Pessoas de todas as idades voltam a se insurgir. Buscam zonas libertadas
de capitalismo, colonialismo e patriarcado. Sondam economias
comunitárias, indígenas, feministas, cooperativas. E os poderes: irão
finalmente envelhecer?

Na
vida pessoal, o envelhecimento depende menos da idade fisiológica do
que da idade social. A idade social é inversamente proporcional à
capacidade de pensar, sentir e viver o novo como futuro, como tarefa,
como presente por experimentar. É-se tanto mais jovem quanto maior é
a capacidade de viver a vida como se ela fosse uma experiência de
constantes recomeços que apontassem não para repetições do
passado, mas antes para futuros – mapas por explorar e caminhos por
trilhar com disponibilidade para enfrentar riscos, assumir
ignorâncias e responder a desafios novos. É o futuro como
antecipação, como “ainda não”, como latência, como
potência. Como sabemos que nunca vivemos senão no presente, o
futuro é sempre o presente incompleto, o presente como tarefa, como
acontecimento, pelo qual somos pessoalmente responsáveis. Ter futuro
é ser dono do presente. Pelo contrário, é-se tanto mais velho
quanto mais se vive convencido de que o mundo já decidiu por nós o
que podemos esperar ou não esperar e que, consequentemente, o futuro
está fechado para nós. Envelhecer é, pois, viver de repetição ou
em repetição como se cada repetição fosse única e irrepetível.
É passar os dias como se fossem os dias a passar com a indiferença
do passeio diário.
São três os modos de viver de repetição: como se o passado fosse um eterno presente e tanto as rotinas como as instituições e as notícias o confirmassem dia-a-dia (envelhecimento por morte viva); como se o passado tivesse passado e tivesse deixado no seu rastro um vazio inabarcável que só o jogo de cartas, a televisão ou a conversa sobre doenças pode iludir (envelhecimento por vida morta); ou, finalmente, como se tanto o passado como o futuro estivessem igualmente distantes e inacessíveis, criando assim um pânico insuperável que só o gasto excessivo do corpo no álcool, nas drogas, na academia, na igreja ou na terapia pudesse iludir (envelhecimento por vida sem morte).
Nas
sociedades de corpos industrializados e informatizados em que vivemos
foram criados serviços públicos e privados para dar assistência às
pessoas que têm mais dificuldades com a repetição da repetição.
No fundo, trata-se de normalizar a decadência. Nestas sociedades o
envelhecimento é sempre o resultado de um esgotamento crónico de
energias gastas ou por gastar. Consiste em pôr convictamente o
letreiro de lotação esgotada à porta do teatro da vida, mesmo que
há muito se não represente nele uma peça, ou mesmo que nunca se
tenha feito nele um primeiro ensaio. No caso das duas primeiras
formas de envelhecimento, o objetivo é investir no passado como se
não tivesse passado. Consiste cada vez mais na comercialização de
serviços de co-envelhecimento. São, em geral, eficazes porque a
invenção da repetição oculta astuciosamente a repetição da
invenção. A ideia básica é que as experiências de
envelhecimento, por mais insuportáveis, são sempre mais suportáveis
quando partilhadas. No caso da terceira forma de envelhecimento, em
vez da onipresença do passado, procura-se a oniausência do passado,
um eterno presente que dispensa o futuro de ter de assombrar os vivos
com as más notícias que ainda não são. São as técnicas de
envelhecimento por rejuvenescimento. É uma versão modificada da
metáfora do filme The
Curious Case of Benjamin Button,
baseado no conto de F.
Scott Fitzgerald,
no qual o protagonista nasce velho e vai rejuvenescendo à medida que
o tempo passa até morrer bebê.
Nas técnicas de envelhecimento por rejuvenescimento, o relógio da
estação de trem
da pequena cidade do sul dos EUA, em vez de andar para trás, pára,
e com ele pára o tempo também.
Como
referi, a idade social não coincide com a idade fisiológica, mas a
descoincidência é maior ou menor consoante os períodos históricos,
os contextos sociais e os fatores coletivos que os caracterizam. O
mesmo acontece com as sociedades. O mundo industrializado em que
vivemos começou a envelhecer aceleradamente na década de 1980. De
repente, o futuro fechou-se, o novo senso comum de que não havia
alternativa à sociedade capitalista injusta, racista e sexista em
que vivíamos entrou nas nossas casas mais rapidamente do que
qualquer pizza
delivery
ou ubereats,
propagou-se
pelos noticiários, pelas redes sociais emergentes, pela sabedoria
prêt-à-porter
da
comentocracia. Novas experiências e expectativas de vida coletiva
estavam para sempre desacreditadas, o mundo era naturalmente injusto,
os ricos eram ricos porque mereciam e os pobres eram pobres de tudo,
mas sobretudo de juízo; tínhamos de viver com a imperfeição,
ainda que a pudéssemos minorar substituindo a racionalidade dos
mercados pela irracionalidade do Estado,
à custa do qual viviam os menos capazes de sobreviver numa sociedade
competitiva.
A
primeira-ministra
da Inglaterra, Margaret Thatcher, decretou melhor que ninguém a
morte do futuro: “There is no Alternative”, a célebre
TINA. E Francis Fukuyama transformou essa morte no triunfo final da
sociedade ocidental – “o fim da história” –
prevalecendo-se do fato de que Friedrich Hegel, estando morto desde
1831, não poderia insurgir-se contra tão idiota interpretação da
sua filosofia da história. O cimento desarmado com a queda do Muro
de Berlim foi-se rearmando em mil cemitérios do futuro que se foram
construindo em todo o mundo. E muitos foram necessários para
enterrar tanto futuro.
