teve que fugir com sua família em 1939, em razão da ocupação nazista. Ela retrata mencionada situação no primeiro parágrafo de seu livro:
“No dia em que os fascistas alteraram pela primeira vez o curso da minha vida, eu mal havia dominado a arte de caminhar. Era 15 de março de 1939. Batalhões de tropas de assalto alemãs invadiram meu país, a Tchecoslováquia, conduziram Adolf Hitler ao Castelo de Praga e jogaram a Europa à beira de uma Segunda Guerra Mundial. Após dez dias escondidos, meus pais e eu fugimos para Londres. Lá, nos juntamos a exilados de toda a Europa no apoio à reação aliada enquanto aguardávamos ansiosamente pelo fim do calvário.”
Como ela menciona, no trecho acima reproduzido, sua família refugiou-se inicialmente em Londres e depois emigraram para os Estados Unidos da América. Como os demais autores, Madeleine está preocupada com a derrocada dos ideais democráticos mundo afora e que agora, segundo pensa, ameaça sua pátria de adoção.
Em outro trecho do livro pergunta Madeleine Albright: “Por que teriam os Estados Unidos – ao menos temporariamente – abdicado de sua liderança nas questões mundiais? E por que, a esta altura do século XXI, voltamos a falar de fascismo? Uma das razões, para dizer francamente, é Donald Trump. Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase sarada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e futucar a cicatriz.”
O livro de Madeleine Albright, incitante e provocativo, nos impõe um cotejo, recheado de reflexões e análises, pelas lamentáveis semelhanças e as abissais diferenças com a realidade brasileira, que emergiu do ultimo pleito eleitoral. Na verdade creio que os demais livros mencionados se prestam a igual desígnio.
Farei agora alusão a uma quinta e última obra, que segue, igualmente, na mesma trilha das anteriores. Estou a me referir ao livro do sociólogo espanhol Manuel Castells “Ruptura: A Crise da Democracia Liberal”, publicado em junho deste ano pela Editora Zahar. Permitam-me transcrever um trecho mais ou menos extenso da apresentação da obra:
“Sopram ventos malignos no planeta azul”, sentencia o sociólogo Manuel Castells, enquanto o mundo é assolado por um turbilhão de múltiplas crises. A crise econômica que se prolonga em precariedade de trabalho e desigualdade social; o terrorismo fanático que impossibilita a convivência humana e alimenta o medo; a permanente ameaça de guerras atrozes como forma de lidar com conflitos; as inúmeras violações dos direitos humanos e à vida. Existe, porém, uma crise ainda mais profunda, mãe de todas as outras: a ruptura da relação entre governantes e governados, a desconfiança nas instituições e a não legitimidade da representação política. Trata-se do colapso gradual de um modelo político de representação: a democracia liberal.
Neste livro urgente, fruto de ampla pesquisa, Castells analisa as causas e consequências desse rompimento, à luz dos mais recentes acontecimentos políticos mundiais: a vitória de Trump nos Estados Unidos; o resultado do Brexit no Reino Unido; a desconfiguração partidária na França; e a ideia de “democracia real”, em oposição à democracia liberal moribunda, nascida dos movimentos sociais originários das redes sociais na Espanha, que levou ao fim do bipartidarismo no país. Mas aonde nos levará essa ruptura? Qual a nova ordem que substituirá a que morre? Se o futuro é ainda incerto, Castells nos faz refletir e enxergar com clareza o panorama atual, em uma publicação mais que oportuna para o momento de incerteza em que vivemos.”
Da sinopse acima, da obra de Castells, percebe-se que os cinco livros citados convergem em suas análises, reflexões e preocupações com relação aos rumos apontados para a democracia ocidental e para suas instituições, a ela umbilicalmente ligadas, na atual conjuntura mundial.
No Brasil, a encenação parecia agradar, dava ares de perenidade, mas a platéia é um tanto volúvel, frívola, titubeante, com pruridos hamletianos: “Ser ou não ser, eis a questão.
No caso brasileiro, em particular, os espectadores têm sido atraídos para um espetáculo mais ruidoso, mais estrepitante, onde abundam bufões e atiradores de faca, onde um dos atores cospe fogo. Durante o espetáculo, nuvens de fumaça são lançadas. A pirotecnia come solta, a platéia se agita, se sacode, extravasa os seus instintos e emoções mais primaciais. Como diria Pessoa “O mito é o nada e é o tudo”.   
Aqui, também, como alhures, tem-se publicado algumas obras que buscam entender o fenômeno da emergência da extrema direita entre nós, que não passava, até outro dia, de uma caricatura fascistoide e de mau gosto, a defender ideias estrambóticas, iníquas, as quais mereceriam, até então, nosso tropical repúdio, repulsa, desdém e escárnio.
