Barack Obama foi um menino negro criado apenas pela mãe, desta forma, jamais poderia dar o tom determinista que o militar brasileiro deu quando Mourão afirma que “a partir do momento em que a família é dissociada, surgem os problemas sociais. Atacam eminentemente nas áreas carentes, onde não há pai e avô, mas sim mãe e avó. Por isso, é uma fábrica de elementos desajustados que tendem a ingressar nessas narcoquadrilhas”. A diferença básica está em ser ciente da sobrecarga feminina e fazer um chamamento à responsabilidade dos homens na história toda, ao invés de associar à criação das crianças exclusivamente por mulheres à suposta existência da tal “fábrica de elementos desajustados”.
Considerando que as famílias nas comunidades mais violentas da nação são negras, a crítica do candidato a vice recai em cheio no colo das mulheres negras que são a maioria da população e que muitas vezes só possuem isso mesmo para oferecer aos seus filhos: colo. Pelo que vemos, não passou por um único minuto na cabeça do oficial culpar o acesso negado (durante muito tempo por lei) desde o Brasil colônia à educação, à saúde, ao saneamento básico e aos direitos mais primários de qualquer ser humano. Não passou por sua mente culpar a ausência do Estado no cuidado aos seus cidadãos e a exclusão nas oportunidades para justificar o surgimento de bandidos em série, mas ele não hesitou em pôr nos ombros de quem já muito carrega, o fardo de ver sua prole no beco sem saída.
O exposto acima ainda não tocou em outro ponto crucial: o da jornada dupla ou tripla de trabalho, visto que, além de trabalhar, cuidar da casa e dos filhos, a mulher muitas vezes ainda estuda. Não por acaso, os maiores índices de escolaridade são dominados pelo público feminino em todos os níveis. Ainda assim, a corrida fica ainda mais desigual na remuneração, pois em pleno 2018 as mulheres ainda ganham menos do que os homens para exercer as mesmas funções. Uma situação que é apoiada, aliás, pelo parceiro de chapa do general na já famosa frase de que “mulher deve ganhar menos porque engravida”.
O racismo e a misoginia parecem ser a principal doença crônica nacional.
Minha bisavó, Damiana da Silva Santos, faleceu com 104 anos. Ela nasceu no ano da abolição da escravidão, em 1888. Na próxima semana, Damiana completaria 130 anos de nascimento. Ela foi abandonada pelo marido, assim como também foi sua filha, Celina, e como havia sido sua mãe, Martha, nascida da Lei do Ventre Livre, e sua bisavó, Anolina, que foi seguidamente abusada pelo senhor. A mãe desta… bem, esta veio de África e, portanto, sequestrada dos seus. Conto este breve histórico familiar para dizer que o racismo e a misoginia parecem ser a principal doença crônica nacional. Um mal que não tem hora para manifestar suas pústulas, no tecido roto de uma nação dilacerada por um processo eleitoral, a meu ver, entre os mais cruéis da nossa trajetória.
Uma frase proferida pela velha Damiana como mantra e que carregamos como lema familiar é: quem tem o conhecimento, tem o poder. Nossa turma de “desajustados” está estudando, trabalhando, criando e produzindo. O narcotráfico vemos apenas pelo noticiário, pelas séries televisivas e na fala dos generais candidatos a governar um país que, pelo visto, não apenas desconhecem, mas principalmente depreciam.
Foto em destaque: Homenagem da família da colunista a sua tia-avó, dona Nunu, a única remanescente da linha de mulheres que por seis gerações criou a todos os filhos e netos sozinhas.