Este
grande procedimento para envelhecer o mundo traduz-se hoje
predominantemente na primeira forma de envelhecimento que referi
acima, o envelhecimento por morte viva. Mas as duas outras formas de
envelhecimento estão igualmente presentes. O envelhecimento por vida
morta é a forma de envelhecimento preferida pelos fundamentalismos
religiosos. Atuam sobre o vazio causado pelo passado e prometem
fazê-lo renascer sob a forma de um futuro glorioso num outro mundo.
Para os promotores deste envelhecimento, a vida que vivemos está
morta e só pode ressuscitar quando os relógios da história
começarem a andar para trás ou quando todos, em uníssono,
começarem a dar a hora derradeira da eternidade. Não há
responsabilidade social pela injustiça. Há, sim, culpa por
sofrê-la, e a única solução é expiá-la.
A
terceira forma de envelhecimento (vida sem morte) é a que domina na
geração dos millenials, a que nasceu no início do período
em que o teatro do mundo fechava a cortina de um futuro diferente e
melhor. Foi uma geração condenada a nascer velha. Nasceram sem o
passado do futuro porque a ideia da alternativa tinha entretanto
desaparecido do horizonte. Por isso, nunca lhes ocorreu derrubar o
sistema injusto que lhes roubava a esperança de um futuro diferente
e melhor. O seu objetivo foi ter êxito pessoal dentro do sistema.
Sacrificaram tempo, direitos, lazer e prazer na esperança de uma
vitória que, para a grande maioria, nunca chegou. Queriam vencer o
sistema, vencendo no sistema. Era isto que o sistema queria para mais
eficazmente os vencer. Essa geração é hoje a que domina na
terceira forma de envelhecimento (vida sem morte).
A
geopolítica das estratégias de envelhecimento merece uma análise
mais detalhada que não cabe aqui fazer. Basta por agora ter em mente
que nem o mundo envelheceu uniformemente, nem as formas de
envelhecimento se distribuíram por igual no planeta. Foi sobretudo
no chamado norte global que, paradoxalmente, as pessoas passaram a
querer viver mais tempo sem, no entanto, serem consideradas velhas. O
que quero salientar neste momento é que estão a surgir sinais
concludentes de que o processo de envelhecimento do mundo não é
irreversível. Não se trata de rejuvenescer, o que, como referi
acima, é uma forma de enganar o envelhecimento. Trata-se antes de
desenvelhecer, ou seja, de voltar a acreditar num futuro diferente e
na capacidade para lutar por ele.
Trata-se
de rejeitar a repetição infinita do presente porque tal repetição
está a conduzir-nos inexoravelmente para o abismo. Emerge uma
vontade do novo que não seja uma barbárie porque a barbárie é
onde estamos já. Por todo o mundo estão a surgir levantes de
pessoas de todas as idades fisiológicas porque, como disse, a
diferença fisiológica não conta na perspectiva do envelhecimento
ou desenvelhecimento do mundo. Presenças coletivas de jovens e
velhos enchendo as ruas e as praças públicas do mundo contra a
política da repetição e os políticos repetidos, do Chile à
Itália, do Líbano à Índia. São os novos insurgentes
inconformados com a iminente catástrofe ecológica, a concentração
escandalosa da riqueza, a captura das instituições democráticas
por anti-democratas, a irracionalidade dos mercados ditos racionais,
o roubo de proporções gigantescas da nossa privacidade e da nossa
intimidade pelos novos robber-barons Google, Facebook, Amazon
ou Alibaba, a indiferença grotesca pelo sofrimento de imigrantes e
refugiados mortos no mar, na selva, no deserto ou depositados em
campos de concentração, como se Auschwitz fosse apenas uma memória
cruel, hoje superada pela vitória do bem sobre o mal.
As
forças políticas de direita, que sempre se alimentaram do
envelhecimento do mundo, clamam assustadas contra o que designam como
desaforo, como se não fosse desaforo tudo o que levou os novos
jovens e os novos velhos a decidir virem para a rua desenvelhecer. As
mesmas forças argumentam que não há propostas, ou seja,
repetições, as únicas novidades que reconhecem. Mas a verdade é
que há propostas. Da Índia ao Chile, as forças repressivas e os
partidos políticos confrontam-se com a indignação dos
desenvelhecidos contra a letra morta de tanta constituição.
Confrontam-se com propostas de assembleias constituintes populares
plurinacionais. Confrontam-se com propostas de transportes públicos
eficientes e gratuitos como exercício da economia de cuidado para
com a natureza. Mas confrontam-se, sobretudo, com a celebração da
diversidade nacional, cultural, religiosa, sexual, com a procura de
zonas libertadas de capitalismo, colonialismo e patriarcado, com a
busca de formas de economia comunitária camponesa, indígena,
familiar, feminista, cooperativa.
Na
medida em que o mundo desenvelhecer, os poderes que produziram o
envelhecimento do mundo e fizeram dele a indústria da sua
eternização vão ser cada vez mais confrontados com o desaforo
causado pelo seu desaforo. Irão envelhecer?
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