Não estávamos atentos, pobres de nós, a um rio subterrâneo que corria silenciosamente sob nossos pés, emitindo ruídos mínimos e para os quais não nos mostramos atentos, impossibilitando que suspeitássemos de sua caudalosa potência. Esse rio, de águas maculadas por idéias retrógradas, reacionárias, preconceituosas, elitistas e excludentes, foi inundando tudo que se encontrava em seu lascivo caminho, deixando putrefato seu leito.  De sua foz, emanava em filete d’água, tal qual o “Paquequer” alencariano, descrito no inicio do romance O Guarani: “De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.”
Igualmente o rio, do qual nos ocupamos, resultou do amálgama de um conservadorismo tosco, somado a um afetado moralismo ético, que por sua vez decorre de um autoritarismo ancestral e visceral, e foi engrossando suas águas com toda sorte dos preconceitos e congêneres, supra referidos. No fluir superficial de suas águas vi emergirem arautos da moralidade pública, democratas empedernidos, em suas reluzentes armaduras, Todos irmanados e unidos, em suas virtudes autoproclamadas, em sua luta santa contra o mal, contra a corrupção e contra o demônio vermelho.
No Brasil vou me ocupar de um único livro, concebido no intuito de entender nossa realidade social e política, que tornou possível eclosão da extrema direita entre nós. Refiro-me ao livro organizado pela socióloga Esther Losano intitulado “O Ódio à Política – A Reinvenção da Direita no Brasil, publicado no mês passado pela editora Boitempo.
O aludido livro, organizado por Esther Solano, “chega às livrarias durante o período eleitoral, no momento em que o campo progressista assiste perplexo à reorganização e ao fortalecimento político das direitas. “Direitas”, “novas direitas”, “onda conservadora”, “fascismo”, “reacionarismo”, “neoconservadorismo” são algumas expressões que tentam conceituar e dar sentido a um fenômeno que é indiscutível protagonista nos cenários nacional e internacional de hoje, após seguidas vitórias dessas forças dentro do processo democrático. Trump, Brexit e a popularidade de Bolsonaro integram as complexas dinâmicas das direitas que a coletânea busca aprofundar a partir de ensaios escritos por grandes pensadores da atualidade.”
Neste livro, vários estudiosos se debruçam sobre os mais diversificados fatores que possibilitaram a emergência da extrema direita entre nós, um misto de libertarianismo, fundamentalismo religioso e de anticomunismo extemporâneo e fora do lugar. Some-se a esse caldo cultural, um neoconservadorismo retrógrado e uma tradição jurídica antidemocrática, marcada por uma herança colonial e escravocrata. São amealhados neste caminho, que parece nos conduzir a uma recessão democrática, ódios, frustrações, crise econômica, militarização da vida e o saudosismo do “paradise” ditatorial. Livro imprescindível para um posicionamento informado, crítico, consciente e fundamentado sobre a realidade brasileira atual.
Por fim, para terminar, volto ao começo de tudo: A democracia ateniense.
A democracia, esta senhora com mais de dois mil e quinhentos anos de existência, nascida naquele que passou à história como o século de ouro ou o século de Péricles, e que surgiu e floresceu, no século V a.C., em Atenas, na Grécia Clássica, parece que tem sua existência ameaça em parte substancial do mundo ocidental.
A democracia grega, inspiradora das democracias modernas, tinha as suas peculiaridades e paradoxos quando cotejada com suas versões contemporâneas, encenadas mundo afora. As platéias que afluem ao espetáculo da democracia, hodiernamente, são mais diversificadas, mais heterogêneas, mais plurais, mais inclusivas. A platéia ateniense, que acorria aos teatros onde se encenava a peça democracia, era mais exclusiva, mais homogênea, menos diversificada.
No teatro ateniense, onde a peça democracia era encenada, havia um bedel encarregado de impedir que a ele tivessem acesso escravos, estrangeiros e mulheres. Assim, a platéia e o proscênio eram ocupados por homens, chamados cidadãos, com 21 anos completos. 
É com pesar que assistimos uma erosão do ideário democrático nestes tempos sombrios. No entanto, quando analisamos a conjuntura numa perspectiva histórica vemos quão pendular é a história humana, com o ora o pêndulo lançando-se à direita, ora vergando-se, vertiginosamente, à esquerda, ora repousando no centro do espectro ideológico. Como diria Deus a um Diabo perplexo, no conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis:
“Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
– Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”
Carlos Eduardo Araújo é professor universitário e mestre em Teoria do Direito (PUC-MG)

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