“A formação imaginária de uma figura paterna onipotente e violenta, altamente capaz de transcender o pai real e, com isso, crescer até se tornar um ego coletivo” (Theodor Adorno, 1951).
Do Justificando:
Quinta-feira, 4 de outubro de 2018
Notas sobre o modelo fascista de propaganda segundo Theodor Adorno
Arte: Caroline Oliveira
“A formação imaginária de uma figura paterna onipotente e violenta, altamente capaz de transcender o pai real e, com isso, crescer até se tornar um ego coletivo” (Adorno, 1951).
Alguns estratagemas falaciosos são velhos conhecidos da retórica, também conhecida como a arte da argumentação, entre os quais se destacam os argumentos denominados ad hominem. A expressão latina refere-se ao argumento construído de modo a desviar a atenção da proposição, do objeto e do contexto da discussão. Encerrado em si mesmo e incapaz de estabelecer ponte com o oposto, o argumento assume como foco um elemento externo ao debate, fundando-se especialmente às considerações pessoais sobre o autor da proposição.
Utilizando o ridículo como estratégia expositiva, poderíamos exemplificar um argumento ad hominem por meio da afirmativa: “Não vou te escutar porque você está vestindo vermelho e o horóscopo de hoje previu que evitasse contato com essa cor”.
O exemplo seria risível se não fosse o cenário atual da política brasileira. Cômico se não fosse trágico. O pior é reconhecer que se trata de um fenômeno antigo e aparentemente latente no imaginário social.
A aparição e a ascensão de personagens como Bolsonaro propiciam um contexto singular para análise dos inconscientes coletivos, especialmente quanto à compreensão da teia que modela as nossas subjetividades individuais em face das estruturas sociais e a complexa relação que envolve o micro e o macro, o indivíduo e a sociedade.
Theodor Adorno promoveu uma análise da propaganda fascista no texto “A Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda”. Datado de 1951, o escrito estava situado no fenômeno emergente dos estados autoritários, cuja ebulição implicava riscos à democracia. O debate proposto adotou como principal aporte teórico a obra “Psicologia de massa e análise do ego”, publicado por Freud em 1922. A despeito de a obra psicanalítica estar afastada temporalmente do ápice do fascismo, é possível inferir que Freud já constatava a relevância das categorias psicológicas nesses movimentos políticos.
Adorno identificou, entre as lideranças fascistas, a presença de um “conjunto-padrão, rigidamente delimitado” denominado por ele como “expedientes”, nos quais a similaridade dos discursos seria muito frequente, a ponto de gerar uma unicidade. A respeito disso expõe que “as próprias falas são tão monótonas que a sua repetição sem fim é facilmente constatável, tão logo passamos a nos familiarizar com seu pequeno repertório de expedientes. Realmente, a reiteração constante e a escassez de ideias são os ingredientes indispensáveis de toda a técnica”.
A pauta da intolerância está fundada na mobilização de apoio popular em vista dos riscos da democracia e da pluralidade e, a despeito de acusado de arcaico, “enquanto rebelião contra a civilização, o fascismo não é simples recorrência do arcaico, mas sua reprodução dentro e através da civilização” (Adorno, 1951).
O cabimento de uma análise psicológica da propaganda fascista justifica-se nos elementos subjetivos que a compõe, a exemplo da figura paterna, do conceito de Ego e da base narcisista que a integra. Os objetivos autoritários irracionais que a estabelecem derivam do despertar de uma herança arcaica do sujeito que é mediada pelo protótipo do líder cuja imagem combina a ideia do pai primitivo, ameaçador e todo-poderoso.
Freud, valendo-se da teoria narcisista, explica que, embora apareça como super-homem, o líder precisa conciliar essa imagem com a ideia de que também é uma pessoa comum. Isso possibilitaria a reelaboração do ego individual dos seguidores, que abandonariam seu próprio ideal de ego, substituindo-o pelo ego corporificado no líder. Assim, o líder existiria como “formação imaginária de uma figura paterna onipotente e violenta, altamente capaz de transcender o pai real e, com isso, crescer até se tornar um ego coletivo” (Adorno, 1951).
Esse é o contexto de surgimento do que Freud denomina pequeno-grande homem, caracterizado pela ambivalência do líder que comporta tanto a materialização da onipotência, quanto a ideia de que ele é apenas mais um na multidão. Assume, portanto, a imagem de milagre social ao personificar o pai todo poderoso e simultaneamente se apresentar como homem comum. A combinação desses dois elementos seria responsável por gratificar “o duplo desejo do seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo essa autoridade” (Adorno, 1951).
Esse expediente presente no padrão fascista está sintonizado com a estrutura básica da demagogia, e a intolerância aos grupos que experimentam uma identidade diversa seria resultado de um projeto narcisista. Sobre isso Adorno cita Freud: “Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse sua crítica e a exigência de sua alteração” (Adorno, 1951).
A polarização no conceito de “nós” versus “os outros” resultaria no “truque da unidade”, cujo foco em enfatizar as diferenças dos “outros” – aqueles com os quais não nos identificamos e que, por isso, constituem um risco social – minimiza as próprias diferenças internas, criando uma ficção de unidade baseada na ideia de que “estamos todos no mesmo barco”.
Contraditoriamente esse não é o barco de todos, no caso do presidenciável Bolsonaro, homossexuais, mulheres, negros, grupos que não se identifiquem com o projeto político estão à margem da sociedade e não precisam constituir uma pauta pública própria porque não são a regra. A regra pertence àqueles que estão dentro do barco.
Esse é o risco que projetos políticos como o defendido por Bolsonaro impõe à democracia: o preço de serem pagos com a invisibilidade de muitas vidas cuja cidadania é subalternizada segundo uma escala que hierarquiza narcisisticamente as vontades daqueles que estão dentro do barco e subalterniza tudo e todos que se encontrem fora dele. Não bastasse invocar a marginalização de tantas existências historicamente invisibilizadas, ainda se sobressalta o imaginário de que eles – “os outros” – são inimigos e, por isso, precisam ser combatidos, pois são responsáveis pelo descrédito moral e declínio social.
Moralidades plurais? Jamais! Diante da existência de um único vocativo moral, a pluralidade deve ser evitada e assimilada pelo grande ego.
Leia mais:
Pesquisa mostra como pensam os eleitores de Bolsonaro
17 vezes em que Bolsonaro foi Bolsonaro
Pesquisa mostra como pensam os eleitores de Bolsonaro
17 vezes em que Bolsonaro foi Bolsonaro
Priscila Aurora Landim de Castro é doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília, professora da Faculdade de Direito – UniCEUB e pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Sobre Violência e Segurança – NEVIS/UNB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário