quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Vale a pena mexer a história podre do autoritarismo, por Clarisse Gurgel



Bolsonaro representa, sem dúvida, as dívidas históricas de um país marcado pelo coronelismo, pelo populismo, pelo fisiologismo, mas expressa uma cultura autoritária de tempero distinto, que, não sem razão, convoca-nos a refletir sobre o aspecto moderno do fascismo. 


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Vale a pena mexer

por Clarisse Gurgel, cientista política e professora da Faculdade Ciências Sociais, da UNIRIO

A semana começou com mais um ato de violência de Bolsonaro. Desta vez, porém, parece que o atual presidente extrapolou os limites até para seus apoiadores. Curiosamente, medidas absurdas acerca da reforma da previdência não são suficientes para provocar tamanha comoção. Até hoje, o que mais chamou atenção, dentre as medidas deste que mais parece o Rei de Hegel – aquele que é, sem fundamento, que é porque é, ao ponto de poder ser qualquer um -, foi a nomeação de seu filho, Eduardo Bolsonaro, para o consulado americano. Se este lugar de Rei, para Hegel, é esta unidade inquestionável, oriunda da indubitável hereditariedade, caberia a nós decifrar que unidade é esta que Bolsonaro representa e que, em grande medida, herdou de Lula, tal como se nos transferíssemos de um populismo de esquerda para um populismo de direita. Este, que é um conteúdo comum, cultivado em anos de história, parece apontar para algo que não mudou em nosso país. 


Bolsonaro abriu o segundo semestre de 2019 com mais uma declaração bombástica – e a alusão à bomba não é mera coincidência. Declarou que sabe o destino de um desaparecido político, Fernando Santa Cruz, em uma provocação ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, filho do militante morto. Diante desta última atitude ofensiva, a jornalista Cristiana Lobo, da Globo, disse: “isto é reflexo de grupos alternativos da ditadura… Coisa que não vale a pena mexer”. Do que Cristiana estava falando? E quanto vale não mexer nesta coisa? Em que medida isto que é, no mínimo, uma abstenção, explica a pena imposta aos brasileiros, desde 2016, quando ocorre o golpe que impede Dilma de governar?

 É sabido, tal como pode ser visto em memoriais da ditadura de 64, que os grupos aos quais se refere Cristiana envolvem a divisão, mais tensionada em 74, quando da ocasião da chamada abertura política, no Brasil: de um lado, o campo favorável ao arrefecimento do regime autoritário, do outro, aquele que reunia os defensores do endurecimento, ainda maior, da ditadura. João Figueiredo, um dos nomes da primeira ala, parecia sintetizar este nó em que estamos, hoje, em que um ditador é eleito. Encarregado de abrir o regime, em reação “ao grupo alternativo” de Silvio Frota – de que faziam parte o atual General Heleno e o Coronel Brilhante Ustra -, Figueiredo alardeava: “a democracia será estabelecida no Brasil, nem que seja à força!”. Em que medida o regime estatal brasileiro foi aberto, efetivamente, e no que consistiria esta abertura? 


Ernesto Geisel, sem dúvida, correspondia também ao setor dos militares que já começava a entender a diferença – até mesmo prática e funcional – entre autoritarismo e autoridade. Razão pela qual a democratização passava a ser o novo método – mais econômico – de imposição – agora, velada, por meio de filtros representativos – de um modelo baseado na exploração social.  O “grupo alternativo” de Silvio Frota insistia em aprofundar o autoritarismo, aumentar as torturas e crimes de Estado, mesmo diante de uma esquerda exilada, asilada, torturada, morta e desaparecida.

Esta escolha por seguir massacrando os massacrados, mesmo diante de técnicas de combate mais sutis e sofisticadas, aponta para um aspecto distintivo, quase patológico, do setor de Silvio Frota, ao qual, mais tarde, Bolsonaro se filia. Se há uma dificuldade em caracterizar o que estamos vivendo, no Brasil, este traço perverso parece auxiliar neste esforço e envolve aquilo que o filósofo e sociólogo grego, Nicos Poulantzas, apontava como aspecto “fascistizador” de um estatismo autoritário. A fascistização, segundo Poulantzas, correspondia, justamente, ao fenômeno de acirramento da violência de Estado, de um regular estado de exceção, em face de um movimento popular derrotado. Este parece ser o excesso que escandaliza até os mais insensíveis e que nos dá a impressão de que o governo chuta cachorro, se não morto, moribundo. 

Bolsonaro representa, sem dúvida, as dívidas históricas de um país marcado pelo coronelismo, pelo populismo, pelo fisiologismo, mas expressa uma cultura autoritária de tempero distinto, que, não sem razão, convoca-nos a refletir sobre o aspecto moderno do fascismo. Tal como alertava Florestan Fernandes, isto que corresponde, aqui no Brasil, a um totalitarismo de classe, consiste em uma força onde uma burguesia relativamente impotente prefere a capitulação política ao imperialismo a lutar pelas bandeiras tradicionais. Este novo sabor, esta fascistização, tem a marca do chamado Frotismo, que alguns já compreendem como aquilo que imprime um caráter de revanche ao governo Bolsonaro: o retorno do “grupo alternativo” que prendeu Dilma e foi contra a democratização do Brasil. 


O que testemunhamos, hoje, é, pois, a volta do cipó no lombo de quem já levou, a mando de um grupo de militares que não só carrega traços fascistas, mas também de um setor que, curiosamente, mescla doutrina de guerra com a defesa do Estado mínimo. Uma mistura que explica, em grande medida, um governo que realiza todos os seus fetiches de Capitão América, no combate aos comunistas, e que entrega o país à espoliação de estrangeiros, como EUA e União Europeia. Estamos falando, portanto, de uma revanche de tempero entreguista, nos marcos dos neo-conservadores formados na Escola de Chicago – o que nos ajuda a compreender como a democracia, assim como qualquer outra coisa, torna-se mais um gênero de mercado nas mãos dos bolsonaristas.

 O método pelo qual este “grupo alternativo”, radicalmente avesso à democracia, chega ao poder, em sua revanche de 2019, é, justamente, o da democracia, pelo voto. Sem prejuízo do debate acerca dos recursos para a obtenção de voto – debate que envolve os limites da própria democracia burguesa -, o meio pelo qual o grupo do “autoritarismo forte” retorna é estranho ao seu próprio vocabulário. Isto é o que inaugura uma dinâmica em que, na medida em que fazem uso da democracia, a destroem. E esta concomitância entre uso e destruição nada mais é do que o ato de consumir, basta pensarmos no consumo de qualquer coisa: de um pão, de um suco (na medida em que nos apropriamos deles, eles vão desaparecendo até acabar). 

Este parece ser o destino de um país entregue a “grupos alternativos”, nos quais alguns acham que “não vale a pena mexer”. A que pena nos destinaram por não mexermos? 

 Clarisse Gurgel, cientista política e professora da Faculdade Ciências Sociais, da UNIRIO.

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